A primeira temporada de “Ted Lasso”, ou se quiserem, uma época 2019/2020 alternativa, em que não houve Covid a transformar o futebol num jogo tão ruidoso como uma tórrida tarde de xadrez na biblioteca, é das melhores coisas que vimos em televisão nos últimos anos. Num mundo cada vez mais sabichão e sarcástico (de que o recente “The White Lotus”, da HBO, é competente exemplo), é preciso tê-los no sítio para fazer uma coisa tão genuinamente benigna. Abram as vossas Apple TVs ou cravem a de um amigo e vejam com os vossos próprios olhos: 10 episódios que vos tomam cinco horas que vão parecer duas, na sessão de binge-watching mais fácil da História. No fim, as gargalhadas ter-vos-ão, muito provavelmente, curado algumas doenças.
Quando um treinador de futebol americano é contratado para orientar um clube de futebol (soccer) da Premier League inglesa, sabemos que ele vai perder, “mas”, como diz Trent Crimm (James Lance), o temível jornalista do The Independent, “não conseguimos deixar de torcer por ele”. Ted Lasso (Jason Sudeikis) deixou um casamento em crise no Kansas para tentar segurar o modesto AFC Richmond no primeiro escalão do mais competitivo campeonato de futebol do mundo. Mas ainda que desconheça toda e qualquer regra do jogo – a crueldade de um balneário contrariado, a violência da imprensa britânica, as regras do jogo propriamente dito e, sobretudo, o plano da nova presidente Rebecca Elton (Hannah Waddingham) e de que ele é a peça essencial para destruir o clube, único amor do ex-marido que a trocou pela milésima namorada mais nova – Lasso prova a importância de saber ao menos isso, a velha lição de Sócrates: saber que nada se sabe.
Num território inflamado de egos, com a visão afunilada pela vaidade, essa é a primeira vantagem competitiva do coach Wanker (a segunda é esta: um insulto é só um insulto. É aguentá-lo e seguir em frente).
Lasso respeita a importância dos fantasmas – e compreende que a forma de os fazer desaparecer é iluminá-los e caminhar até ao coração da sala que assombram. Que não há coisa mais subversiva do que tratar a todos por igual, do roupeiro à presidente. Que nunca defenderá uma vítima de bullying se lhe infligir a humilhação derradeira de não a deixar defender-se a ela mesma. Que um capitão escolhido pelo treinador não é um capitão, mas um acólito; um capitão de equipa é isso: um capitão. Da equipa (magnífico Brett Goldstein enquanto Roy Keane, aliás, Roy Kent).
Lasso sabe que a única forma de convencer uma pessoa de uma ideia é deixá-la chegar lá sozinha. Que não devemos menosprezar o poder de um anjo-da-guarda (ou soldadinho de chumbo). Que os tímidos na sala querem tanto falar como todos os outros. Que um homem precisa de amigos (“Diamond dogs”).
Com Lasso, reaprendemos o poder desarmante da bondade, as pessoas estão tão de guarda erguida para se protegerem da mentira que a sinceridade quase as atinge como um golpe abaixo da cintura. Reaprendemos o quão saudável é ter memória curta. A ler Whitman: a ser curioso e não preconceituoso. A tirar proveito de nos subestimarem. A lançar os dardos, a ter sempre alguma na manga, a nunca desistir – mas a perceber que, às vezes, temos simplesmente de deixar coisas, pessoas, ir.
Criada por Bill Lawrence (“Scrubs”, “Cougar Town”), Joe Kelly, pelo próprio Sudeikis e pelo seu adjunto Beard (Brendan Hunt), “Ted Lasso” ensina-nos ainda que é mesmo possível fazer boa ficção sobre futebol (desde a “Fuga para a Vitória” que muitos tentaram e não conseguiram. Afinal, nem todos podem ter o Pelé a fintar nazis e o Stallone a voar entre os postes). É verdade que, aqui e ali, sacrifica a história ao facilitismo feel-good (em que balneário deste mundo estrelas egocêntricas dariam ouvidos às críticas do roupeiro?), mas é um pequeno preço a pagar por cumprir a sua promessa. Acresce trazer uma das melhores bandas sonoras dos últimos anos, ou não andássemos por terras de Oasis, The Verve, The Jam ou Bowie, e sem pudor de ir ao outro lado do canal buscar um “Non, Je ne Regrette Rien”.
Num raro ensinamento trazido não por Lasso, mas por Dani Rojas (Cristo Fernández), o craque mexicano contratado a meio da época: “futebol é vida”. Tão simples e tão difícil de explicar como isso. Porque é que um golo nos salva? Porque é que outro nos atira ao chão? Porque é que nos sentimos instantaneamente ligados pelo mesmo emblema? E nos arrepiamos com um gesto de coragem e choramos com outro de gratidão? Porque é que uma palavra pode fazer tanta diferença como uma finta? Porque é que o cântico das bancadas se transforma na voz de uma coisa só, a garganta de um clube, actualização instantânea de todos os que o sentiram e viveram desde o primeiro dia até aqui?
“Ted Lasso” seria uma história impossível na realidade, mas cumpre exatamente aquilo a que se propõe: deixar-nos felizes, mesmo quando perdemos. E, por embaraçoso que seja ter de lembrá-lo, o importante na vida é isso: ser feliz.
Mas sim. Uma taça dos campeões ajuda.