“Citadel” terminou há pouco mais de uma semana e deixou a sua marca: foi a segunda melhor estreia da Prime Video. Apesar da dimensão do projeto, não era expectável que a audiência agarrasse este plano megalómano da Amazon: porque há tanta e tanta coisa que falha e esta poderia ser bem mais uma. Mas o thriller da AGBO, a companhia de produção dos Irmãos Russo, cumpriu.

“Citadel” não é apenas uma série. É um franchise global da Amazon. O que isto quer dizer? “Citadel” vai ter vários spin-offs que atravessarão o globo e juntarão talento das regiões por onde passa. O próximo estreará para o ano e chama-se “Citadel: Diana” e será protagonizada pela italiana Matilda De Angelis. Um thriller para a era do streaming. A série original, de seis episódios, contava com Richard Madden e Priyanka Chopra Jonas nos principais papéis. A história? Arranca oito anos depois do fim de Citadel, uma agência mundial de espionagem independente, que tinha agentes espalhados por todo o mundo. Mason (Madden) e Nadia (Jonas) são dois agentes que sobreviveram ao fim da Citadel – que foi destruída por outra superorganização inimiga –, mas ficaram sem memória. Ao longo dos seis episódios vemo-los regressar ao ofício antigo, enquanto vai sendo montado todo o futuro do franchise de “Citadel”. Pelo sucesso da primeira temporada, será mesmo para continuar por muitos anos.

Na banda sonora está um nome que tem dado cartas na composição de ambientes para thrillers ao longo da última década. O norte-americano Alex Belcher tem no currículo filmes como “Capitão América: O Soldado de Inverno”, “21 Pontes”, “Jack Reacher”, “O Predador”, séries como “O Falcão e o Soldado de Inverno” e videojogos, como “Uncharted 4”. Em “Citadel”, como nos explica na entrevista abaixo, teve de pensar em como construir tudo como se fosse um filme muito grande e, em simultâneo, preparar a audiência para esta ideia nova de um franchise global. As primeiras impressões contam muito. E, por isso, quisemos saber como se chega a estes sons, como se conta uma história para a audiência através da música.

[A banda sonora oficial de “Citadel”]

Trabalha em diferentes média, cinema, videojogos e agora com mais regularidade na televisão. O que muda?
Bom, “Citadel” foi diferente, porque desde o início que o Joe Russo me disse que queria que a história funcionasse como se fosse um filme, um “O Soldado do Inverno”. Neste caso, pensei como se fosse um filme muito extenso, ou seja, produzi quatro vezes mais músicas do que se fosse um blockbuster normal. Por isso, a forma de compor não mudou muito, foi como se fosse para um filme. Ter trabalhado no início de carreira com o Henry Jackman deu-me cabedal para assumir estes projetos.

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O que o puxou para este meio?
Quando era jovem estudei música, mas também era um ator. Sabia que não tinha talento, nem aspeto físico, para ser um ator profissional. Mas adorava o processo de contar histórias e à medida que cresci e me concentrei mais em música, a ideia de compor música para filmes fazia muito sentido. Permitia-me fazer música, que é o que gosto de fazer, mas fazê-lo de uma forma que contasse histórias.

Como conta histórias com música, onde começa?
É um trabalho colaborativo,  começa sempre com uma conversa, com os showrunners, produtores, o estúdio, tudo começa com uma pergunta simples: qual a história principal que queremos contar. Porque é fácil de ficar perdido, sobretudo num franchise deste género, com tantas histórias e personagens. É fácil perderes-te com os detalhes. Eu preocupo-me em saber o que é a história, resumir em duas ou três palavras. E depois vou para o piano e penso em como evocar essa emoção com uma canção. Assim que desenvolvo algumas ideias, ideias de orquestração, começo a aprofundar: o que se passa nesta cena, o que quero que a audiência saiba que as personagens não sabem. Mas há muita tentativa e erro.

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Alex Belcher © Getty Images

Em relação a “Citadel”, quando soube que tinha o tom certo?
Uma vez que metes a música nas imagens, sabes se vai funcionar ou não. Além disso, quando mostras a uma audiência, a reação das pessoas diz-te muito. Às vezes penso que tem a tonalidade certa, mas o realizador, o showrunner ou o produtor dizem-te pela reação que “essa não é a história que quero contar”. Começas a andar à volta disso. Felizmente, ando a trabalhar há mais de uma década com os Irmãos Russo e entendemo-nos bem. Com o “Citadel” eles enviaram-me o guião e queriam que eu escrevesse música antes das filmagens. E eu entreguei, baseado no que falámos, e no que estava no argumento. Algumas dessas coisas foram para a série, mas muitas não. Tentas coisas diferentes, arriscas, tentas coisas que achas que podem ser totalmente ao lado, mas funcionam, mas às vezes não funcionam. Tens de tomar riscos, senão a música torna-se papel de parede e não conta nada da história.

