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Celebremos o drama, cantemos o desejo, dancemos no mundo de Mitski

Este artigo tem mais de 2 anos

A compositora norte-americana despediu-se dos palcos, refugiou-se durante dois anos, até regressar triunfalmente com "Laurel Hell", o seu álbum mais pop, com a mesma angústia de sempre.

Em "Laurel Hell", Mitski está definitivamente entregue à soltura da pop, mas com firme controlo da sua arte
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Em "Laurel Hell", Mitski está definitivamente entregue à soltura da pop, mas com firme controlo da sua arte

Em "Laurel Hell", Mitski está definitivamente entregue à soltura da pop, mas com firme controlo da sua arte

A pandemia trocou as voltas ao calendário, mais máscara menos máscara, de mãos untadas de álcool gel, nem demos por ela, são quatro anos sem um novo álbum de Mitski, um dos prodígios da canção confessional. A última vez que vimos a compositora norte-americana estávamos no Festival Paredes de Coura, em 2019, verão pré-pandemia, fim de tarde solarengo, concerto performativo coreografado ao detalhe, em volta de uma secretária e uma cadeira, incluindo uma sessão de pilates, e outras sensualidades que tais. E sempre de rosto impassível, como se não estivesse de licra diante de milhares de pessoas, no meio da mata do Alto Minho. É tudo teatro, que Mitski estuda com afinco dramaturgos como Jerzy Grotowski e Antonin Artaud — e recentemente revelou que esta persona inabalável em palco era de uma fragilidade extrema, mera máscara para sobreviver à extenuante digressão mundial. Um mês depois, noutra mata, o Central Park de Nova Iorque, anunciou que aquele seria “indefinidamente” o seu último concerto. E Mitski nunca mais subiu a um palco.

Seguiu-se um episódio obrigatório na jornada do herói confessional: a reclusão. O álbum de 2018, Be the Cowboy, trinta minutos de cowboyadas de guitarra e sintetizadores, de queixumes de amores e solidão, é aclamado por todo lado, uma primeira conquista do universo pop, concertos de abertura de Lorde e a malta do Tik Tok em bailaricos, mas a felicidade que procurava intensamente desde “Happy”, nem vê-la. O manual do herói confessional — redigido por gente como Bob Dylan, que no auge da carreira desapareceu e refugiou-se em Woodstock — enuncia que a compositora Mitski tinha que sair de cena, mais especificamente de Brooklyn. E como estamos no século XXI, o primeiro passo foi abandonar as redes sociais, só depois mudar-se definitivamente para Nashville, terra de rios e espaços abertos, liberdade até onde a vista alcança — conto do vigário, que em três tempos começou uma pandemia e os consequentes confinamentos.

A capa de "Laurel Hell", o novo álbum de Mitski, com edição marcada para dia 4 de fevereiro (Dead Oceans/Popstock)

Quando Mitski anunciou o hiato, nem a poeira tinha assentado e já tinha composto uma nova canção, “Working for the Knife”, que seria o primeiro single para o quinto álbum de originais, Laurel Hell (que é editado a 4 de fevereiro). O sintetizador carregado, em grande drama, impõe um cenário de suprema introspeção, local confortável para esta compositora que há quatro anos, em “Washing Machine Heart”, pegou no martelar dos sintetizadores para recriar o som da máquina de lavar roupa, método eficaz para arrumar a roupa suja existencial — “Toss your dirty shoes in my washing machine heart”. E “Working for the Knife” segue esta mesma linha existencial:

“I used to think I’d be done by twenty
Now at twenty-nine, the road ahead appears the same
Though maybe at thirty, I’ll see a way to change
That I’m living for the knife”

[“Working for the Knife”:]

E entram as guitarras distorcidas, é armada de sintetizador e guitarra que Mitski nos encanta desde Puberty 2, o seu terceiro álbum de originais, quando a maioria da população melómana a conheceu — exceto claro, aquele amigo, e todos temos este amigo, que já conhecia Mitski desde o primeiro EP gravado na garagem, quem sabe desde que começou a gatinhar, os primeiros grunhidos em bebé, nesses tempos é que era bom. No entanto, o dramalhão de sintetizador-guitarra-sintetizador em “Working for the Knife” é invulgar, Mitski equipara a sua própria labuta de fazer canções a uma faca, a composição é algo cortante e suicida, a exposição pessoal está a soldo por um punhado de dólares. É o conhecido desconforto do compositor confessional em transformar a sua desgraça em produto embalado, pronto a vender. E ao mesmo tempo, como em todas as composições de Mitski, este existencialismo é enviesado, ela está a reinar connosco:

“I always thought the choice was mine
And I was right, but I just chose wrong
I start the day lying and end with the truth
That I’m dying for the knife”

As desgraças confessionais são cantadas com um sorriso no rosto, um trocadilho e um piscar de olhos — ouça-se no álbum anterior o hino “Nobody”, a dança sedutora de uma mulher avassaladoramente solitária — e agora está reclamar de compor e cantar, enquanto compõe e canta. Esta é a essência de Mitski: são dramas auto-depreciativos, mas com jogos de palavras anedóticos e melodias bem-dispostas, afinal isto não é um velório, se qualquer coisa é rock’n’roll.

