Os resultados do inquérito realizado pela comissão nacional do Conselho Internacional de Museus (ICOM-Portugal) são um “primeiro passo importante” de “um longo caminho a percorrer” para o conhecimento das coleções dos museus portugueses e suscitar a reflexão.

O inquérito inédito, realizado online, sobre a presença de património proveniente de territórios não europeus nos museus portugueses públicos e privados, cuja adesão foi inferior à esperada, revelou “algumas surpresas”, indicou à agência Lusa a presidente do ICOM-Portugal, Maria de Jesus Monge.

Lançado em finais de maio pelo ICOM Portugal, teve como objetivo promover um maior conhecimento do património das coleções à sua guarda, numa perspetiva de compreender a sua quantificação, distribuição pelo país, estado de conservação, estudo e inventariação, e o modo como foi incorporado nos acervos.

Recolhidas as respostas, a China revelou-se o país mais representado, o que não surpreendeu a presidente deste organismo: “Quando falamos de coleções não europeias, não é na China que as pessoas pensam. Ninguém se lembra da quantidade de porcelana chinesa que existe nos nossos museus”, apontou, sobre um resultado que vai contra a ideia dominante de que é África e não Ásia, o continente mais representado.

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“As peças da China serem as mais representativas, uma das conclusões deste inquérito, pode surpreender muita gente, mas para mim não é uma surpresa, é até muito evidente, porque conheço muito bem os museus portugueses”, comentou a presidente do ICOM sobre os resultados deste estudo inédito em Portugal.

Maria de Jesus Monge considera que “certas surpresas” só podem ser entendidas “com este tipo de inquérito sistemático”, porque “obriga a refletir sobre um preconceito, no sentido de se estar à espera de uma resposta diferente”.

Uma ideia preconcebida “só é testada com dados objetivos”, vincou a também diretora do Museu do Paço de Vila Viçosa.

“O nosso objetivo é iniciar este tipo de conversa com dados sólidos, não apenas com perceções, muito erróneas”, reiterou, sobre uma das metas principais deste inquérito voluntário, sem pedidos direcionados, realizado através dos canais de comunicação do ICOM-Portugal, nomeadamente a página na rede social Facebook, o sítio online, bem como a newsletter desta entidade não governamental que defende boas práticas no setor museológico.

Outra questão que surgiu da realização do inquérito foi aquilo a que o ICOM-Portugal chama de “adesão moderada” dos museus portugueses: de um universo de 414 museus de todas as tutelas, públicas e privadas, apenas 45 responderam.

Até que ponto é que podemos considerar que cerca de 40 museus que respondem é significativo em relação ao universo total e refletem a realidade?”

As respostas rondam 11 por cento do universo museológico nacional, “sabendo que nem todos os museus têm coleções deste tipo de peças, porque há muitas, por exemplo, de museus locais, que estão voltadas para a memória local, e não para peças com estas proveniências”, observou a responsável.

Responderam sobretudo museus cujas coleções têm um caráter artístico (25 respostas) ou etnográfico (23), seguidos de coleções arqueológicas (11), História Natural e documentais (ambas com sete) e restos humanos (seis), indicam os resultados preliminares do inquérito.

“Há algumas ausências de museus nacionais que teria sido importante que participassem e não participaram, por opção. Não queremos dizer nomes porque é desagradável, mas há de facto duas ou três instituições nacionais que nos surpreendeu que não tivessem aderido”, lamentou, comentando que chegaram a ser contactados “todos os que tinham coleções de tal modo significativas que seria importante obter uma resposta”.

Contactado pela Lusa, Paulo Costa, diretor do Museu Nacional de Etnologia — onde cerca de sessenta por cento das suas coleções são não europeias, provenientes de 80 países — indicou que respondeu ao inquérito, mas não adiantou pormenores.

“Tivemos excelentes respostas dos museus universitários, que, aliás, são os que têm um conhecimento mais profundo destas tipologias, e também das regiões autónomas, porque foi possível falar diretamente com as entidades que tutelam os museus. Foi [uma resposta] muito expressiva, tanto da Madeira como dos Açores”, salientou Maria de Jesus Monge.

Ressalvando que “é sempre mais difícil chegar aos privados”, a presidente do ICOM-Portugal lamentou ainda: “A Rede Portuguesa de Museus [RPM] não quis divulgar este inquérito, portanto há toda uma série de museus [que ficaram de fora] porque não vão ao nosso Facebook, nem ao nosso site”.

Contactada pela Lusa sobre esta matéria, a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), que tutela a RPM — um sistema organizado de museus, baseado na adesão voluntária para a descentralização, qualificação e cooperação entre museus, composto por 158 membros de várias tutelas – indicou: “Efetivamente o ICOM solicitou à DGPC a divulgação do inquérito junto dos museus que integram a RPM, mas fê-lo num email enviado somente no final da tarde do dia 15 de outubro, que era exatamente a data de termo do inquérito”.

Sobre a importância da iniciativa do inquérito, acrescenta a DGPC: “Parece-nos uma excelente ação como ponto de partida para o conhecimento da realidade dos museus com vista a futuro aprofundamento de um tema cuja atualidade é iminente e cuja análise importa trazer para a comunidade museológica portuguesa, bem como para a reflexão das instituições museológicas e da administração do património cultural”.

“Consideramos que o conhecimento das coleções não europeias e dos contextos históricos e científicos de incorporação nos museus portugueses perspetiva-se fundamental para melhor enquadrar na contemporaneidade o debate sobre uma questão que se afigura incontornável: a da reflexão e reavaliação do papel dos museus com acervos coloniais e das funções e significados múltiplos destas coleções”, acrescenta a DGPC num email de resposta enviado à Lusa.

Por seu turno, Maria de Jesus Monge considera que, “mesmo assim, com a divulgação realizada nos canais ICOM-Portugal, e passando a palavra entre colegas, houve alguns que não responderam porque não se deram conta” do inquérito em curso.

“As pessoas são bombardeadas com muita informação e com este tipo de solicitações. Talvez tenha sido uma parte falha nossa a pedir respostas a todos os museus, mesmo que não tivessem esse tipo de peças, mas o canal de resposta não permite interagir. Portanto, é muito importante que seja veiculado por instituições”, defendeu.

Esta situação, na opinião da museóloga, “também demonstra o caminho que ainda há a fazer no conhecimento destas coleções e de revelar, para fora, o que as constitui”.

“Apesar de tudo, conseguimos dar um primeiro passo importante numa estrada mais longa. [O resultado] mostra o longo caminho a percorrer”, conclui.

Depois de conhecer estas coleções e as suas origens, o ICOM-Portugal propõe-se ajudar os museus a identificar as peças que não estejam catalogadas com precisão, com recurso a especialistas internacionais, porque o organismo “possui uma rede muito vasta de ligações com competências técnicas para isso”.

Os resultados do inquérito são apresentados no decorrer do “Encontro de Outono” do ICOM-Portugal, subordinado ao tema “Museus com coleções não europeias”, que está a decorrer esta quinta-feira, e continua na sexta-feira, no Museu Municipal Santos Rocha, na Figueira da Foz, com a presença de especialistas e vários responsáveis portugueses e estrangeiros, nomeadamente, Ana Margarida Ferreira, do Museu Santos Rocha, Luís Raposo, presidente do ICOM-Europa, Elke Kellner, do ICOM Áustria, Guido Gryseels, do Royal Museum for Central Africa, na Bélgica, e Luís Pérez, Museo Nacional de Antropologia, ICOM Espanha.