O homem de 53 anos que acaba de ser deixado no Hospital de Santa Maria vai morrer daqui a duas horas. Empurrado numa maca rampa acima por dois bombeiros protegidos dos pés à cabeça com fatos brancos sem um pedaço de pele à vista, o doente é deixado, já sem estar consciente, junto à zona da triagem do Covidário — ninguém assume a paternidade deste nome, mas quase todos os profissionais de saúde o adotaram: trata-se de um pavilhão pré-fabricado, erguido em apenas três semanas em frente às urgências do Santa Maria, para acolher todos os doentes que chegam ao hospital infetados ou com sintomas de Covid-19.
O homem que vai morrer não ficou na fila à porta, do lado de fora, para ser atendido pelo administrativo de serviço num guichet todo envidraçado, o primeiro rosto que recebe os infetados e suspeitos que chegam, e também um dos mais pressionados quando se junta muita gente. Por vezes esta agitação estende-se à triagem, do lado de dentro, onde muitos doentes levam a mal que lhes digam que não preenchem os critérios para serem alvo de um teste e reagem violentamente. Já aconteceu ter de se chamar a polícia.
A maca com o homem que vai morrer fica uns 20 minutos sem ninguém à volta, até ser encaminhada pelo corredor onde costuma sentar-se a auxiliar de limpeza brasileira que desinfeta obsessivamente cada uma das seis ilhas da triagem de cada vez que sai um doente — e que também já esteve, ela própria, infetada.
Se o doente estivesse consciente na maca, veria depois que estava a atravessar uma área retangular rodeada por 26 doentes: 16 em macas ou cadeiras em espaços abertos, separados por biombos, e do outro lado dez compartimentos fechados (a que chamam boxes), onde estão os doentes infetados ou com resultados inconclusivos, sentados num cadeirão ou deitados numa maca, ao lado de uma casa de banho.
É uma da manhã de uma quinta-feira de novembro, em pleno pico da pandemia. Um doente infetado que chegou pela Via Verde AVC (dedicada a atender mais rapidamente quem sofre Acidentes Vasculares Cerebrais) acaba de ocupar a última cama de cuidados intensivos na área Covid-19.
Mas no caso do homem que acabou de chegar, nem sequer se equacionaria qualquer tipo de tentativa de nada, pelo que a falta de vagas de Medicina Intensiva é uma não questão para ele. "O senhor está a morrer, com um cancro do pulmão. Está a respirar lentamente. Já está só a fazer morfina em casa. Não tem perspetiva absolutamente nenhuma. Um médico não pode fazer mal aos doentes. Este doente chegou ao fim da sua vida. Vamos pô-lo num quartinho para morrer com dignidade", sentencia a diretora das Urgências, Anabela Oliveira.
Nove horas antes, ao início da tarde, tinha sido Anabela Oliveira a guiar a equipa do Observador na primeira ida ao Covidário.
"A responsabilidade é minha, é um peso muito grande no meu ombro"
Há um "sénior" de serviço esta noite, que é o médico mais experiente em todo o Covidário. O "sénior", ao contrário do que a palavra possa dar a entender, não é um médico veterano de cabelos brancos. Tem 33 anos e é um interno do 5º ano, que está a concluir a sua formação e ainda não acabou a especialidade em Medicina Interna (mas está quase).
Apesar disso, Filipe Bessa não hesitou quando decidiu que uma doente de 70 anos que deu uma queda em casa precisava mesmo de ser entubada e ventilada, na sala de reanimação do Covidário. Estava com uma hemorragia no cérebro e foi tratada aqui por ter febre, um dos sintomas do coronavírus. Só depois da intervenção se soube que o teste à Covid-19 deu resultado negativo, pelo que pôde ser transferida para uma vaga de cuidados intensivos não-covid (onde ainda estava internada, três semanas mais tarde, com prognóstico reservado). Se o teste tivesse dado positivo, teria de ficar a ocupar a sala de reanimação do Covidário, à espera de uma vaga que pudesse ser libertada por um doente internado que entretanto melhorasse.
