Há quem assista a repetições de jogos de futebol com verdadeiro prazer, sejam eles derbies como o Sporting-Benfica de 1986 ou derbies como o Varzim-Rio Ave de 2000. Em miúdos, todos tivemos um filme fétiche que revimos dezenas de vezes – para desespero dos adultos lá de casa e de nós próprios quando chegámos a adultos. Esta segunda-feira à noite no Teatro Tivoli, em Lisboa, na estreia de “Um Português e um Brasileiro entram num Bar…”, os humoristas Ricardo Araújo Pereira e Gregório Duvivier testaram os efeitos da repetição ao nível do espectáculo ao vivo. Reciclagem, reutilização, partilha: a sustentabilidade acima de tudo; por vezes, até do próprio humor.

“Isto não é um espectáculo; é uma conversa”, arranca RAP, em jeito de “disclaimer”, como se diz na língua que ambos apelidarão de “bárbara” (em português, “aviso legal”; “com a verdade me enganas”, em bom português). “Um pretexto para eu vir a Portugal”, reforça Duvivier. “Aliás”, de novo RAP, perante a primeira de cinco plateias esgotadas, “a piada mais engraçada deste espectáculo é capaz de ser o bilhete.” Duvivier remata, repetindo aquilo que dissera ao jornal Expresso dias antes, na única entrevista que ambos concederam juntos: “Acho surpreendente como pessoas compram coisas que não sabem para o que servem, como o iPad. Este espectáculo é uma espécie de iPad.”

Anunciado a 7 de outubro como “duas noites únicas” com “duas figuras ímpares”, este “verdadeiro pingue-pongue humorístico sobre as questões que mais inquietam os dois humoristas” (que por razões de economia de espaço continuaremos a nomear “espectáculo”) não teve tanta procura como o iPad, de que só em 2000 se venderam perto de 80 milhões de unidades, mas percebe-se a analogia: de duas datas passou a cinco e Duvivier assim tem também um pretexto para ir ao Porto. Fora de brincadeiras, Araújo Pereira apressou-se a tranquilizar a multidão: “A gente tem temas. E é coisa séria: está escrita a caneta.”

Esta não foi a primeira vez que os dois se juntaram em palco. Já tinham feito em 2017, “com grande sucesso”, sublinhava o anúncio à imprensa. Daí este regresso, que, assegurava o brasileiro ao Expresso, não seria nada de diferente do que qualquer um de nós, espectadores, já poderia ter visto no YouTube. Munidos cada um do seu caderno de notas, sentados em duas confortáveis poltronas de pele, rodeados por candeeiros, aparador e mesas de apoio, tudo em estilo vintage e intimista, os dois humoristas prepararam-se assim para voltar a fazer aquilo que já tinham feito perante um público que já os teria visto contar as piadas com que já se teria rido.

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Se por esta altura isto já lhe começa a soar a implicação, é capaz de estar certo – ou certa. Porque, sim, eles são muito bons. E resolvem isto sem esforço. Porque, sim, as tais inquietações fazem-nos rir. E RAP conta-as sempre como se fosse a primeira vez – mesmo quando é 34ª. Porque, sim, toda a gente recicla material. Ou vai dizer que não há um limite para o número de voltas que se pode dar em torno da língua portuguesa?

Sim, a língua portuguesa. Este é um espetáculo sobre a língua portuguesa – já agora, mesmo insistindo no não-termo deste texto, ambos preferiam que fosse “espectáculo”, com “c”. Tal como “arquitectas” e não “tetas”. E por aí fora. Numa dinâmica com qualquer coisa de Statler e Waldorf (da altura em que os velhotes de Os Marretas andavam incomodados com o Acordo Ortográfico de 1990), RAP e Duvivier, o alto e o baixo, o clássico e o contemporâneo, o tenso e o descontraído, dedicam duas horas de espectáculo a dissertar sobre aquilo que Duvivier apelida de, citando o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw, “dois países separados por uma mesma língua”. Que no caso dos dois é também um amor assolapado. E tem graça quando o autor de “Caviar é uma Ova” percebe como se diria “cafuné” em português de Portugal: “Para um brasileiro, a ideia de fazer festas na cabeça é maravilhosa!”

A modalidade faz lembrar os eventos de “public speaking” americanos, que passámos a conhecer quando se estreou a série da Netflix “Pretend It’s a City”, com a mestre Fran Leibowitz. O público, desejoso, ri-se sempre que pode, mas sente-se falta de alguma paixão, já para não falar de interrupções ou arrebatamento. É um primeiro encontro, talvez seja por isso. Num texto recente para a Folha de São Paulo, Duvivier falava da suposta habilidade dos alemães para criarem palavras para tudo. “Não tem não”, repetiu no espectáculo de ontem. “Vocês [os alemães] é que põem tudo numa palavra. Em português, para as palavras copularem, elas precisam de um clima.”

Sentados lado a lado, surfando a língua e suas bizarrias, os dois vão afinando agulhas: dos limites do humor aos limites de Madonna em Portugal, passando pelas comparações entre “pepeca” e “patareca”, um bebé e a Taça dos Campeões, Nossa Senhora de Fátima e os influencers – ou “endrominators”, na versão de RAP, conhecido asceta das redes sociais.

À falta de material original, o português vale-se da mímica e do talento para a execução. Surge, aliás, sob a forma de interjeição a piada que vale o primeiro aplauso espontâneo da noite, já vão eles com uma hora de espectáculo. Duvivier, por seu lado, com o trunfo da menor exposição por cá (embora #Internet), seduz pela formulação carinhosa de nuances e imperfeições: “Um estrangeiro não sabe o que são ‘15 minutinhos’. É capaz de ficar furioso se a pessoa chegar 40 minutos depois. Não sabe que não é uma medida de tempo, mas de sensação.”

São enternecedores os momentos em que pai-coruja e pai-galinha, nas denominações dos respetivos países falam das respetivas filhas. Já perto do fim, quando, à falta de mais temas, o público é convidado a participar com perguntas, a coisa parece ganhar fôlego – ou clima. E não é só porque uma rapariga se oferece para ter um filho de RAP.

Ao fim de cerca de 120 minutinhos, os dois entreolham-se e com a mesma desfaçatez com que começaram resolvem pôr fim à conversa: “Vamos pagar bilhete, mas vai valer mesmo a pena porque eles vão falar mal do acordo”, provoca RAP. Ainda há, contudo, tempo – ou uns minutinhos – para poesia, no caso de Duvivier, e do seu livro satírico Sonetos de Amor e Sacanagem. Em jeito de despedida, ouve-se o “Soneto à Língua Mãe”: “Graças a nós, mãeinha, és imortal.”

“Um Português e um Brasileiro entram Num Bar…” volta ao palco do Tivoli esta terça-feira, 23. A 28 de novembro está na Aula Magna, em Lisboa. A 29 e 30 vai estar no Teatro Sá da Bandeira, no Porto