Em fevereiro de 2020, o filme “Parasitas” de Bong Joon-Ho venceu aquilo que parecia impossível vencer: o Óscar de Melhor Filme. De repente, o mainstream pareceu interessar-se pela cinematografia da Coreia do Sul. De repente, a Academia e Hollywood, tão criticadas e abaladas pelos Weinsteins, racismo, falta de representatividade e de paridade, tornavam-se num polo de multiculturalismo, aberto ao mundo, onde a exaltação do velho sonho americano tirava umas folgas. Entretanto, com uma pandemia de Covid-19 e uma guerra na Ucrânia pelo meio, a cerimónia da estatueta dourada perdeu o gás. Ou perdeu ainda mais do que já tinha perdido, especialmente ao nível das audiências, ignorando até o papel de apresentador desde 2018. “O desafio mais difícil é garantir que as pessoas vejam os Óscares”, admitiu Will Packer, produtor da cerimónia, citado pela BBC.

Pode ser coincidência ou não, mas não se estranha que, este ano, haja tanto buzz à volta de Ryūsuke Hamaguchi, realizador japonês de “Drive My Car” (“Conduz o Meu Carro”), que venceu a categoria de Melhor Filme Internacional. É a primeira vez que um filme do Japão chega aqui — já depois de ter sido um dos vencedores dos Bafta, de Cannes e de conquistar a crítica feroz em Nova Iorque em Los Angeles. A adaptação de três horas de um conto de Haruki Murakami, que anda, de carro, por Tóquio e Hiroxima, sempre com o autor japonês e Anton Tchékhov na cabeça, onde seguimos a vida e partilha entre um ator e encenador e a sua motorista. Luto e infidelidade, silêncio e palavra, jogo, faz de conta, desejo sexual, impulso, impulso, impulso.

Seguidor de Cassavetes, fascinado com as coincidências da vida

Coincidência ou não, Joon Ho e Hamaguchi são fãs confessos do trabalho um do outro, ao ponto de, em 2020, durante a tour internacional de “Parasitas”, o realizador japonês ter entrevistado o realizador sul coreano. “O ‘Parasitas’ abriu uma porta pesada que continuava fechada. Se não ganhasse, acho que o meu filme nunca teria sido tão bem recebido”, confessou Hamaguchi ao New York Times.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas quem é o novo mestre asiático que conquistou o ocidente? Aos 43 anos, Hamaguchi já tem nove filmes, contando com mais quatro documentários. Tal como conta o AV Club, num artigo sobre o realizador, só quatro destes filmes estão ou estiveram disponíveis em solo norte-americano. O japonês, respeitadíssimo na roda livre dos festivais — ganhou, por exemplo. o Urso de Prata em Berlim com o “Wheel of Fortune and Fantasy” em 2021  — era um rosto pouco conhecido no país até há bem pouco tempo.

[o trailer de “Drive My Car”:]

“Nunca sei responder à pergunta ‘de onde é que és?’ “. Vamos tomar como certa a generalidade das informações que existem em entrevistas. Nasceu em 1978 em Kanagawa, Japão. Por causa do pai, que tinha um trabalho itinerante, andou sempre a viajar. Quanto à cultura, foi seguindo o caminho que tantos outros japoneses seguiram: entre os videojogos e o manga. Tornou-se seguidor de John Cassavetes (o filme “Husbands” é o seu favorito) e de Eric Rohmer, referência do cinema independente, e estudou o génio de horror Kiyoshi Kurosawa, o que fez com se enamorasse muito mais com o cinema japonês tradicional. Fez-se assim realizador e argumentista, licenciou-se na Universidade de Tóquio, tendo trabalhado na indústria comercial do seu país, antes de seguir para as artes. Gosta de chá verde e de melodramas. E especialmente de explorar as coincidências da vida, carregando na profundidade das suas personagens, para que possam emergir na tela como uma espécie de revelação de si próprias.

Tem sido assim desde que iniciou a sua carreira em 2008, com o filme “Passion”, sobre um grupo de amigos a chegar aos 30 anos — antes, quando ainda estudava, fez a sua interpretação de “Solaris” (1972) de Andrei Tarkovski. É importante olhar para esta interpretação por uns segundos. É que Kurosawa disse à sua turma, de que Hamaguchi fazia parte, de que gostava muito do “Solaris” de Trakovski, mas não tanto da versão de Steven Sodebergh. Lançou uma competição de escrita que o realizador japonês acabou por vencer. Kurosawa ficou tão impressionado que acabou a oferecer-lhe trabalho num dos seus filmes, “Wife of a Spy” (2020). Voltando ao curso, a turma acabou mesmo por fazer uma versão do “Solaris” que nunca pôde sair da universidade por não terem assegurado os direitos da obra.

A importância do automóvel, a trilogia sobre os terramotos do Japão

Mas é, talvez, entre 2011 e 2012, que Hamaguchi começa a entender o seu lugar no cinema. Ou pelo menos, deu-nos pistas para entender a sua cinematografia, já que os seus filmes vão falando uns com os outros, como se fossem várias paragens numa autoestrada até ao próximo destino. Como se fossem obras do acaso que acabam por se encontrar, coincidências para o espetador, certezas para o realizador.

