Nem todos os discos que fazem trinta anos serão igualmente significativos em 2021. Mas alguns são incontornáveis se queremos contar a história da época e dos anos que se seguiram. 1991 foi o ano de Blue Lines dos Massive Attack, Screamadelica dos Primal Scream, Nevermind dos Nirvana, Ten dos Pearl Jam, só para citar alguns dos discos consensualmente marcantes. A lista poderia continuar, disparar em várias direções e tornar-se extensa, mas nunca estaria completa sem Loveless, o segundo álbum de My Bloody Valentine.

No capítulo específico do rock, é certamente um dos discos mais revolucionários de 1991, muito embora o seu impacto na altura tenha sido bem mais discreto do que o dos discos de grunge, por exemplo. Mas, trinta anos depois, a muralha de experimentação sónica erguida por Kevin Shields em Loveless continua a desafiar e encantar, e a fazer-nos fitar a biqueira dos sapatos à procura do ponto de foco hipnótico, como era obrigatório na altura, segundo as regras do shoegaze (que também recomendava o uso de cabelo longo, ou com franja que pudesse ser abanada). Continuamos sem conseguir perceber o que dizem as canções, mas isso não impede que gostemos delas, até porque nunca foi intenção da banda que as letras fossem “decifráveis”. A voz, tal como as guitarras, são só mais um elemento do todo.

[ouça “Loveless” na íntegra através do Youtube:]

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os My Bloody Valentine apareceram quase do nada, perto do final dos anos 80, como heróis shoegaze, movimento de bandas de guitarras que também agregou nomes como Ride ou Lush, e foi assim designado porque os músicos usavam muitos pedais de efeitos e precisavam olhar para o chão para não se confundirem. É verdade que a pose foi replicada pelo mundo enquanto imagem de angústia juvenil, coisa que a música até sublinhava, mas na sua essência, as razões de olhar para o chão são de ordem prática e técnica. As canções do shoegaze eram pop, mas o som era hipnótico, intenso, cheio de ruído e distorção.

Nada disso era propriamente novidade. Bandas como Pink Floyd, Velvet Underground, Sonic Youth, Cocteau Twins, Jesus and The Mary Chain ou Spacemen 3 ou já tinham preparado os nossos ouvidos para sinfonias de ruído. O que aconteceu de especial com os My Bloody Valentine, particularmente em Loveless, foi terem conseguido a síntese perfeita de todas essas referências, criando uma teia de canções frágeis, envoltas em camadas de som e reverberação, que tanto as tornam etéreas e delicadas como as deixam à beira do caos. A beleza do disco está de resto nessa tensão, ou no equilíbrio entre tensão e libertação pacificante.

[“Only Shallow”:]

As origens da banda são mais antigas do que a sua fama. Os My Bloody Valentine são de Dublin, Irlanda. Kevin Shields, vocalista e guitarrista, Colm Ò Cíosóig, baterista, e David Conway, o primeiro vocalista, foram os fundadores em 1983. Durante alguns anos andaram à procura de um caminho e de uma formação estável, assumindo de forma mais ou menos óbvia a influência de bandas como Cramps ou Birthday Party. Depois mudaram-se para Londres, assinaram pela Creation e tornaram-se nos tais heróis shoegaze. O primeiro álbum, Isn’t Anything, saiu em 1988 e colocou-os no centro das atenções com canções como “Cupid Come”, “Sueisfine” ou o glorioso “Feed Me With Your Kisses”. Isn’t Anything converteu muita gente aos maneirismos shoegaze e é um dos grandes discos de rock do final dos anos 80, mas era só uma amostra das capacidades dos My Bloody Valentine.

Inspirado pelo sucesso do primeiro álbum e confiante no futuro, Alan McGee, patrão da editora Creation, pediu um novo disco a Kevin Shields, que aceitou o desafio, mas demorou algum tempo a finalizar o projeto. Loveless levou dois anos a fazer, foi gravado em 19 estúdios diferentes e terá custado 250 mil libras, uma verdadeira fortuna na época. Diz-se que levou a Creation à falência, mas pode não ter sido o único fator. A história da música está cheia de segundos álbuns problemáticos, normalmente maus. No caso de MBV o resultado foi prodigioso, mas o processo infernal. A banda não tinha dinheiro, vivia em casas ocupadas, mas Kevin Shields tinha uma visão, era perfeccionista, queria fazer canções pop de forma diferente e isso levou tempo, sobretudo de reflexão, misturada com alguma indulgência criativa, e contratempos vários.

