Vão ser 16 dias com 20 espetáculos, oito deles em estreia nacional. A próxima edição do Alkantara, festival internacional de artes performativas de Lisboa, acontece entre 13 e 28 de novembro em diversos espaços da cidade e apresenta alguns nomes consagrados, como os internacionais Faustin Linyekula e Nacera Belaza, e os portugueses Francisco Camanho e Vera Mantero. Marca também a estreia portuguesa de Dana Michel, que em 2017 na Bienal de Dança de Veneza ganhou um Leão de Prata (para nomes emergentes da dança).

O espetáculo inaugural é “História(s) do Teatro II”, dias 13 e 14 de novembro na Culturgest. A peça do bailarino e coreógrafo congolês Faustin Linyekula envolve dança e teatro e consiste numa revisitação dos anos 70 no Zaire (atual República Democrática do Congo), em especial do então recém-criado Ballet National du Zaïre. Três membros da companhia original vão estar em cena, há vídeos históricos em projeção. O encerramento estará a cargo de Francisco Camacho, nome fundador do Alkantara (quando se chamava Danças na Cidade, nos anos 90), com “Velhas”, a 27 e 28 de novembro no Teatro Municipal São Luiz. O espetáculo pergunta até que que idade se pode dançar e reflete sobre o percurso profissional dos bailarinos.

Os diretores artísticos do festival, Carla Nobre Sousa e David Cabecinha, adiantaram esta semana ao Observador as propostas da próxima edição e explicaram como foi fazer escolhas durante a pandemia, quando na maior parte do tempo os artistas não estiveram em palco e os programadores não puderam viajar para ver e escolher espetáculos.

Reafirmaram também a filosofia do evento, que sempre procurou apresentar expressões culturais de fora do Ocidente, problemas contemporâneos e diversas linguagens artísticas. “Queremos participar continuamente e ativamente em discussões atuais, no repensar de ideias preconcebidas e de visões sobre a cidade e a sociedade”, resumiu o diretor artístico.

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“Velhas”, de Francisco Camacho (Cláudio Marques)

David Cabecinha sublinhou que o Alkantara não é um festival temático, cuja programação anual se baseie num só tema, e sim uma plataforma que “participa em discussões, a partir da criação contemporânea”. Ainda assim, vários espetáculos deste ano apontam para as questões identitárias, cada vez mais na origem de debates acesos, a ponto de integrarem aquilo a que se convencionou chamar “guerras culturais”.

Pode ser o caso de “Atlas da Boca”, espetáculo da artista brasileira Gaya de Medeiros (20 e 21 de Novembro no Teatro Nacional D. Maria II), que aborda as dicotomias a partir de uma investigação feita por duas pessoas transgénero. E o caso de “Jezebel”, da coreógrafa holandesa Cherish Menzo (13 a 15 de novembro no Centro Cultural de Belém), que fala daquilo que considera ser a hipersexualização das mulheres negras na música hip-hop.

Os responsáveis pelo festival destacaram várias outras propostas, apresentando-os antes do mais como “experiências estéticas” mas descrevendo os temas presentes, como forma de facilitar a compreensão do conteúdo. “Contado Pela Minha Mãe”, do libanês Ali Chahrour, em estreia nacional (24 e 25 de novembro, Teatro Nacional D. Maria II). “É a história de uma família no contexto da guerra na Síria. A história é partilhada de forma generosa com o público, através da dança, mas também da música ao vivo, com duas cantoras que interpretam músicas que a mãe cantava ao filho”, explicou Carla Nobre Sousa.

A nova criação de grupo de Vera Mantero, “O Susto é um Mundo” (25 a 27 de Novembro na Culturgest), que dias antes se estreia no Teatro Municipal do Porto. “A coreógrafa está a confrontar-se com os seus sustos e convida-nos a fazer o mesmo. São os sustos que se têm propagado nas sociedades contemporâneas, fascismo, fanatismo, ecocídio”, disse David Cabecinha. Um outro trabalho propõe o mesmo tipo de reflexão, acrescentou: “Altamira 2042”, de Gabriela Carneiro da Cunha (18 a 20 de novembro no Teatro do Bairro Alto), sobre problemas ambientais nas margens do rio Xingu (estado do Pará, Brasil).

Além dos espetáculos, o próximo Alkantara terá duas festas-performance. Uma no dia 13 na garagem da Culturgest, com curadoria da DJ e produtora Ágatha Barbosa (conhecida como Cigarra). Outra no dia 20 no Espaço Alkantara, com o DJ e performer Di Candido (conhecido como Didi), para celebrar o Dia da Consciência Negra que se assinala no Brasil.

