Não é sobre uma história de amor este livro soberbo de Abdulrazak Gurnah. O mais recente romance escrito pelo Nobel da Literatura de 2021, Vidas Seguintes, fala, na verdade, sobre os redutos de humanidade que conseguem persistir nos momentos mais atrozes que possamos estar a viver. São esses balões de compaixão que permitem que venham a acontecer as histórias de amor. Porque sem essas pequenas grandes ações o curso da vida de algumas pessoas ter-se-ia afundado de vez num poço bem fundo.

Como são os casos de Afiya e Hamza, os dois jovens desta história que se perdem de amores um pelo outro. Esse encontro só veio a ser possível porque Afiya, órfã, foi retirada em criança de uma família abusiva primeiro pelo irmão mais velho – que tinha desaparecido há muito – e depois por um amigo deste, que a acolheu em sua casa já o irmão se tinha alistado na guerra. Educou-a como se fosse sua filha.

A guerra de que se fala é a Campanha da África Oriental levada a cabo pelas forças alemãs durante a I Guerra Mundial. Naquilo que é hoje a Tanzânia, o Burundi e o Ruanda, a Ostafrika era um colonato germânico que tinha mão dura junto das insurreições levadas a cabo por forças rebeldes locais e que, apenas depois do fim da I Guerra, se rendeu aos britânicos.

Hamza, por seu lado, viveu uma história de abandono e solidão quando se alistou também enquanto soldado para participar na guerra. Franzino, delicado, bonito, o seu perfil era tudo menos apto para ser um soldado com capacidade para sobreviver na frente de batalha e foi disso mesmo que um oficial alemão se apercebeu, fazendo dele o seu assistente pessoal.

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Título: Vidas Seguintes
Autor: Abdulrazak Gurnah
Editora: Cavalo de Ferro
Páginas: 304

Gurnah nasceu em Zanzibar, uma de duas ilhas do arquipélago com o mesmo nome – a outra é Pemba –, que hoje pertence à Tanzânia. A temática recorrente nos livros de Gurnah é a dos deslocados, dos refugiados, como acontece neste livro com Hamza, e prende-se com um acontecimento caro ao próprio autor, que aos 18 anos teve de fugir do país rumo a Inglaterra devido à perseguição aos árabes que então se fazia sentir, após a Revolução de Zanzibar em ’64 e a consequente deposição do sultanato e do seu governo maioritariamente árabe por revolucionários africanos.

Vítima das atrocidades da guerra, Hamza ficou com um ferimento que quase o matou e foi a generosidade de um missionário e as suas habilidades curandeiras, assim como a dedicação diária de um dos trabalhadores que cuidou estoicamente dele, mesmo nos momentos em que delirava com dores e febre, que lhe evitaram a morte que parecia certa. Conseguiu chegar à missão, em vez de ter sido largado no mato para morrer, porque o afeto do seu oficial se prendia com o facto de ele lhe lembrar um irmão que acabou militar porque era tradição na família e morreu em serviço. Era, dizia, um sonhador e não um soldado.

Já recuperado, sem casa e sem trabalho, Hamza é alvo da generosidade de alguém que lhe dá trabalho, depois de alguém que lhe dá teto e foi deste segundo que recebeu uma moeda para comprar algo para comer. Lemos estas passagens e sentimos a bondade no seu grau mais apurado, como por exemplo Kaurismäki, no cinema, sabe filmar como ninguém. Como quando “O Homem Sem Passado”, que não se lembra de quem é e deambula pela cidade, chega a um pequeno tasco e, sem dinheiro para comer, pede um copo de água para molhar uma saqueta de chá que tinha encontrado e as duas senhoras detrás do balcão lhe colocam um prato de comida à frente.

“Caminhou sem rumo por ruelas sombreadas e frescas e passando por portas entreabertas e sarjetas a transbordar. Atravessou ruas largas com cafés apinhados de clientes que tomavam o pequeno-almoço e depois esgueirou-se novamente para vielas exíguas onde as casas se inclinavam umas para as outras com uma intimidade atemorizante. Hamsa não se sentia à vontade com ruas assim, com os seus cheiros persistentes a comida e a esgoto e as vozes ecoantes das mulheres nos seus pátios.” Uma mistura de ficção com factos históricos, em Vidas Seguintes há toda uma vitalidade e fluxo de gentes, etnias, misturas, percursos, rotas, com que a mestria de Gurnah enquanto contador de histórias nos delicia: não só nos ajuda a perceber aquele bocado de terra, no que tem de flutuante – a saltitar do passado para o futuro –, como nos faz sentir que já conhecemos aquela terra de algum lado, apesar de nunca lá termos estado, mesmo que já lá tenhamos estado. O olhar é demasiado profundo e também leve por isso mesmo.