Todos os dias, ao fim da tarde, o Observador distribui a newsletter Macroscópio (que pode subscrever aqui).

Um tema do dia. A notícia que merece um tratamento mais aprofundado. E uma seleção dos melhores textos de análise de toda a web, sem limites nem fronteiras.

O tema de ontem, sexta-feira, foi o centenário do atentado de Sarajevo que desencadeou a engrenagem que levaria à I Guerra Mundial. Aqui fica o essencial desse Macroscópio:

 

Nos próximos dias, semanas, meses, vamos ler, ver, ouvir muito coisa sobre o imenso conflito que encontrou num assassinato ocorrido numa obscura cidade europeia o pretexto para lançar as grandes potências da época umas contra as outros. Há centenas de livros a serem publicados um pouco por todo o lado, sobretudo em França, Reino Unido e Estados Unidos, e começam a surgir os primeiros trabalhos jornalísticos de fôlego.

A terrível engrenagem da guerra foi posta em movimento quase por acaso. Naquele dia 28 de Junho de 1914, completam-se amanhã 100 anos, o herdeiro do trono dos Habsburgos, arquiduque Franz Ferdinand, um homem que ansiava por assumir a liderança do Império Austro-húngaro e abrir um processo reformista e liberalizador, estava em Sarajevo, nos Balcãs, e escapara a um atentado que fizera dezenas de feridos. Político atento, decidiu que devia ir visitar as vítimas, mas o seu motorista enganou-se no caminho e levou-o ao encontro de Gravilo Princip, um jovem radical sérvio que fazia parte da conspiração. Foi um erro fatal: quando o condutor tentou dar meia-volta, Gravilo aproximou-se do carro e disparou os tiros que matariam Franz Ferdinand.

20140628_blp504

Poucos dias depois, a revista londrina The Economist escrevia um texto, agora republicado, a vários títulos curioso. Não há nele qualquer sinal de inquietação, qualquer suspeita de que se estava à beira de uma catástrofe que engoliria todo o continente. A reflexão é de resto muito centrada na ameaça do terrorismo, invocando uma série de assassinatos de estadistas, nomeadamente o do nosso rei D. Carlos.
We live in an age when the very foundations of society are threatened in almost all countries by a secret conspiracy of crime, when arson and murder are employed as political weapons by the miserable and half-witted instruments of organisations which arrogate to themselves high-sounding names, and persuade youthful enthusiasts that the end justifies the means, and that the most cowardly and bloodthirsty murders are heroic exploits, worthy to be sung with the deeds of Harmodius or Brutus.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

GetImage

Os problemas europeus seriam bem mais profundos do que um ou outro regicídio, como não tardaríamos a saber. Bastaria um mês de mal calculados jogos diplomáticos e muita retórica belicista para se iniciar um guerra que deveria durar apenas algumas semanas mas acabou por se prolongar por quatro longuíssimos anos. E que mudaria a Europa e o mundo para sempre.
Margaret MacMillan, autora de um dos mais interessantes livros sobre os caminhos que levaram à catástrofe que saíram no último ano – “The War that Ended Peace: How Europe abandoned peace for the First World War” – escreveu agora no Wall Street Journal um breve ensaio sobre esta guerra que mudou tudo. Eis como ela recorda o sombrio diagnóstico feito, logo nesses anos, por Paul Valery:
The war had made many Europeans simply give up on their own societies. Before 1914, they could take pride in Europe’s power and prosperity, in the knowledge that it dominated the world through its economic and military strength. They could boast that European civilization was superior to all others. Now they were left with a shattered continent that had spent down its wealth and weakened itself, perhaps mortally. As the great French thinker and poet Paul Valery said in 1922, “something deeper has been worn away than the renewable parts of the machine.”

Screen Shot 2014-06-27 at 15.18.45

Mudaram as sociedades, mudou a posição da Europa no mundo, mudou tudo. Tudo mesmo. No mesmo jornal encontramos um outro trabalho que reputo de verdadeiramente excepcional e que reflete muitas dessas mudanças: 100 Years, 100 legacies – The lasting impact of World War I (100 anos, 100 heranças – o impacto duradouro da I Grande Guerra).
É um dossier esmagador, que combina fotografias da época, vídeos, gráficos e sons para nos mostrar como boa parte do que somos hoje se forjou naquele enorme caldeirão, das trincheiras da Flandres ou de Verdun às planícies férteis da Polónia, passando pelas praias de Galipoli.
Um exemplo, escolhido quase ao calhas: a origem do conflito do Médio Oriente, marcado por dois eventos desses anos, a declaração Balfour, que reconheceu aos judeus o direito a terem uma pátria na Palestina, e o acordo Sykes-Picot, que traçou a “linha na areia” que repartiria os territórios do antigo Médio Oriente por ingleses e franceses e estaria na origem das frágeis fronteiras de hoje:
Confronted with the collapse of the Ottoman Empire as a result of the war, Britain and France signed an agreement to divide up the territories. This deal contradicted promises to local Arabs of self-government should they successfully rebel against the Ottomans.
Nesta ficha pode-se também ouvir a leitura da declaração de Balfour.

Screen Shot 2014-06-28 at 11.02.16

O ângulo escolhido pelo New York Times não foi muito diferente: World War I Brought Fundamental Changes to the World. Deste trabalho destaco duas notáveis séries do fotos: uma sobre o conflito, de grande dramatismo gráfico, e outra sobre os campos, os vales, as praias onde se travaram algumas das grandes batalhas de 14-18. Mas há muito mais no grande jornal de Nova Iorque. Vale  pena explorar.

Screen Shot 2014-06-28 at 11.05.43

Recordar a I Guerra através de fotografias da época é sempre muito poderoso, e o Washington Post foi desencantar uma impressiva série de imagens nunca antes publicadas. A primeira imagem diz logo muito sobre como ainda se imaginava e se praticava a guerra no primeiro ano de conflito: dois homens à beira de um campo agrícola a perder de vista, um terceiro a cavalo que lhes faz uma saudação com a sua espada. Os dois primeiros eram os comandantes-supremos dos exércitos francês, o marechal Joseph Joffre, e inglês, o também marechal Horatio Herbert Kitchener. A cavalo, empertigado, o general Albert Baratier. É quase bucólico.

Screen Shot 2014-06-28 at 11.16.08

Há cerca 20 anos, da primeira vez que estive em Sarajevo, nos primeiros dias de uma paz instável depois do longo cerco que foi o episódio mais marcante das guerras de fragmentação da antiga Jugoslávia, procurei naturalmente o local do assassinato de há 100 anos. Era Dezembro, as ruas estavam cobertas de neve, o frio era cortante, mas lá fui até à Ponte Latina, o local onde uma placa ainda tratava Gravilo Princip como um herói (hoje essa placa foi substituída por uma mais neutra).
O Washington Post e o New York Times estiveram há pouco no mesmo local para testemunhar a forma diferente, contrastante, como a população de Sarajevo ainda hoje olha para aquele evento de há 100 anos. Para os que têm ascendência sérvia, ele continua a ser um herói. Para os de filiação muçulmana ou católica, é apenas alguém que queria substituir o domínio dos Habsburgos pelo domínio dos sérvios. De facto, como se escreve no NYT:
Nationalist and sectarian passions continue to haunt Bosnia, which was ravaged by a civil war just two decades ago and is even now the scene of dueling efforts to define Gavrilo Princip’s legacy.

Um século depois, a história ainda dói. E não apenas nessa pequena cidade encaixada nos Alpes Dináricos.