Clima tóxico, atitudes de intimidação, gestos xenófobos perante os atletas naturalizados. Sete judocas portugueses, seis dos quais presentes nos últimos Jogos Olímpicos em Tóquio, fizeram esta quinta-feira uma carta aberta onde acusam a Federação, e mais concretamente o seu presidente Jorge Fernandes, de inúmeras atitudes de desconsideração e prejuízo para atletas e modalidade. Mais: o grupo que conta com Telma Monteiro, Catarina Costa, Rochele Nunes, Bárbara Timo, Anri Egutidze, Patrícia Sampaio e Rodrigo Lopes avança mesmo com a possibilidade de passar a ser o próprio Comité Olímpico de Portugal a gerir o dinheiro relativo às bolsas para os atletas que estarão presentes em Paris-2024.

“É mentira”: presidente da Federação de judo responde a carta aberta de atletas (e explica episódio da Coca-Cola)

“Após muitas tentativas de diálogo, e perante a falta de compreensão, de flexibilidade e sensibilidade do Presidente da Federação Portuguesa de Judo (FPJ), senhor Jorge Fernandes, para a necessidade de reajustar a gestão no plano desportivo e psicossocial, os atletas abaixo assinados vêm por este meio tornar público o clima insustentável e tóxico que envolve, neste momento, o judo português, apelando à intervenção da Secretaria de Estado do Desporto, do Instituto Português do Desporto e Juventude e do Comité Olimpico de Portugal”, começa por apontar a carta aberta conjunta.

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“Queremos um judo ambicioso e um relacionamento saudável com todas as entidades e pessoas com que interagimos e estamos dispostos a colaborar numa solução que nos permita – a nós e todos os judocas – voltar ao potencial competitivo que Portugal merece. Mas é com sentimento de desolação que todos vamos assistindo a atitudes opressivas e discriminatórias praticadas demasiadas vezes no âmbito da Seleção nacional que tanto orgulho temos em representar. Aquilo que foi um boa solução durante o período em que a pandemia causada pela Covid-19 impôs a criação de uma bolha de treino, em Coimbra, que nos permitiu estar nos Jogos em segurança, é hoje um dos fatores em que discordamos profundamente da estratégia imposta pela FPJ. Tentámos todas as vias de comunicação possíveis”, prossegue a mesma missiva.

“Tudo temos feito, ao longo destes anos, para manter uma relação profissional com a estrutura federativa, que se resume, no fundo a uma pessoa. Além de não escutar nem esclarecer, o senhor presidente Jorge Fernandes assume inúmeras funções, impondo inclusivamente decisões técnicas e de seleções nacionais que denotam falta de respeito pelos próprios treinadores. Neste momento esgotámos as nossas opções e sentimo-nos nós também esgotados (…)  Escrevemos no dia 13 de julho uma carta ao presidente da Federação onde expressávamos as nossas preocupações relativamente à nossa preparação e o impacto da mesma, tanto física como emocionalmente”, continua, antes de explicar as sugestões como a participação em estágios internacionais e provas fora do país mediante necessidades e planeamento de cada atleta, alteração das exigências de participação nos estágios para um mensal e ajuste do valor pago por deslocação mediante tabelas oficiais de valor de subsídio de transporte.

“Na sequência da carta, foi marcada uma reunião (realizada a 3 de agosto) que deveria ser com o senhor presidente, mas, para nosso espanto, acabou por contar com a presença dos treinadores de todos os escalões – exceto o treinador Pedro Soares –, do secretário da Federação, Sergiu Oleinic, da responsável de marketing e redes sociais, Inês Ribeiro, do treinador da Seleção Paralímpica, com o vice-presidente Sérgio Pina, e ainda com o filho do presidente Jorge Fernandes, agora coordenador do judo juvenil. Assim se criou um ambiente de intimidação! Apesar do clima de opressão sentido, foi lida a carta e feito o reforço do pedido de solução para os três pontos sugeridos e já acima referidos. Nesta reunião o presidente voltou a reforçar a obrigatoriedade de presença em 70/80% dos estágios, sob a ameaça de não sermos convocados caso não seja cumprido este parâmetro”, voltam a acusar os signatários.

“Relembramos que estes estágios se realizam desde Junho de 2020, todas as semanas, em Coimbra – cidade onde reside o presidente da FPJ. Na altura os clubes estavam a funcionar de forma condicionada devido às limitações impostas pela pandemia. Estávamos também impossibilitados de realizar estágios internacionais, que não se realizavam. Passaram dois anos. Aquilo que reconhecemos na altura como uma excelente ideia por parte da Federação Portuguesa de Judo e que era – reforçamos! – uma solução temporária, é agora algo que nos causa desgaste emocional, pois todas as semanas, na maioria das vezes aos fins de semana, somos obrigados a estar presentes. Isto é, num ano, em 70/80% dos 52 (!!) estágios”, avança, antes de entrar também em exemplos práticos e outras acusações à entidade.