“Working for the Knife” não é a primeira canção de Laurel Hell, a honra está reservada a “Valentine, Texas”, com direito a boas-vindas: “Let’s step carefully into the dark”. Ora essa, faça favor, vamos lá para a negritude da alma de Mitski, aqui está a ostentação de um sintetizador colossal, e a poesia de, quem eu sou, e para onde vou. É mais uma panóplia de questões humanas e amorosas, mais um álbum de Mitski Miyawaki, norte-americana que nasceu no Japão, filha de uma japonesa e um americano funcionário do Departamento de Estado dos Estados Unidos, família que correu meio-mundo — e não perguntem mais detalhes biográficos que Mitski preza o mistério entre o artista e o público. Laurel Hell é o nome destas novas angústias, meia-hora de duração como de costume, músicas curtas com o único propósito de nos atingir violentamente. O “inferno do louro” — Laurel Hell — é uma expressão do povo Appalachia para o denso arbusto de louro que cresce desalmadamente e prende almas penadas, e a capturada é Mitski, novamente atraída pelos labirinto de sofreguidão, pela beleza fatal das flores de louro — é o mesmo ciclo vicioso de “A Pearl”, a relação tóxica como uma pérola fascinante.

[“Love Me More”:]

“Stay Soft” abre os portões do inferno — “Open up your heart like the gates of hell” — e a pista de dança, meados da década de oitenta, imaginem os Pet Shop Boys deprimidos, com a ajuda preciosa do recorrente produtor Patrick Hyland, nunca Mitski esteve tão desamarrada das lides da guitarra, já ninguém se lembra da dinâmica rock quieto-barulho dos dois primeiros álbuns. “Love Me More” é esta reencarnação de Mitski no limite, compasso de dança ao piano, disco music fora de época, circa 1983, a batida de uma LinnDrum, luzes fluorescentes e uma bola de espelhos. E “Should’ve Been Me” não lhe fica atrás, atrevemo-nos a descrever a canção melodramática como francamente alegre, um quase inédito para esta compositora lúgubre. O maior assombro pop de Laurel Hell é “The Only Heartbreaker”, na mesma veia de canção clássica de “Your Best American Girl”, um coração quebrado de guitarra em punho, cabelo ao vento, a lamentar que o jogo está viciado, ela roda os dados e calha sempre a tristeza ao mesmo — Mitski já nos tinha avisado em “I Bet on Losing Dogs” que é especialista em relações condenadas.

Em parte, Laurel Hell é um álbum de baile, mas o retrato é igualmente negro, minimal e solitário. A batida elementar de “Everyone”, mais Kraftwerk que Pet Shop Boys, em contraponto com a paisagem de melodrama, e mais uma vez o humor sádico, a entrega fatídica aos braços de quem não devia:

“Everyone said
All of them
Everyone said
Don’t go that way 

So of course
To that I said
I think I go that way”

[“The Only Heartbreaker”:]

Mitski entrega-se de olhos cerrados à tempestade, esta fatalidade é reforçada em “Heat Lightning”, entre o acordada e o sonhar, recorda o transe de “Venus in Furs”, se houvessem  mesas de mistura ao serviços dos The Velvet Underground. E no outro lado da tormenta, o final da relação de “I Guess”, a melancolia resignada que estamos no fim da linha. Esta história termina em “That’s Our Lamp”, cada um para seu lado, um final de álbum esfuziante, o tal alegre sintetizador de oitentas, aqui quase de feira, com Mitski a renegar gloriosamente o ciclo vicioso de incertezas e desafeição. A solução, por agora, é outro passo de dança solitário, desta feita com dignidade, o devido amor-próprio, mais uma voltinha em honra das relações condenadas.

Após a reclusão, é inevitável, eles não resistem, os cantautores confessionais regressam triunfalmente, e teremos um 2022 com Mitski Miyawaki em palco, uma nova digressão mundial, incluindo a fazer aberturas para Harry Styles. Laurel Hell é o cartão de visita, a continuação da expansão pop de Mitski, menos eclético que Be the Cowboy, menos genial que Puberty 2 e mais preciso e eficaz que qualquer um dos seus álbuns anteriores. É Mitski definitivamente entregue à soltura da pop, mas com firme controlo da sua arte, o mesmo produtor, e a mesma temática insalubre — desamor, desengano, e solidão — e com uma extraordinária pomposidade, que isto de celebrar a desgraça merece todos os foguetes e brindes.

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