Todos os dias no meu caminho para casa passo à porta de um ginásio, daqueles de cidade, encafuado em garagens reconvertidas. Num ambiente impessoal, vejo pessoas a correrem na passadeira e a preparem-se para a aula de zumba com a mesma emoção com a qual renovam um passaporte extraviado numa Loja do Cidadão. “Physical”, que se estreou há poucos dias na Apple +, recorda a época na qual o fitness e a aeróbica eram uma celebração do spandex e das fitas cor-de-rosa na cabeça, da genica das professoras de dança jazz que propagaram e minguaram na década de 80, da diversão finalmente aliada ao sacrifício do exercício físico. Mas não vão ao engano: “Physical” não é uma série que disponha bem. É, aliás, mais dada à angústia que o tal ginásio onde o frete queima calorias.
A primeira coisa que devem saber é mesmo essa: esta não é uma história de superação. Os primeiros minutos dão a entender que vamos conhecer uma espécie de Jane Fonda, uma magnata das cassetes de vídeo dos treinos em casa, mas depressa percebemos que a protagonista Sheila Rubin está a anos desse objetivo – se é que sequer o vai conseguir de todo. Ao contrário de outras sagas que se focam em mulheres empreendedoras que querem pontapear a vida de dona de casa e mostrar que são capazes, aqui depressa percebemos que Sheila é capaz de muito pouco. Acompanhamos as suas tentativas de erguer um negócio quando nem sequer faz ideia de como se erguer a ela própria, levando a um caminho de intriga e constante falhanço que está muito longe de ser inspirador.
[o trailer de “Physical”:]
Bulímica, mentirosa compulsiva, demasiado crítica dos outros e com uma bússola moral que não distingue o norte de uma abóbora (ou de um hambúrguer triplo, como os que come e vomita secretamente em quartos de motel), temos novamente um caso clássico de uma anti-herói, alguém pejado de defeitos que irá mesmo assim conquistar o coração da sua audiência. Pequeno problema: apesar da superlativa interpretação de Rose Byrne (uma atriz que merece mais louvores do que aqueles que recebe), é difícil criar apego a uma personagem que tem tanto asco por ela própria que esse asco passa para o espectador. O mesmo se passa com os outros personagens. Do marido (um professor universitário recentemente despedido que opta antes por uma carreira política) à professora de fitness que Sheila coercivamente torna sua sócia, passando pelo dono de um centro comercial que é omnipresente em toda a comunidade, raros são os personagens que não criam antipatia e incómodo no espectador. Sumarento do ponto de vista narrativo? Certamente. Mas obriga também a uma experiência cansativa, quase irritante.
“Physical” tem, ressalve-se, vários méritos. Tem um conceito forte, boas interpretações, uma ótima realização, uma banda sonora escolhida a dedo e uma estética da San Diego dos anos 80 eficaz. Porém, perde-se por vezes em subplots desinteressantes (as personagens secundárias têm conflitos que interessam pouco perante uma protagonista que enche tanto o ecrã), é por vezes frustrante na progressão no seu arco narrativo e não tem, repito-me, ninguém por quem torcer.
Talvez por causa da duração dos episódios (os clássicos 30 minutos das sitcoms) e da escolha de tema e até de cast (Rose Byrne aparece em blockbusters de comédia como “Bridesmaids”), “Physical” tem aparecido categorizado como uma comédia – ou, como dita a moda de uma fronteira entre géneros cada vez mais híbrida, “uma comédia negra”. Poderia, à primeira vista, parecer a série para recolher os órfãos de “Glow”, uma série com algumas semelhanças temáticas recentemente cancelada pela Netflix. Mas não se enganem pelo marketing confuso: “Physical” é um drama. É narrado na primeira pessoa por alguém com demónios pessoais de garras bem afiadas, num contexto de falta de empatia generalizada. O uso de voz off (bastante bem usado, que de exemplos preguiçosos de narrador participativo estão o cinema e a televisão cheios) só cimenta como somos os únicos a conhecer as verdadeiras intenções de uma protagonista que nunca é honesta com ninguém. Isto não é sobre viver um sonho – é sobre aprender, a custo, a viver com os nossos pesadelos.