Nas duas últimas respostas deixou nas entrelinhas que faz várias experiências. Experimenta muito e faz coisas totalmente diferentes daquilo que acabamos por ouvir?
Nesta série encorajaram-me a tomar riscos, tentar coisas. Por vezes tentas coisas experimentais e estás nervoso de as mostrar porque não queres uma reação do género “que raio foi isso?”. Mas neste caso, houve uma aprovação dessa experimentação, para se atingir um certo tom. No caso de “Citadel”, experimentei no sentido de que se desejava que fosse uma banda-sonora muito orquestral, mas com alguma modernidade. O que fiz foi começar de uma forma mais tradicional e reposicionar alguns elementos da orquestra para que soasse fresco, novo, e não algo que soasse a 1946.

O que faz com o material que não é usado e gosta imenso?
Oiço naqueles dias que quero reviver os momentos da criação… nunca me aconteceu ter algo que não funcionasse e que acabasse por usar noutro projeto. Isso diz muito da música, se tiveste a ideia para um certo projeto, e não funcionou ali, usares para outro, raramente funciona. Tenho um belo funcionário de canções que ninguém irá ouvir.

Trabalha muito nos géneros de ação e thriller. Algum outro que gostava de trabalhar?
Gosto mesmo muito de trabalhar em thriller. Dá-me prazer trabalhar em histórias onde posso usar o som para contar uma história. Um filme como o “21 Pontes” [filme de 2019, de Brian Kirk] é um ótimo exemplo, porque tem aspetos de thriller, mas permitiu-me usar a música para controlar a audiência, e permitir que os realizadores contassem uma história sem a audiência perceber para onde estavam a ir.

Falou há pouco que “Citadel” foi fácil porque é uma série vista como um filme. Mas o que muda quando passa de cinema para televisão?
A grande diferença, e no caso deste, é o tipo de música que foi criada. Num filme tens 90 minutos para fazer em três ou quatro meses. Em “Citadel” tinha de fazer entre 25 a 45 minutos de música para cada episódio. É mais um problema logístico do que outra coisa.

E em relação a videojogos, fez a música para o “Uncharted 4”. Joga?
Adoro videojogos, se vires, a minha Playstation 5 está ali atrás. Adoro videojogos e trabalhar com a Naughty Dog e a Playstation no “Uncharted” foi ótimo. Também fiz coisas para o “Just Cause 3”. É ótimo, porque faz música distante do que irás ver, e depois vês como se casa com o jogo, algum tempo depois. E permite-te correr riscos que não é permitido no cinema. Num filme, uma cena muda, e tens de interromper a música ali. Nos videojogos tens de escrever peças grandes, com algumas linhas de orientação, mas tens muita liberdade, é muito divertido.

Quando chegou ao “Uncharted”, já era um franchise gigantesco. Teve receio?
Claro!

O que fez?
Joguei os jogos todos outra vez. Precisei de jogar outra vez, joguei os três primeiros em cinco dias, porque queria manter-me verdadeiro ao que era, porque se fizéssemos isso, os fãs iriam ficar felizes, e isso é o que importa. Tentámos manter-nos fiéis, à nossa maneira, mantendo as coisas frescas.

Qual é o seu “Uncharted” favorito?
O 4, claro. Não, o “Uncharted 2” é um dos melhores videojogos de sempre. A Naughty Dog é tão boa a contar história, é o que gosto neles, concentram-se muito nas histórias.

Também é o meu. Voltando ao “Citadel”, quando começa a trabalhar num projeto destes, prepara-se para as temporadas seguintes?
Devia tê-lo feito, mas não o fiz. Apenas pensei, episódio um, o início, como preparamos a audiência para este mundo, ao longo de quinze minutos e a partir daí reduzimos o tom para contar estas histórias mais pequenas que unem todos os pontos. Essa foi uma das minhas grandes preocupações, temos de firmar o tom aqui, para os próximos seis episódios. Trabalhei um mês nos primeiros quinze minutos, para ter a certeza que tirava todas as temáticas da frente, que servisse para introduzir personagens, e que o fizesse de tal forma que pudesse funcionar no resto da temporada.

Depois disso ficou mais fácil?
Sim, depois sabes o que tens, tens as tuas ferramentas. Eu acredito na disciplina, vamos fazer isto, com esta escala, com estes instrumentos, e não vamos desviar-nos daqui a não ser que seja mesmo preciso. Impôr disciplina e limites força-te a tomar decisões criativas e ter ideias que nunca terias se pudesses fazer o que quisesses, a qualquer altura. Quando te limitas a uma certa técnica ou estilo, ficas criativo e tens melhores ideias.

De certa forma, dá-lhe mais liberdade?
Sim. E a dado momento quebras as regras. No episódio seis, o estilo e a linguagem harmónica mudam, porque a história muda, ou seja, a música também tinha de mudar. E aí sente-se como uma libertação, sentes como algo diferente que puxa a audiência.

Estudou jazz. Acha que isso influencia a forma como pensa sobre a liberdade na música e para onde vai?
Sim, nunca pensei dessa forma, mas é provavelmente de onde vem. Porque no jazz, embora pareça caos e improvisação, há limites, regras, escalas, ou seja, não é só… na música clássica é o que está escrito na página, no jazz é improvisação mas há linhas de orientação.

Gostaria de fazer uma banda sonora mais próxima do jazz?
Adoraria, mas é raro isso aparecer. Até hoje nunca me pediram.