  • “Recentemente o atleta Anri Egutidze faltou ao estágio por ter consulta médica e exame de saúde marcado na mesma data, acabando por ser impedido de fazer uma prova de qualificação olímpica, com o argumento de que não estaria em condições de saúde. Esta decisão foi tomada sem que qualquer médico do clube ou da Federação considerasse o atleta inapto. Terá sido, conclui-se, uma represália por ter estado ausente do estágio;
  • Nestas concentrações, por vezes, estão apenas oito atletas presentes para treinar, e durante o inverno chegam a estar sete graus dentro do pavilhão, sendo que o aquecimento é apenas disponibilizado esporadicamente. Temos lidado com tudo isto, semana após semana, focados em tentar evoluir. Havendo a obrigatoriedade de estar presentes em Coimbra impedem-nos de conseguir participar em estágios internacionais e treinar com os melhores do mundo e consequentemente sermos mais fortes e estarmos melhor preparados para as competições do circuito mundial, nos palcos que ambicionamos e que os portugueses se habituaram (…);
  • Recentemente a atleta Telma Monteiro viu a sua participação num estágio em Alicante ser confirmada à última hora, tendo realizado uma viagem de mais de dez horas, no total, para o regresso e ainda sendo alertada posteriormente pelo funcionário da Federação Sergiu Oleinic para os custos da mesma (…) Para o mesmo estágio, a atleta Catarina Costa teve de se deslocar de carro com o treinador, nove horas de viagem, pois afirmavam que agora os voos estariam caros e que seria muito complicado, por este motivo, irem ao estágio. Mais uma vez, a federação ia comprar os voos à última da hora;
  • O presidente pede aos treinadores que controlem os seus atletas para que não falem. Aconteceu, por exemplo, com o presidente a pedir à treinadora Ana Hormigo que controlasse as suas atletas. Proibir os atletas de falarem da saúde mental para não darem uma imagem fraca pois ‘o atleta é um herói’, como foi dito pelo presidente à atleta Bárbara Timo, mostrando uma enorme falta de sensibilidade não só para com a atleta – diagnosticada este ano com depressão –, assim como com o tema da saúde mental em si, que está hoje bem presente no desporto internacional. Na já supracitada reunião, o senhor presidente referiu-se aos atletas Bárbara Timo, Rodrigo Lopes e Rochele Nunes da seguinte forma: ‘A Bárbara, a Rochele, o Rodrigo, eu estranho que vocês estão aqui há três anos. Vieram do Brasil, foram ingratos connosco ao assinar esta carta (…) Vocês lá no Brasil nem uma Coca-Cola bebiam e agora chegam aqui, a gente dá-vos a mão e vocês querem tudo’ (…)
  • O atleta Anri Egutidze foi proibido pelo presidente de falar georgiano – língua materna – com outro atleta também oriundo da Geórgia (…) Testemunhámos várias vezes o presidente a falar alto e de forma que denota falta de respeito com a treinadora nacional Ana Hormigo (…)  Na última vez em que nos pediu que assinássemos o relatório de contas de 2021, a atleta Telma Monteiro, que tinha recebido o relatório depois do treino da tarde – como todos os outros colegas a quem ordenaram que assinassem –, guardou-o para ler. No dia seguinte de manhã, o senhor presidente acompanhado do secretário da Federação, intercetaram-na quando ia a caminho do ginásio para lhe perguntar qual era o problema dela, uma vez que ainda não tinha assinado o documento. Quando informou que precisaria de ser esclarecida relativamente aos valores apresentados, o presidente não permitiu que treinasse antes de se sentar e discutirem os valores. A atleta Telma Monteiro disse que não concordava que o dinheiro da bolsa fosse gerido daquela forma, ao que o senhor Jorge Fernandes respondeu: ‘Isso é a tua opinião, mas tens de assinar!’ (…) O senhor presidente que muitas vezes refere: ‘Podem fazer queixas a quem quiserem porque sou eu o presidente eleito’. Um presidente eleito democraticamente pode dirigir de qualquer forma? Gerir as bolsas de qualquer forma? Falar de qualquer forma?”.

“Pedimos respeito. Pedimos que nos seja dada opção de treinar melhor para podermos almejar melhores resultados para Portugal. Exigimos que a opressão e as represálias acabem! Para nós, este não é assunto de âmbito pessoal. Temos convivido o melhor possível e respeitado a função do senhor presidente da FPJ, pelo bem da modalidade e do país que amamos; nem sempre sentimos receber com reciprocidade. Neste momento, sugerimos que as bolsas dos judocas olímpicos passem a ser geridas pelo próprio Comité Olímpico de Portugal, em sintonia com os clubes e os treinadores, para que haja justiça. As grelhas de plano de atividades e relatórios de contas que somos obrigados a assinar não vão ao encontro daquilo que consideramos ser uma gestão responsável, eficaz e justa”, resume depois de especificar os problemas.

“Escrevemos esta carta para que as entidades que regem o desporto no nosso país nos ajudem a chegar a uma solução, caso contrário não vemos condições para continuar a fazer face às exigências da alta competição e do apuramento olímpico (…) Não há condições para evoluir no regime de funcionamento atual da FPJ. Desejamos um ecossistema para o judo saudável, ambicioso e exigente, mas que respeite o papel de cada um, sem discriminação aos atletas que se naturalizaram e são portugueses de pleno direito. Sentimos que estamos a estagnar como modalidade, tanto a nossa geração como as gerações futuras. Urge salvar o apuramento e a participação para as próximas grandes competições e definir uma gestão criteriosa da nossa carreira desportiva e financeira. Não há tempo a perder!”, conclui.