Tragam-se os leques e os borrifadores, inventem-se outras soluções, dobrem-se revistas e flyers: o fresco precisa-se. É perante esta asfixia, este salve-se quem puder, que arranca o segundo dia do Avante. Daí que Dillaz, um dos primeiros a ocupar o Auditório 1º de Maio, agradeça aos que “estão aqui dentro da tenda apesar dos 40 graus”. Impossível negar que o rapper está hoje em praia de sucesso. Até quem fica, como nós, debaixo da única sombra possível, sabe as letras de trás para a frente.

A torreira afasta qualquer um, o segundo capítulo dos 40 anos começa quase como um teste de sobrevivência, uma passagem pelo deserto, só que aqui há concertos. Só há segredo: parar é contra a lei. Subimos ao Palco 25 de Abril para espreitar Carlão. Prosseguimos em domínio hip-hop, que tão bem se enquadra em algum do público mais jovem que ocupa as primeiras filas. O ex-Da Weasel vem com direito a DJ, guitarra, teclado, um belo apoio vocal e com espaço de sobra para Sara Tavares. A primeira convidada traz a sua delicadeza habitual, a sua afro despenteada e descontraída e esse momento mais calmo, menos dançável e rap, hipnotiza o tempo, baixa-nos os batimentos cardíacos.

Mas logo voltam ao lugar com a chamada de Sam The Kid a palco, esse astro da música nacional que quase podia fazer uma carreira às custas das parcerias. “Pitas Querem Guito”, do projeto onde Samuel colaborou com Carlão e Regula, os 5-30, é mais um exemplo disso. Segue-se o clássico “Crime de Padre Amaro”, de 2005, o hip-hop e as suas raízes, essas que sempre desejam mais um copo. Carlão termina o concerto com “Os Tais”, hit que o fez renascer das cinzas.

Isto tudo no mesmo calor absurdo que decidiu invadir o Avante. Exige-se, portanto, resistência, a mesma que Criolo pede quando agarra o microfone e chuta: “No Brasil está a acontecer um golpe de estado”. O artista brasileiro vem no timing ideal, brinda o lusco-fusco da Quinta da Atalaia com a sua sonoridade tão do litoral. Uma espécie de pop maresia que nos atinge os músculos, quase ao ponto de não conseguirmos meter ordem nas nossas pernas.

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Mas Criolo vai mais longe. Ou melhor, também sabe ir mais rápido. A cadência com que rima em algumas faixas faz deste homem um faz-tudo, do rap ao falsete. Sai em braços, nada de inesperado para alguém que sempre que pode dá uma escapadinha a Portugal.

Todagente

Já agora, não sabemos se é do calor se é da Festa, mas parece que o país está todo ali. As filas são intermináveis em qualquer balcão que se atreva a servir uma mísera sandes mista, uma essencial água. E embora saibamos que não há nada mais aborrecido – se alguém o tem como hobby preferido que atire a primeira pedra – o egoísmo fica-nos mal. É sinal de muito mais pessoas, de um Avante de barriguinha cheia, algo que não tinha acontecido no dia anterior.

Cá em baixo dança-se a sabedoria, a delicadeza e a tranquilidade. O baile faz-se com Cristina Branco. Ela que está prestes a editar “Menina”, novo disco pronto a sair dia 16 de setembro, e que se apresenta como de costume: piano, contrabaixo e guitarra portuguesa. É a própria fadista que às tantas, a apresentar uma canção do Maestro António Vitorino de Almeida, “Fado Mal Passado”, retoma a discussão do fado velho e do fado novo. E sugere mesmo que “essa conversa já está a ficar velha”. Faça-se fado, como este ou como outro qualquer, mas faça-se e pronto.

Chega e acautelam-se os rebeldes sem T-shirt, isto daqui a nada já pede casaco, vão por nós. Mas não agora, tempo de Diabo na Cruz e de rock da tradição. A julgar pelos braços no ar, pela dança da peixeira – aquela de braço na anca e rabo de cavalo em fúria – este era um dos concertos mais esperados pelo Avante. Que o diga o primeiro tema “200 mil horas”, um bocadinho menos tempo do que aquele que o público aguardou. E se é de tempo que falamos convém esclarecer que não sobra muito para diálogos de ocasião. Os Diabo na Cruz perguntam-nos se estamos bem, mas depressa avisam: “Siga a rusga”, faixa seguinte.

E daqui não saem sem oferecer um dos melhores momentos de amor do festival, luzes mornas, um ou outro isqueiro, e “Luzia”, apenas a piano, mete-nos a vasculhar em assuntos sensíveis, cá para nós, claro. Assim é o rock popular.

Popular seja: Ana Moura prossegue, ainda que numa mais escura tradição, e o que é bom sempre volta. O fado, neste segundo dia do Avante, anda de braço dado connosco. E basta olhar à volta para que se entenda que todos queriam isto, é ver casais de idade já avançada a seguir de cadeira na mão, é ver o respeito com que se deixa o silêncio ser gente.

Por esta altura, qualquer lenço é xaile, e nem está propriamente frio, mas se estamos por entre guitarras portuguesas e uma voz desta dimensão, então tratemos de vestir a personagem. Ana Moura quer “o fado para ser dançado”. Estamos entre a melancolia e o arraial de bairro. E estamos muito bem.