[“Soon”:]

Consta que só a pandeireta de “To Here Knows When” levou uma semana a ser gravada e não se pode dizer que soe complexa, muito embora tudo na canção pareça perfeito. Loveless tem muito trabalho, efeitos e multiplicações, as vozes por exemplo estão dobradas 10 a 18 vezes, a bateria é sobretudo feita com samples porque Colm adoeceu durante as gravações e tiveram que improvisar usando material pré-gravado. Há extrema minúcia e criatividade nos detalhes, apesar da densidade geral dar uma aparência caótica. Kevin Shields apurou a sua forma de tocar guitarra e processar o som, desenvolveu técnicas novas que envolvem dezenas de pedais de efeitos e amplificadores, e não parou antes de conseguir concretizar a visão sónica que tinha na cabeça.

O disco foi gravado sobretudo em sessões noturnas, o que se refletiu de forma positiva, por exemplo, nas vozes (sono)lentas de Bilinda Butcher e Kevin Shields, mas acabou por ter efeitos secundários indesejáveis. Shields adormeceu com os auscultadores durante as sessões de gravação e, por causa disso, desenvolveu um grave problema de audição. De resto, consta que todos os elementos dos My Bloody Valentine ficaram surdos por causa de Loveless, não apenas pelo volume de som durante as gravações, mas também pelos espectáculos, em que faziam (ainda fazem) questão de tocar com o volume no máximo (por isso mesmo, distribuem tampões antes dos concertos e recomendam o seu uso).

Loveless pede para ser ouvido alto, é um facto, mas também resulta baixinho, quase como tapete ambiental. Em qualquer caso, prende-nos do princípio ao fim. Sob a barreira de distorção aparentemente impenetrável, tem melodia e harmonias doces, algures entre Beatles e Sonic Youth, com piscadelas de olho aos Jesus and Mary Chain, banda que Kevin Shields sempre admitiu admirar. Por causa da voz etérea de Bilinda Butcher, é inevitável pensar nos Cocteau Twins, também eles uma referência para a maioria das bandas shoegaze, mas Shields não lhes reconhecia grande influência.Talvez surpreendentemente refere, sim, os Public Enemy. Numa entrevista à Rolling Stone, em 2017, fala dos primeiros álbuns da banda de Chuck D e como foram uma grande inspiração na altura em que fazia Loveless: “Adorava a frontalidade do som e o facto de não tentar pacificar o ouvinte com coisas bonitinhas”.

[“To Here Knows When”:]

Apesar das citações ou evocações, Loveless soa bastante original, serve como cartão de identidade dos My Bloody Valentine, no sentido em que representa o seu ADN. Foi esse material genético único que tornou a banda mítica, e manteve os fãs em suspenso até 2013, altura em que finalmente foi editado MBV, o sucessor de Loveless, disco que Kevin Shields terá começado a fazer em 1996. Depois da saída de Loveless, a banda acabou por ir definhando, com cada um dos elementos a seguir caminhos diferentes e Kevin Shields a mergulhar num período obscuro que alguns compararam ao que aconteceu a Brian Wilson ou Syd Barrett.

A verdade é que os anos passaram, os My Bloody Valentine até já voltaram aos palcos e aos discos, mas Loveless continua relevante e vibrante. É um disco intenso e melancólico, sonicamente arrojado e fascinado pela experimentação. Nos anos 90, a sua influência foi sentida em várias bandas, algumas do grunge, como os Smashing Pumpkins, ou as Hole, mas o legado não esmoreceu com o passar do tempo, pode ser sentido em bandas como Radiohead, Sigur Ros, Beach House ou Deerhunter. Há até uma banda de bluegrass que fez uma versão acústica de Loveless.