A luz é branca, intensa. O palco é neutro, desprovido de acessórios. Ao fundo, no meio, uma mulher faz uma chamada telefónica. “Estou sim, desculpe, o meu nome é Piedade Lobbo, com dois B.”
Está apresentada A Médica, personagem principal que dá o nome à peça que se estreia no Teatro da Trindade, em Lisboa, quinta-feira, 12 de dezembro — e se mantém em cena na Sala Carmen Dolores até 16 de fevereiro de 2025. Custódia Gallego é Piedade Lobbo, a mulher no centro desta história intensa que se desenrola durante duas horas. A liderar um hospital criado pela própria, que se dedica sobretudo à área da demência, acaba a tratar uma adolescente de 14 anos a morrer de sépsis, após um aborto autoinfligido mal-sucedido. Quando um padre católico tenta forçar a entrada para lhe dar a extrema unção, a médica impede a passagem, é acusada de agressão e uma gravação começa a circular nas redes sociais, tornando a história viral e transformando numa bola de neve uma controvérsia que coloca frente a frente fé e medicina, mas também questões de género, etnia e orientação sexual.
O texto é de Robert Icke, tem encenação de Ricardo Neves-Neves e conta com 12 atores. Além de Custódia Gallego, o elenco é composto por Adriano Luz, Eduarda Arriaga, Igor Regalla, Inês Castel-Branco, José Leite, Luciana Balby, Maria José Paschoal, Pedro Laginha, Rita Cabaço, Sandra Faleiro e Vera Cruz.
Para o encenador, a escolha da protagonista foi clara desde o primeiro minuto. “É uma atriz que admiro, com quem já trabalhei várias vezes e, para fazer um trabalho destes, é importante haver um género de cumplicidade já experimentada. Depois, a Custódia passou três anos na Universidade de Medicina, portanto senti que, além da empatia que ela pudesse ter pela personagem, me poderia ajudar na linguagem, no comportamento no hospital, na forma de falar com os pais e na forma de falar entre médicos”, explica Ricardo Neves-Neves ao Observador.
A primeira metade do drama passa-se praticamente toda nos corredores ou salas do hospital, um ambiente austero pincelado pelas batas brancas dos médicos que discutem direitos, ética ou interesses. Nesta peça, nem sempre o género dos atores corresponde ao género das personagens, uma sugestão deixada pelo autor britânico. Inês Castel-Branco é Paulo, um homem. Rita Cabaço é Miguel, outro médico homem. Estes detalhes são evidentes desde o início, mas há outros que só vão sendo conhecidos à medida que a história avança.
“Esta experiência é um género de laboratório teatral que funciona para nós, que estamos a fazer o espetáculo, mas que também funciona para o espectador perceber esta questão da identidade do ator relacionada com a identidade da personagem, se é ou não necessário haver uma correspondência imediata ou se é uma coisa que podemos pensar de outra forma”, diz Ricardo Neves-Neves.
Para Adriano Luz, que interpreta Rogério Durão, internista e subdiretor do hospital, esta é uma das características mais importantes de A Médica. “Quando li, pareceu-me que era de somenos importância, mas quanto mais fui entrando no texto, mais me pareceu que era fulcral essa identidade não corresponder. Acrescenta mais uma camada a todos os níveis que a história tem”, afirma o ator ao Observador.
Custódia Gallego está quase sempre em cena. São duas horas extenuantes, tanto para a atriz — responsável por um texto denso e complexo, desenrolado a uma velocidade frenética —, como para a personagem, pressionada e atacada de todos os lados. Porém, garante a atriz, é isso que faz com que consiga em palco exatamente aquilo que quer transmitir. “O esgotar da personagem dentro do esgotar da dinâmica do espetáculo é uma coisa que me ajuda porque eu quero mesmo sentir o percurso daquela personagem naqueles dias.”
Os ensaios duram há dois meses e Custódia Gallego tem-se desdobrado entre o teatro e as gravações da novela A Promessa, da SIC. Ainda assim, apesar do ritmo extenuante, sente que chegou ao ponto em que percebe bem a jornada de Piedade Lobbo.
“O processo criativo é mais doloroso porque não estamos tão descansados e abertos para contar coisas, mas assim que o espetáculo está feito, venho vivenciar aquelas duas horas. A Piedade é uma pessoa que criou um instituto de investigação de uma doença terrível. É ativa, eficaz, tem esperança, mas vai percebendo que, afinal, aqueles em quem confiava não lutam todos pelo mesmo. A verdade dela não convém à moralidade de muita gente e, por isso, é posta de lado. Quando o desconsolo é cada vez maior, desiste-se. E ela vai desistindo ao longo deste espetáculo”, explica ao Observador.
Do desenrolar da história não se pode contar muito mais, sob o risco de revelar spoilers, mas A Médica junta inúmeras temáticas que se discutem constantemente na atualidade.
“Achei o texto muito atual porque mostra como, hoje em dia, um incidente pode ser transformado numa coisa gigante e pode destruir uma vida e uma carreira”, diz Inês Castel-Branco. Custódia Gallego vai mais longe: “São assuntos que estão em discussão desde que a humanidade se conhece. As diferenças entre as pessoas, o poder entre elas, o uso desse poder, o uso da vida humana pela vida humana, a incapacidade de viver em sociedade dando liberdade aos outros e tendo a liberdade de sermos quem quisermos ser, etc. São assuntos eternos, é bom discuti-los, mas acho que estamos a andar devagar e essa é a parte negativa”.
A meio do espetáculo, os corredores do hospital são trocados por um programa de televisão. Mas, se à primeira vista o ambiente parece estar prestes a ficar mais leve, é mesmo só à primeira vista. Entra em cena a música — usada de forma muito pontual durante A Médica — e uma caricatura de televisão sensacionalista onde um painel de especialistas de tudo e mais alguma coisa questiona Piedade Lobbo sobre as suas decisões, origens, opções religiosas e sexuais.
“Ele é leve na fórmula, mas não no conteúdo”, explica Adriano Luz, que muda de personagem (tal como o restante elenco, exceto Custódia Gallego) neste momento da peça. “Estão ali a condenar, mas com luzes e música, a fingir que é uma feira popular”, completa Inês Castel-Branco.
“Interessa aqui mais o sensacional do que a informação. Aquele painel de especialistas ou opinadores estão ali para uma espécie de linchamento público daquela personagem [Piedade Lobbo]. Cada um, de acordo com as suas áreas, está ali a tentar manipular as informações que tem sobre aquilo que aconteceu. Tiram-se conclusões precipitadas e isso mexe com a vida daquela pessoa. Quantas vezes nós temos acesso a uma descrição do que aconteceu, que nem sequer temos a certeza se é fidedigna, e concluímos logo que alguém é assim ou assado, mesmo sem conhecermos essa pessoa?”, questiona Ricardo Neves-Neves.
“A Médica” é uma coprodução Teatro da Trindade, Teatro do Eléctrico, Culturproject, Teatro Nacional São João e Cineteatro Louletano. Está em cena de quarta-feira a sábado, às 21h, e ao domingo, às 16h30 (dias 25 de dezembro e 1 de janeiro não há sessões). Os bilhetes custam entre 10€ e 20€, podem ser comprados online ou no local. Esta quarta-feira, 11 de dezembro, um dia antes da estreia, há um ensaio solidário, às 21h. Os bilhetes têm um custo fixo de 12€ e a receita reverte na totalidade para a Fundação António Aleixo.