Hollywood está hoje de tal forma financeiramente dependente do mercado chinês, que não só se submete à censura dos organismos culturais do Partido Comunista da China, como pratica a auto-censura. Alguns exemplos recentes. “Duna”, de Denis Villeneuve, teve que ser aprovado pelos censores chineses antes da estreia mundial, e a produção da fita preocupou-se em selecionar um actor chinês para interpretar um dos papéis que foi vivido por ocidentais nas duas adaptações anteriores do livro de Frank Herbert, o filme de David Lynch de 1984 e a minissérie de televisão de 2000.

No filme da Marvel “Doutor Estranho”, uma personagem tibetana foi transformada em ocidental, porque a menor menção ao Tibete e aos tibetanos impediria a fita de ser exibida na China. Antes da estreia de “Velocidade Furiosa 9”, o ator John Cena teve que postar um vídeo na rede social chinesa Weibo, em que pedia desculpa por se ter referido a Taiwan como um país, durante uma entrevista de promoção da fita. Num dos “trailers” de “Top Gun: Maverick”, a personagem de Tom Cruise tinha no blusão de voo um emblema com a bandeira de Taiwan, que foi apagado digitalmente nos “trailers” seguintes. E há mais, muito mais casos semelhantes. Tantos, que já originaram artigos em jornais e revistas americanas, bem como a um estudo da PEN America, intitulado “Made in Hollywood, Censored in Beijing”.

O crescente investimento de produtoras chinesas no cinema americano obriga ainda a que o elenco dos filmes, em especial dos “blockbusters”, tenham pelo menos uma personagem chinesa, mesmo que num papel de segundo plano ou passivo. Na China, tais personagens são jocosamente referidas como “jarras de flores”, porque a sua presença é quase sempre decorativa. As personagens chinesas de destaque têm que ser obrigatoriamente representadas de forma positiva, como acontece em “Agentes 355”, o filme de ação e espionagem de Simon Kinberg, com Jessica Chastain, Diane Kruger, Penélope Cruz, Lupita Nyong’o e a chinesa Bingbing Fan, que interpreta uma bela e intrépida agente dos serviços secretos chineses.

[Veja o “trailer” de “Agentes 355”:]

Mas “Agentes 355” não se limita a esta caracterização estereotipadamente heroica da personagem de Fan. O argumento implica ainda que a perigosíssima arma ultra-secreta informática que está no centro da história, o clássico “MacGuffin” popularizado por Hitchcock nos seus filmes, e que é desejada por um lote de temíveis vilões internacionais, desde mafiosos milionários do Leste a terroristas islâmicos, ficará segura e não correrá qualquer risco de ser mal utilizada, se for parar às mãos dos serviços secretos chineses e entregue aos seus patrões do Partido Comunista em Pequim.

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Sobre o ser mais um exemplo de como a China usa o cinema de Hollywood como veículo para a sua estratégia de “soft power” mundial, “Agentes 355” é uma caricata e espalhafatosa versão mutante e feminista dos filmes de James Bond e “Missão:Impossível”, em que Jessica Chastain, representando a CIA, Diane Kruger, os serviços secretos alemães, Lupita Nyong’o, uma ex-operacional do MI6 especialista em informática, e Penélope Cruz, uma psicóloga colombiana que se vê arrastada para o grupo, formam, com a citada Bingbing Fan, uma versão de espionagem das Spice Girls.

[Veja uma entrevista com Jessica Chastain, Diane Kruger e Penélope Cruz:]

Elas espalham “girlpower” não a cantar e a dançar, mas sob a forma de ultraviolência, sedução e domínio das tecnologias mais avançadas onde quer que vão, de Paris a Marrocos, de Londres a Xangai. E fazem gato-sapato dos homens, que são traidores, vilões, xóninhas ou figuras secundárias e inofensivas, enquanto elas cosem à facada, ventilam a tiro e dão pancada de meia-noite em colegas vira-casacas, mercenários matulões, assassinos profissionais e terroristas sortidos, e rebentam com hotéis de luxo.

O título do filme, “Agentes 355”, é uma homenagem àquela que terá sido a primeira espia americana e usou este número de código, e cuja identidade é objeto de muitas especulações pelos historiadores. A agente 355 atuou durante a Guerra da Independência, no século XVIII, e terá sido casada com um dos homens que recolhiam informações para o general e futuro presidente dos EUA George Washington. Já houve uma série de televisão sobre ela, “Turn: Washington’s Spies”, em 2014, sem chineses no elenco. O que, no estado humilhante de submissão e dependência financeira da China a que Hollywood chegou, talvez já não suceda numa possível versão para cinema.