“Cutlass Spring” é uma performance da coreógrafa canadiana Dana Michel sobre a sua identidade sexual (Jocelyn Michel)

“Não se voltará a fazer tantas viagens como até ao início da pandemia”

As peças de Faustin Linyekula (“História(s) do Teatro II”) e da coreógrafa canadiana Dana Michel (“Cutlass Spring”, 25 e 26 de novembro, Teatro São Luiz) estiveram programados para o Alkantara do ano passado, mas por causa da pandemia não chegaram a acontecer e estreiam-se agora em Portugal. A edição de 2020 foi especialmente penalizada pelas medidas de contingência, que naquela fase, em novembro, só permitiam fazer espetáculos com metade da lotação e até à uma da tarde.

A propósito dos efeitos da pandemia nas artes, o Observador perguntou aos diretores artísticos como foi programar a próxima edição se durante meses houve confinamentos e quarentenas por todo o mundo. Carla Nobre Sousa respondeu que tiveram de selecionar muitas das propostas a partir de vídeos, em vez de viajarem para verem ao vivo.

“A maior parte dos espetáculos não aparece no festival de um dia para o outro. Normalmente, há uma relação criada com os artistas, conhecemos o percurso e a pesquisa que estão a desenvolver. A partir daí, é mais fácil avaliar um vídeo que nos chega, porque já temos conhecimento presencial anterior sobre aquele criador”, disse a diretora. “Algumas destas formas vão continuar. Os programadores já estão a voltar a viajar, mas já é claríssimo que não se voltará a fazer tantas viagens como até ao início da pandemia.”

O Alkantara está a cumprir 28 anos de existência. Começou como Danças na Cidade, em 1993, projeto da bailarina Mónica Lapa (1965-2001) ligado à efervescência da dança contemporânea em Portugal — à geração da “nova dança portuguesa” — e rapidamente se transformou em festival internacional.

Em 25 anos, o que fez o festival Alkantara pela dança em Portugal?

Depois de uma interrupção em 2003, por falta de financiamento, regressou em 2006 já com o nome atual e um âmbito alargado às diferentes artes de palco. Até hoje teve com diretores artísticos Mark Deputter (ex-diretor do Teatro Maria Matos e atual diretor artístico e um dos administradores da Culturgest) e Thomas Walgrave (cenógrafo belga que ajudou a fundar o grupo de teatro Tg STAN). Carla Nobre Sousa, de 36 anos, David Cabecinha, de 34, dirigem desde 2018.

Festa dos 25 anos do Alkantara, em 2018 (Bruno Simão)

“Queremos que o festival seja o ponto de partida e não uma celebração final”

A periodicidade anual dos primeiros tempos do festival deu lugar a um evento de dois em dois anos e assim se manteve até 2020. Os atuais responsáveis pela Associação Alkantara, organizadora do festival, decidiram entretanto que o festival deveria acontecer a cada ano — uma vontade que já vinha da anterior direção. E em vez de se realizar em maio e junho, como era habitual, passou para novembro.

O objetivo, segundo David Cabecinha é o de “criar lastro e impacto através da regularidade” e “aparecer numa época do ano mais propícia à discussão e ao pensamento”. Realizar o Alkantara no fim da primavera, quando escolas e faculdades estão em época de exames, era menos apelativo para determinados públicos, apontou o diretor.

“Queremos que o festival seja o ponto de partida e não uma celebração final. Para também tirarmos partido do espaço que temos, aqui em Santos, a ideia é desenvolvermos uma programação ao longo dos meses a partir dos espetáculos e dos temas de cada edição do festival”, acrescentou a diretora. Essa programação já tem acontecido, é uma componente não do festival mas do Espaço Alkantara — um edifício cedido pela Câmara de Lisboa no número 99 da Calçada Marquês de Abrantes, onde a Associação Alkantara tem sede desde 2007. “A periodicidade bienal quebrava um pouco esta dinâmica de partilha e reflexão ao longo dos meses”, resumiu David Cabecinha.

Os espectadores do Alkantara “não se dividem por idades ou tipologias de qualquer ordem”, mas sim em função da atitude que têm perante as propostas, segundo o diretor. “Sobretudo temos um público curioso e com vontade de participar em discussões que para nós são urgentes e que estão a acontecer na sociedade e nas artes performativas.”

O festival é financiado pelo Ministério da Cultura, através da Direção-Geral das Artes, e pela Câmara de Lisboa. O orçamento deste ano é de 424 mil euros, segundo os organizadores, o que representa um incremento de 71 mil euros face aos 353 mil de 2020. São valores parcelares, aos quais acrescem parcerias e montantes de coprodutores de espetáculos, como teatros e fundações. Os bilhetes custam entre 7 e 16 euros, mas há eventos com entrada livre.