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“Então, já chegou? É omnipresente? Está em todo o lado”, disse Marcelo Rebelo Sousa ao chegar à faculdade de Direito de Lisboa, onde foi recebido na manhã desta quinta-feira por Gilmar Mendes, juiz do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil. Gilmar Mendes foi um dos 11 magistrados que decidiu, há poucas horas, no Brasil, o destino de Lula da Silva. Saiu mais cedo da sessão porque tinha “um compromisso em Portugal”. Mesmo assim, o voo transatlântico serviu para ser um dos cinco juízes (contra seis) a votar a favor do habeas corpus que permitiria ao antigo presidente brasileiro ficar em liberdade.
“O avião da TAP já decolou?”, perguntava na noite de quarta-feira o procurador Luiz Lessa, no Twitter, enquanto decorria a votação no Supremo sobre o pedido de habeas corpus do ex-presidente brasileiro. A pergunta, irónica, surgiu na sequência do “compromisso” de Gilmar Mendes que o fez pedir para sair a meio da sessão. Deveria ser o oitavo a falar, mas acabaria por anunciar a o que decidiu (e votar) logo a seguir ao relator Edson Fachin e ainda antes da juíza Rosa Weber, a grande incógnita da noite. Depois, o juiz, que tem casa em Lisboa, rumou a Portugal.
https://twitter.com/LFVCL/status/981599138721779713?ref_src=twsrc%5Etfw&ref_url=https%3A%2F%2Fwww1.folha.uol.com.br%2Fpoder%2F2018%2F04%2Fgilmar-mendes-e-alvo-de-criticas-e-ironias-de-procuradores-durante-votacao-de-habeas-corpus.shtml&tfw_creator=folha&tfw_site=folha
“Já não tinha muito a fazer na sessão e tinha este compromisso que tinha assumido há algum tempo. Por isso entendi que devia vir. Mas respeito o julgamento. Dei o meu voto e voltei a Portugal”, justificou ao Observador Gilmar Mendes. Quanto ao facto de o seu voto ter sido minoritário, o jurista afirmou estar tranquilo com a decisão — mesmo tendo sido contrária, no mesmo caso, quanto a Lula ter de aguardar o último recurso da decisão da liberdade na prisão. Mudou o sentido, e, sobre isso, “foi tudo explicado na sessão”, afirma.
Segundo a Folha de São Paulo, que o esperava no aeroporto de Brasília, o juiz teve de correr para não perder o avião. Chegou pouco depois das 16h, e o voo era às 17h. Para alguns utilizadores das redes sociais, o avião ter-se-á atrasado para garantir que Gilmar Mendes chegava a tempo de o apanhar. “Não, não.. O voo para Portugal tem tido atrasos. Cheguei na hora ao voo”, justificou.
A ida e volta abrupta para o Brasil
À saída do Supremo Tribunal, um jornalista ainda ironizou e pediu ao juiz que lhe trouxesse uma garrafa de vinho português, tantas são as idas e voltas do magistrado entre Brasília e Lisboa — e Gilmar Mendes até prometeria aceder ao pedido. A saída abrupta do magistrado da sessão de mais de 10 horas que decidiu a rejeição do habeas corpus de Lula, deixando-o a um passo da prisão, foi, de resto, motivo de críticas e de piadas na internet, sobretudo dentro do núcleo judicial brasileiro. Os dados sobre o número do voo, a porta de embarque e a hora de partida foram divulgados nas redes sociais em páginas anti-Lula, e uma foto do juiz no avião por volta das 17h, enquanto os restantes juízes do STF ficariam na sessão até perto da 1h da manhã, tornou-se viral no Facebook, com mais de 30 mil partilhas.
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10157539789009062&set=a.10150464746384062.458256.551649061&type=3&theater
A verdade é que Gilmar Mendes estava em Lisboa esta semana — e só voou para o Brasil expressamente para votar a favor do habeas corpus de Lula. Como a opinião de Rosa Weber (que até é favorável a que os condenados em segunda instância não sejam presos) podia pender para os dois lados, o voto de Gilmar Mendes era muito importante para a defesa do ex-presidente do Brasil. Foi, mas num instante voltou. Trocou Lula da Silva por Marcelo Rebelo de Sousa e regressou a Lisboa para participar, ao lado do Presidente da República português, no VI Fórum Jurídico de Lisboa, organizado pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) — do qual é sócio — e pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Na verdade, a ida a Brasília na quarta-feira não foi mais do que um intervalo na sua estadia em Lisboa, onde tinha chegado na manhã de terça-feira, dia 3, para participar no mesmo ciclo de conferências. Nessa altura, à chegada ao aeroporto de Lisboa, tinha dito que achava que “ter um ex-presidente condenado” era “muito mau para a imagem do Brasil” — razão pela qual iria dar um salto ao outro lado do Atlântico para votar a favor do habeas corpus.