Depois dos terramotos que abalaram o Japão, o realizador foi convidado a fazer um documentário (que acabou por ser uma triologia), “Tohoku Documentary”, sobre o impacto deste desastre ambiental na região de Tōhoku. Foi aqui que, ao lado do seu co-realizador, Ko Sakai, gastando horas a fio ao volante, percebeu o potencial do automóvel como objeto cinematográfico.

“Drive My Car”: do Japão com sofrimento, teatro, tabaco e um velho Saab vermelho

“Nunca falámos muito, mas no carro, como estás visualmente satisfeito, falámos como nunca. Tens informação visual com as paisagens que vês, mas, a nível sonoro, só tens o barulho do carro. E nós precisamos de preencher esse vazio”, referiu o realizador ao The Guardian. Não havia guiões, foi aprendendo a mexer corretamente na câmara, a reagir ao que surgia no plano seguinte. A olhar para os sobreviventes não como vítimas, mas como pessoas que têm toda uma história dentro de si. Filmar o realismo até ao mais ínfimo detalhe começou a transformar-se assim na base das suas ficções.

Na sua curta mas já recheada carreira, é preciso relembrar “Happy Hour” (2015), — o seu primeiro filme a estrear em Portugal — que acaba por ser a sua rampa de lançamento internacional. A história de cinco horas (sim, cinco, os seus filmes pedem esse tempo) segue a vida de quatro mulheres com pouco mais de 30 anos em Kobe. Num artigo da Criterion, que cita tantos outros, damos conta do método de Hamaguchi, visível na narrativa de “Drive My Car”, para trabalhar com atores. Em “Happy Hour”, o realizador organizou workshops com as atrizes, que tinham um trabalho diário, para lerem e relerem o texto vezes sem contas. Durou seis meses. O filme demorou oito meses a filmar e só aos fins de semana. Conta o realizador que só o faz para que as palavras “saiam quase de forma automática”. “Há um momento em que oiço as suas vozes e as palavras escritas são completamente absorvidas pelos atores”, conta.

Seguiu-se “Asako I & II” (2018), mais pop, com base no romance  de Tomoka Shibasaki, o primeiro a seguir para Cannes, sobre amores e desamores na faculdade. Asako apaixona-se por Baku que desaparece e volta, anos mais tarde, para a vida de Asako. Um filme que joga ainda com a ideia dos duplos, outro dos temas transversais do autor japonês, a fazer lembrar “A Mulher Que Viveu Duas Vezes” (1958) de Hitchcock. Ainda fez uma curta-metragem pelo meio (“Tengoku wa mada tôi”). Por causa da pandemia, Hamaguchi teve de interromper a rodagem de “Drive My Car”. Já tinha filmado o prólogo em Tóquio, mas foi obrigado a parar durante oito meses. Mudaram-se de Busan, na Coreia do Sul, para Hiroxima por causa das restrições sanitárias de viagem. No vaivém entre paisagens e personagens, Hamaguchi acabou a cruzar a destruição de uma região com os protagonistas destruídos. Foi nesse tempo que conseguiu terminar o tal “Wheel of Fortune”, antologia de três contos que acabou vitoriosa em Berlim, sem uma conexão formal, que envolvem redenções, antigas paixões e até milagres. E claro: coincidências, coincidências, coincidências. Nem que seja porque também aqui surge uma longa sequência dentro de um automóvel.

[o trailer de “Wheel of Fortune”:]

Vagueando entro o melodrama, o sketch e o sereno, Hamaguchi prefere sempre contos, curtas-metragens, episódios, a narrativas maiores que perfazem as longas-metragens. É aí que tem espaço para destapar, para tirar os pontos das feridas e deixar crescer o que se sente sem se ver. Dir-se-á que um conto não pode ter três ou cinco horas de duração? Mentira. O segredo é saber o que se quer contar e apostar no formato onde se está mais confortável. “As curtas-metragens são mais fáceis de fazer. Fazer uma longa-metragem é assustador. Para mim é bom falhar e experimentar. A curta-metragem é um bom formato para alma”. Quanto à tal duração da sua filmografia, especialmente em relação ao último trabalho, Hamaguchi tem uma boa resposta: “Acho que o ‘Drive My Car’ deveria ter sido maior ainda por causa das personagens intrigantes. Eu sabia que tinha de ir além do final do livro. Devia ter ido além do que estava nas páginas”, disse à Slate.

Com todo o mediatismo à sua volta, ainda não conseguiu ir jantar com Bong Joo-Ho. Talvez consiga depois deste Óscar. Ou, por coincidência, talvez se encontrem num qualquer automóvel. Nem que seja para que Hamaguchi perceba o sentido real do seu “Drive My Car”. “Só agora é que estou a perceber sobre o que é este filme. Ao ouvir as reações, percebi que é uma história universal”, confessou durante uma entrevista para os Bafta.