“A minha cliente quer falar”, disse Ana Calado Nunes, advogada de Inês Sanches, assim que o juiz Pedro Godinho deu início à sessão desta terça-feira. Até agora, a mãe de Jéssica, a criança de três anos que morreu no ano passado, sempre recusou falar em tribunal. O seu depoimento deverá ser feito depois de ouvidas todas as testemunhas chamadas pela acusação e pelo assistente neste processo, que é Alexandre Biscaia, pai de Jéssica, e ficou marcado para quarta-feira. Além das testemunhas, foi ouvido ainda João Ferreira dos Santos, perito do Instituto de Medicina Legal, que garantiu que Jéssica “foi abanada e atirada contra uma superfície dura várias vezes e isso foi o que matou a Jéssica”. “Parece que andaram a jogar à bola com a criança. Atiraram-na, de certeza, contra a parede ou contra o chão”, acrescentou.

Os cinco arguidos e os crimes

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  • Inês Sanches, mãe de Jéssica, está acusada de um crime de homicídio qualificado e um crime de ofensas à integridade física qualificada.
  • Ana Pinto, mulher que terá feito os serviços de bruxaria, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Esmeralda, filha de Ana Pinto e de Justo Montes, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Justo Montes, companheiro de Ana Pinto, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado.
  • Eduardo Montes, filho de Ana Pinto e de Justo Montes, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado.

O Ministério Público acredita que Jéssica foi dada como moeda de troca para o pagamento de uma dívida que Inês Sanches, sua mãe, fez por serviços de bruxaria. Terá ainda sido utilizada como correio de droga e agredida várias vezes pelos restantes arguidos. Apenas um dos cinco arguidos se encontra em liberdade, uma vez que é também o único que não está acusado do crime de homicídio.

Sentado no lugar onde foram ouvidas todas as testemunhas, o perito que fez a autópsia ao corpo de Jéssica fez questão de justificar a sua presença, uma vez que não quis falar por videoconferência: “Devido à gravidade da situação, achei mais conveniente estar aqui”.

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“O que matou a Jéssica foi, sem margem para dúvidas, aquilo a que chamamos de síndrome do bebé abanado. Foi abanada e atirada contra uma superfície dura várias vezes. Isso foi o que matou a Jéssica. Alguém, de uma forma selvática, agarrou na criança, seja pela parte torácica, ou pelos membros, e a abanou com força. Dois a quatro abanões por segundo durante cinco segundos chega para que a criança tenha lesões gravíssimas”, explicou o perito, antes de explicar cada uma das lesões encontradas no corpo da criança de três anos.

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As imagens da autópsia foram mostradas durante a sessão — apenas para o coletivo de juízes, para a procuradora do Ministério Público e para os advogados — e João Ferreira dos Santos, à medida que apareciam as fotografias, referiu que “era difícil encontrar mais lesões traumáticas”. Além disso, o perito diz ser possível provar que Jéssica ainda tentou defender-se, colocando o braço direito à frente da cara, uma vez que existem lesões de defesa. Já em relação às queimaduras encontradas na cara da criança, existem mais dúvidas:

– Como é que pode ter sido provocada esta queimadura?

– Pela minha experiência, não foi fogo, mas foi líquido a ferver. Dá ideia de que tentaram pôr ali um copo. A sensação que me dá é que, de acordo com o que já vi ao longo destes anos todos, o fogo não faz isto, não delimita. Foi algum líquido fervente. Ela queimou-se. Agora, o quê, não faço ideia. Água quente, chá quente. Quente para queimar, é uma queimadura grau dois.

A acusação feita pelo Ministério Público, no ano passado, já descrevia as múltiplas lesões que Jéssica apresentava quando morreu, mas esta terça-feira ficou ainda mais evidente o nível violência que a criança sofreu nos dias anteriores à morte. Desde marcas de unhas de adulto até lesões provocadas por puxões de orelhas, o perito confirmou que Jéssica “não bateu com a cabeça só uma vez, bateu várias”. Além disso, foi também descrito que os arguidos poderão ter usado uma tesoura e um alicate para puxar as orelhas de Jéssica.

Sobre o sofrimento que a criança sentiu nas últimas horas em que viveu, o perito do Instituto de Medicina Legal não teve dúvidas: “A escala de dor vai de 0 a 7. Eu diria 7”.