O ministro Gilmar Mendes, do STF, não quis falar com a imprensa ao chegar ao Aeroporto de Brasília, pouco depois das 16h. Ao terminar a fala em sessão do Supremo, o ministro embarca para Lisboa. O voo está previsto para 17h; siga https://t.co/yFTs9fFscc pic.twitter.com/h1aG4vB8eS
— Folha de S.Paulo (@folha) April 4, 2018
Contudo, tal não o tem impedido de criticar o Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula com todas as letras: “A árvore de intolerância foi plantada pelo PT. O PT era uma instituição muito intolerante e continua sendo”, disse o juíz esta quinta-feira, um dia depois de ter votado pela liberdade de Lula, ao Observador. Classifica Lula como “um homem de diálogo”, mas não hesita em apontar-lhe “uma trajetória de ambiguidades”.
“Dialogava com o empresariado, mas, ao mesmo tempo, em momentos de fúria ou de dificuldade, dizia: ‘Vou colocar o Exército do Stédile’. O que é que é o ‘Exército do Stédile’? O MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, liderado por João Pedro Stédile]. Que pode funcionar como uma milícia”
Nomeado em 2002, Gilmar Mendes é um dos mais antigos juízes do Supremo Tribunal Federal. Tem um mestrado e um doutoramento na Alemanha, mais de 20 livros publicados e uma carreira que inclui períodos como procurador da República, nos anos 1980, e advogado-geral da União no governo de 2000 a 2002. Gilmar Mendes tem sido uma figura polémica no processo que envolve Lula da Silva no caso Lava Jato, tendo sido muito criticado pela “incoerência” e pela oscilação de posições sobre a prisão em segunda instância.
É que, dos cinco juízes do Supremo Tribunal Federal no cargo desde 2009, só ele mudou de posição sobre este tema (e mudou três vezes em nove anos): antes era a favor do cumprimento de pena após condenação em segunda instância, agora votou a favor da libertação no caso concreto de Lula da Silva por entender que o cumprimento imediato da pena prejudica a presunção de inocência enquanto ainda decorrem os recursos. “A regra passou a ser ‘prenda-se sempre’. Nesse contexto, eu e outros colegas dissemos que era preciso rever isto e recolocar este tema em debate”, justifica o jornal ao Observador. Lula foi condenado a 12 anos de prisão em segunda instância e tenta manter-se fora da cadeia — depois do pedido de habeas corpus falhado, falta-lhe agora um único recurso.
Habitualmente envolvido em polémicas por causa das suas decisões no Supremo, muitas vezes a favor de políticos envolvidos em casos de corrupção, esta mudança de posição do magistrado levou várias personalidades a criticar a oscilação. “Ministro [expressão usada no Brasil para designar os magistrados] que muda de opinião para beneficiar criminoso não é ministro, é comparsa”, escreveu o general na reserva Paulo Chagas.
Ministro que muda de opinião para beneficiar criminoso, não é Ministro é comparsa!
Corte que muda decisão para beneficiar criminoso, não é Corte é quadrilha!
— General Paulo Chagas (@GenPauloChagas) April 4, 2018
Polémicas, insultos e uma vida de “afetos” em Portugal
O vai-vem de Gilmar a Lisboa esta semana não é por acaso — o juiz comprou casa há dois anos em pleno Príncipe Real. Numa reportagem do suplemento P2, do Público, sobre a elite brasileira que traz novos negócios a Portugal, publicada no verão passado, Gilmar explicava que costuma ir a Lisboa nas férias, nos feriados ou até em fins de semana prolongados, e dava o exemplo de Marcelo Rebelo de Sousa para justificar o porquê de ter escolhido Portugal para se refugiar e ter algum anonimato: somos o país dos afetos.
“Acho um país agradável, com um povo cordial e um clima ameno, sem invernos muito rigorosos. Temos, como diz o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, uma comunidade de afetos. Também gosto de curtir um certo anonimato, que não tenho mais no Brasil, aproveito para caminhar pelas ruas, andar de bicicleta, conhecer as feiras e os mercados de antiguidades”, dizia ao suplemento.
Mas se queria anonimato em Portugal, não foi bem isso que conseguiu. Vários vídeos publicados na internet mostram situações em que o magistrado aparece em restaurantes ou nas ruas lisboetas e é abordado por cidadãos brasileiros — que o insultam. Desta vez, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, podiam-se esperar protestos, atendendo ao historial do magistrado. Mas não. No tempo de visita por três vezes foi abordado por visitantes da faculdade. Razão? Queriam uma selfie — como se vê na fotografia — com o jurista.
