Ao longo do espetáculo, vemos a personagem interpretada por Nuno Cardoso assumir uma variedade de tons e emoções, no seu blazer e lenço de tons rosados, que denotam aparente sofisticação. Tanto grita ao telefone, com palavrões pelo meio, como se dirige ao público em tom de confissão ou questionamento; partilha anedotas e ditos; sugere “fazer um quiz” e atira à plateia perguntas desconfortáveis, como “É importante lutarmos pelos nossos filhos?”, ou “Já estiveram deprimidos?”.
Sozinho em palco, aquele homem surge de pé, mas também estendido numa chaise-longue branca, ou deitado no chão, em posição fetal. Chora, ri, dança. Fala do pai em diferentes ocasiões, como da mãe ou da mulher. Confessa traição. Diz frases como “o amor dá cabo de tudo”, ou “a quem é que nunca apeteceu espancar a pessoa que ama?”. Elenca diversos tipos de homem, do “sensível” ao “porco básico”, passando pelo “grande amante” (“O grande amante não pensa no prazer das mulheres, pensa em si a dar prazer às mulheres”; “O grande amante é um Narciso, é o exterminador implacável dos lençóis”, que “coleciona vítimas, troféus”).
A dada altura, aponta o motivo por que casou com a sua mulher. “Sempre tive pavor de casar com uma gaja toda boa e depois tínhamos um filho e aquilo caía tudo por ali abaixo”, afirma, para em seguida rematar: “A minha mulher estava pré-testada. Não havia uma ponta de flacidez, e já tinha um filho. Ela continua rija, com tudo no sítio. Isto é superficial? Isto não é sensato?”.
É assim durante mais de hora e meia, sendo que a duração pode estender-se, consoante os elementos da plateia decidam ou não ripostar. Trata-se da peça Homens Hediondos, criada a partir do livro Breves Entrevistas com Homens Hediondos, de David Foster Wallace, com encenação de Patrícia Portela e interpretação de Nuno Cardoso. O também o diretor artístico do Teatro Nacional de São João dá corpo às várias personagens masculinas que atravessam a referida obra do escritor norte-americano. Fá-lo num solo que marca o seu regresso à representação, três anos depois de ter apresentado o autobiográfico Achadiço, e sete anos volvidos sobre Subterrâneo, criado a partir de Dostoiévski.
Esta produção própria, cuja estreia chegou a estar prevista para junho, mas que acabou adiada para setembro, sobe ao palco esta quarta-feira, dia 11, no Teatro Carlos Alberto, no Porto, continuando em cena até sábado, dia 14. Está classificada para maiores de 16 anos, e assinala o arranque da temporada artística do São João.
“Tentámos que o público se identificasse com o pior de si próprio”
Para ir às origens de Homens Hediondos, há que recuar a 2021, quando Nuno Cardoso propôs a Patrícia Portela fazerem algo em torno daquele livro. “Estávamos a conversar sobre estes tempos, estas discussões sobre homens, sobre mulheres, sobre machismo, sobre toxicidade, sobre enganos. E achei logo o desafio completamente improvável”, recorda a escritora e encenadora, que já conhecia o texto e aceitou embarcar na aventura. A criação foi medrando a partir daquele encontro de duas pessoas que nunca haviam trabalhado juntas, mas acompanhavam o trabalho uma da outra.
Os “homens hediondos” a que Nuno Cardoso dá corpo vão do deprimido ao grande amante, passando pelo porco, pelo misógino, pelo brutamontes, pelo sabe tudo, pelo ressabiado, pelo injustiçado ou pela vítima. A obra de partida sugere várias personagens e, nas produções que têm nascido a partir dela, essas personagens costumam ser interpretadas por um ator ou por diferentes atores. Aqui, vemos um só homem em cena, com o mesmo figurino.
Essa proposta de concentrar tudo numa única voz revela-se “mais complexa”, segundo Nuno Cardoso, “porque implica saltos de lógica, de emoção; mas, ao mesmo tempo, é como se todos nós tivéssemos várias gavetas e, em vez de a peça ser sobre uma gaveta que se abre, de cada gaveta que abres sai-te uma coisa que te leva a abrir outra gaveta”.