Mãe foi vista com a filha e com as duas arguidas no dia em que Jéssica morreu

Até agora, o coletivo de juízes ouviu apenas as testemunhas chamadas pelo Ministério Público e algumas confirmaram ter visto Inês Sanches na companhia das outras duas arguidas, Esmeralda e Ana Pinto — detidas e acusadas do crime de homicídio. A mesma linha seguiu a testemunha ouvida esta terça-feira, enquanto Ana Pinto, sentada ao lado de Justo Montes, seu companheiro, desmentia o que ia ouvindo, acenando com a cabeça . “A Inês estava com a menina no colo”, disse esta testemunha, acrescentando que viu Inês, Esmeralda e Ana Pinto juntas, no dia em que Jéssica morreu. “Olhei, vi que iam as três e que a menina ia ao colo dela [de Inês Sanches]. Sei que a Esmeralda e a mãe [Ana Pinto] estavam à esquerda e a Inês estava com a menina à frente delas.”

Durante a manhã, em menos de uma hora, foi possível colocar mais algumas peças no puzzle do dia em que Jéssica morreu. Depois de a primeira testemunha dizer que viu as três arguidas juntas, na rua, e Jéssica ao colo da mãe, a segunda testemunha confirmou que Ana Pinto comprou lixívia na sua mercearia, que fica muito perto da casa onde Jéssica terá passado vários dias e terá sido agredida:

– A senhora mais velha [Ana Pinto] foi à minha mercearia comprar uma garrafa de lixívia. 

– Mas tem ideia do dia? 

– Sim, sim. 

– Então, quando é que foi? 

– Foi no dia em que a menina morreu. 

A chamada para o INEM

Na última sessão, o coletivo de juízes quis reproduzir a chamada feita para o INEM no dia em que a criança morreu, revelando que Inês, primeiro, contou outra versão daquilo que aconteceu ao técnico do INEM. O telefonema durou pouco mais de dois minutos e foi feito por Paulo Amâncio, companheiro de Inês Sanches, que indicou que um psicólogo receitou Atarax — utilizado para alergias –, tendo sido, neste caso, usado para acalmar a criança.

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Mas quando Paulo Amâncio passou o telemóvel a Inês Sanches, a versão dada ao técnico que tentava ajudar foi mudando. A mãe de Jéssica disse, já no fim da chamada, que a filha tinha estado com uma ama: “Ela está toda marcada, não sei se lhe bateram”. E sobre a existência de hematomas, nessa altura, Inês Sanches disse apenas que a filha tinha “falta de cabelo”.

– Mas apresenta sinais de violência? A senhora olhe para a sua filha. 

– Eu acho que sim. 

– A ambulância vai a caminho, mas mantenha-a deitada de lado. 

Até agora, já passaram pelo tribunal as testemunhas chamadas pela acusação, que incluíram vizinhos e pessoas que conheciam Inês Sanches. Todos falaram, de forma muito breve, sobre a relação de Inês com a filha e uma das testemunhas revelou que a mãe de Jéssica conhecia e tinha sido vista com as outras duas arguidas deste processo, Esmeralda e Ana Pinto, que estão também acusadas de homicídio. Aliás, o Ministério Público acredita que estas duas mulheres são responsáveis pelas agressões que levaram à morte de Jéssica.

Paulo Amâncio chegou a entrar na sala do tribunal de Setúbal duas vezes: primeiro, para dizer que queria prestar declarações e, já numa segunda vez, para dizer que, afinal, já não queria falar. Em silêncio mantêm-se também a mãe de Jéssica, Ana Pinto e Esmeralda. Só Justo Montes e Eduardo Montes quiseram falar em sede de julgamento, recusando sempre qualquer acusação.

“Palmadas, murros, bofetadas e pancadas”

O Ministério Público acredita que o fim da vida de Jéssica começou quando, em maio do ano passado, a sua mãe decidiu recorrer a serviços de bruxaria para tentar salvar a sua relação com o namorado, que fala esta quinta-feira em tribunal. Estes serviços foram, aliás, pedidos a Ana Pinto, uma das arguidas e acusada dos crimes de homicídio qualificado, rapto, rapto agravado, ofensas à integridade física, tráfico de droga, violação e coação agravada. Por 100 euros, a mulher entregou “um saco com diversas folhas/ervas para colocar debaixo da cama”. Inês não pagou.

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Quando a dívida atingiu os 200 euros, a mulher que fez a tal bruxaria, em conjunto com os arguidos Esmeralda e Justo Montes, “engendraram um plano com vista a exigirem à arguida o pagamento, exigindo-lhe, então, a entrega da filha como garantia desse pagamento”. Jéssica terá passado a ser a moeda de troca pelas dívidas e terá estado em casa dos arguidos, pelo menos, três vezes.

Dois dos arguidos, “fazendo uso da sua força muscular, desferiram na cabeça e no corpo de Jéssica, com as mãos ou outras parte do corpo ou objetos, um número não concretamente apurado de palmadas, murros, bofetadas e pancadas, provocando-lhe um hematoma na hemiface esquerda, os lábios feridos, hematomas pelo corpo e dores”.