Num dos casos em que houve insultos, captado na semana passada, a 28 de março, Gilmar Mendes vê-se mesmo obrigado a refugiar-se numa loja para evitar o confronto: “Ministro supremo passeando em Lisboa e eu é que sou o palhaço? É um sem-vergonha”, diz o interlocutor. No outro caso, de janeiro deste ano, duas mulheres reconhecem-no na rua e interpelam-no: “Devia estar a querer disfarçar-se, andando aqui como um comum mortal, coisa que não é, não tem vergonha?”, atiram.
https://www.youtube.com/watch?v=RrMcs7FyKMQ
https://www.youtube.com/watch?v=jFF__wxg10s
Este recente episódio em Lisboa, de resto, foi usado por Gilmar Mendes na sua declaração de voto no Supremo Tribunal em jeito de crítica aos “media opressivos”. É que, segundo o juiz, o caso dos insultos em Lisboa foi replicado num artigo da Globo, com o título “Veja o que duas senhoras fizeram ao encontrar o juiz Gilmar Ferreira Mendes nas ruas de Lisboa. O que você faria?” (atualmente, no site da Globo, só se encontra um artigo com o título “Gilmar Mendes é hostilizado por brasileiras em Portugal”), e o juiz não gostou. “É esse o tipo de media opressivos que nós desenvolvemos. E é preciso dizer não a isso!”, disse, levantando a voz. “Porque se as questões aqui forem decididas nesse tipo de par ou ímpar, nós deixamos de ser um tribunal supremo. Se nós tivermos que decidir causas como esta porque os media querem este ou aquele resultado, o melhor é demitirmo-nos e irmos para casa”, insistiu.
Um dia depois, em Lisboa, voltou à carga: “Eles”, disse, referindo-se à imprensa brasileira, “sabem que eu adoto uma posição crítica em relação ao resultado que eles imaginam. Eu sou um crítico da Lava Jato, eles não querem críticos da Lava Jato. Então ‘Delenda Gilmar’ [expressão inspirada na frase ‘Delenda Cartago’ usada pelo Império Romano e que significa ‘destrua-se Cartago’].”
Mas os episódios de insultos repetem-se. A 27 de janeiro deste ano, voltou a ser alvo de protestos dentro de um avião comercial Brasília-Cuiabá, tendo mesmo de sair do avião escoltado pela Polícia Federal quando os passageiros começaram a ecoar em coro “Fora Gilmar”. Segundo relatos feitos na imprensa brasileira, nessa ocasião foi mesmo o próprio comandante do voo que chamou a polícia para escoltar o juiz dada a dimensão da situação.
https://www.youtube.com/watch?v=28WPp-ARjiQ
“Vai soltar o Lula também depois?”, questiona um passageiro, referindo-se à absolvição de Michel Temer. “E o Aécio? É inocente, né?”, “o Supremo Tribunal Federal não presta pra nada, tem que fechar aquilo lá”, diz outro passageiro. “É uma vergonha para o Brasil”, ouve-se ainda. Perante a situação, o comandante pediu a todos para que permanecessem sentados enquanto a aeronave, já em terra, era levada para uma área mais resguardada enquanto esperava pela Polícia Federal.
Mas a medida de segurança só fez aumentar o motim: “Que vergonha para a família brasileira”. “Precisa de polícia federal porquê? Um homem público, está fazendo coisa errada?”, grita ainda outra pessoa.
O voto de desempate para absolver Temer
Antes de ser o rosto da defesa do habeas corpus de Lula, Gilmar Mendes já tinha estado no centro do tenso julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (a que presidia na altura) que, em junho de 2017, absolveu o atual Presidente da República Michel Temer. Mas, para isso, foi preciso o voto decisivo de Gilmar Mendes — que, enquanto presidente daquele tribunal teve o chamado “voto de Minerva” (o voto de desempate) — e votou a favor de Temer.
Segundo recorda a BBC, o resultado da votação estava 3-3 e o julgamento estava marcado pela troca de farpas entre o juiz e o relator do processo, Herman Benjamin, que discutiam sobre a inclusão ou não no julgamento de depoimentos de ex-dirigentes da construtora Odebrecht — que agravavam as acusações contra Dilma e Temer. O relator defendia a inclusão, mas Gilmar Mendes dizia que era “falacioso” e que “as cassações de mandato só devem ocorrer em situações inequívocas”. “Não se substitui um Presidente da República a toda hora, ainda que se queira. Porque se prefere pagar o preço de um governo ruim e mal escolhido do que a instabilidade ou golpes na calada da noite. ‘Ah, mas o povo quer!’ Mas é assim que se destrói mandato?”, dizia na altura.
Sempre polémico, Gilmar Mendes foi muito criticado por ter presidido ao julgamento no Tribunal Superior Eleitoral que absolveu Temer sendo pública a sua proximidade ao atual Presidente brasileiro. Em janeiro, por exemplo, Gilmar Mendes integrou a comitiva presidencial brasileira, ao lado de Temer, que marcou presença no funeral do ex-Presidente português Mário Soares. E, em março, segundo a BBC, Michel Temer e outros políticos participaram num jantar oferecido por Gilmar Mendes na sua casa em Brasília. Da defesa de Temer, passou para a defesa de Lula, com passagem por Lisboa.