Um “livro coral” resultou numa “peça coral”, que envolve “umas 30 cabeças”, resume Cardoso, numa conversa pós ensaio-corrido. “Fizemos uma grande ária”, completa Portela. E porquê concentrar tudo só numa personagem? “Porque temos estes lados todos, e para nos podermos identificar”, responde ela. “Acho que é muito hipócrita, e também seguro, da nossa parte, acharmos que há coisas que não temos, que só eles é que têm.” Em nota de imprensa, já se lia que, “mais do que julgar em palco situações de sexismo, machismo, racismo ou misoginia, a encenadora pretende confrontar o público com aqueles momentos em que é apanhado a tolerar certos comportamentos e relações de poder”.
“O que tentámos fazer, como diz o Nuno, nestas gavetas todas, foi condensar uma vida inteira e situações extremas num só homem. E, com isso, convocar as pessoas, não para julgar este super-homem hediondo, mas, mais do que julgarem, poderem identificar-se com ele. Que é o mais difícil. Hoje vivemos na época da imagem, queremos identificar-nos com a celebridade não sei quê, queremos identificar-nos com o super-herói não sei quê. Toda a televisão, o sistema de imagens, as redes sociais, são feitos a usar essa manipulação e essa identificação constante com alguma coisa. Seja com o desgraçado, seja com a vítima, seja com o herói. E nós, aqui, tentámos que o público se identificasse com o pior de si próprio, neste super-homem hediondo.”
Para Patrícia Portela, “há um nível de mestria e de técnica” que tem de ser atingido antes de se levar a peça a palco, mas depois há o “lado da interação, da empatia e da identificação”. “Das coisas que acho mais interessantes, aqui, é conseguires identificar-te com este homem hediondo. E a identificação pode ser pela repulsa, pela empatia, pelo nojo, por um sorriso, por pena. Porque há imensos sentimentos estranhíssimos que metemos para baixo do tapete. É como se fosse um mega tapete que sacodes no palco, para ficar branquinho – sacudiste a areia toda para cima do espetador”, continua a encenadora, voltando-se para o ator.
O objetivo, reitera Portela, “era discutir estes temas de uma forma em que eles nos questionassem a nós e não julgássemos outros. Porque é muito fácil julgar os outros. Estamos numa sociedade que condena com mais facilidade do que faz uma espécie de balanço e de diagnóstico de si própria. É quase como ir contra a corrente”. E não duvida: “O teatro tem essa função, que é criar bolhas onde se pode pensar de outra maneira, onde se pode abrir outra possibilidade”.
“Um super Wallace com tons portelianos”
Patrícia Portela assinala ainda que, nesta peça, foi preciso “reescrever um autor”, o que implicou diálogos dela com Nuno Cardoso, enquanto ator, criador e diretor artístico; e dos dois com Wallace. Tanto que a dramaturgia vem, não só nas Breves Entrevistas com Homens Hediondos, mas também de outros textos do escritor norte-americano (como a palestra This is Water), e da própria visão da encenadora sobre Wallace, além de outras perspetivas, por exemplo, sobre o amor.
Ela resume: “Esta dramaturgia é uma espécie de super Wallace todo mastigado, com tons portelianos; é uma coisa super híbrida, que me agrada muito. É muito fiel ao Wallace, não no sentido de não tocar no texto, mas no sentido verdadeiramente literário: são três artistas a falar uns com os outros, ou seja, a voz do Nuno devolve um Wallace que já é uma mistura da minha conversa com o Wallace”.
“Não foi o Wallace que escreveu que as mulheres vão comprar Halibut à farmácia”, comenta Nuno Cardoso, que diz ter levado dois dias a decorar 28 páginas de texto (o material original com que começaram tinha perto de 400 páginas). “Nem sequer que o amor é uma crueldade”, acrescenta Patrícia Portela, que também tem a seu cargo a tradução, a dramaturgia, o vídeo, os figurinos e a cenografia do espetáculo. A propósito: no palco, a servir de fundo, existe uma tela emoldurada como um quadro onde é projetado o vídeo de um homem diante de uma piscina, a ver alguém nadar, numa referência à famosa obra do pintor britânico David Hockney Portrait of an Artist (Pool With Two Figures), que bateu recordes ao ser vendida, em leilão, por muitos milhões. Algo que, para Patrícia Portela, também tem o seu quê de hediondo.
O espetáculo “Homens Hediondos”, legendado em inglês, fica em cena, no Teatro Carlos Alberto, no Porto, entre quarta (11 de setembro) e sábado (14 de setembro). As sessões têm lugar, na quarta e na quinta, às 19h; na sexta, às 21h; e, no sábado, às 19h e às 21h30. O preço dos bilhetes varia entre 5 e 10 euros.