O "sénior" de 33 anos também não se inibiu quando teve de chamar colegas dos Serviços de Medicina Intensiva, Cardiologia e Anestesiologia, para o ajudarem a tratar doentes ou para discutir quem podia ser internado numa enfermaria ou nos Cuidados Intensivos. E no limite tem o apoio da chefe de urgências, que está parte significativa do tempo no edifício principal do hospital, mas em caso de emergência pode ir esclarecendo dúvidas por telefone ou computador, ou mesmo deslocar-se ali atravessando a estrada.
"Eu nunca estive desapoiado. Agora a responsabilidade é de quem? É minha. É um peso muito grande no meu ombro. Mas já estamos habituados", admite Filipe Bessa. "Felizmente para a nossa equipa já sou um interno mais diferenciado, mais velho, mas a maioria da nossa equipa são internos de 1º, 2º e 3º anos, que não conseguem fazer a gestão de um doente crítico".
"Internos sozinhos? Isso nem seria eticamente admissível"
A importância dos internos no funcionamento das equipas é assumida por todos os diretores de serviço ouvidos pelo Observador, embora haja diferentes graus de autonomia, consoante as especialidades e o perfil dos alunos. As escalas dos turnos comprovam que estes médicos ainda em formação, num hospital universitário como o Santa Maria, são parte essencial do exército que mantém tudo a funcionar.
"Em nenhum serviço os internos estão sozinhos. Isso nem seria eticamente admissível", garante o presidente do hospital, Daniel Ferro. Mas no Covidário nem sempre é assim. "Do ponto de vista físico, ter urgências separadas não é o mesmo que ter a equipa integrada no mesmo espaço físico. Mas a equipa do Covidário não é isolada da da urgência. Quem lá trabalha não deve tomar nenhuma decisão que não tenha supervisão técnica e clínica. Todas as equipas têm gente diferenciada para assegurar isso", contrapõe.
Na recém-criada Unidade de Internamento de Contingência de Infeção Viral Emergente, dedicada aos doentes Covid, a desproporção é flagrante: em 35 médicos, seis são especialistas e os restantes 29 são internos. Sandra Braz, a coordenadora desta unidade (e a primeira médica a ser vacinada no Santa Maria), assegura que na maioria dos casos estão acompanhados por colegas e especialistas, o que diminui o risco de os doentes serem menos bem seguidos por haver tantos médicos com pouca experiência. "O fundamental para mim é eles saberem identificar um problema e as suas limitações. Não quero que ninguém aqui se arme em herói. Todas as decisões são discutidas em equipa".
Mas há o problema prático da falta de treino, de experiência e de autonomia. Goreti Grilo é a enfermeira-coordenadora de serviço noutra noite fria no Covidário. Tão fria que se arrepia várias vezes a meio da conversa, enquanto outros colegas se aquecem com cobertores pelos ombros.
Goreti Grilo lamenta que em certos turnos com equipas menos experientes os doentes sejam deixados mais tempo à espera. "Isto realmente [às vezes] não desenvolve, não há altas, não há nada. Há uma chefe de equipa mas não está aqui, vem cá e discutem os doentes, mas nota-se muito [a demora] não só nas situações críticas mas também em doentes que vão para o internamento: se estiver cá um médico que consiga decidir mais facilmente, as situações fluem melhor". "Há turnos terríveis", admite a enfermeira-coordenadora, primeira protagonista que aparece neste vídeo sobre o peso dos internos no hospital.
"Este plano não serve". Alertas vermelhos e 72 horas para preparar resposta à catástrofe
"É a primeira coisa que vejo assim que chego. Tenho aqui o hospital todo". Todas as manhãs às 8h30 o relatório sobre os números da véspera aterra na caixa de correio eletrónico de Daniel Ferro, presidente do Centro Hospitalar Lisboa Norte, que junta o Hospital de Santa Maria e o Hospital Pulido Valente. Na maior parte dos dias, é apenas um documento em anexo, mas havendo algum alerta surge logo no corpo do email: se tiver menos de duas vagas disponíveis nos Cuidados Intensivos, o alerta é amarelo (está mesmo sublinhado a essa cor); se tiver apenas uma vaga ou mesmo nenhuma, o alerta é vermelho.
Os quatro dias anteriores, na terceira semana de dezembro, foram dos piores, com as vagas dos Cuidados Intensivos todas ocupadas, o que levou o hospital a abrir mais duas camas, passando de 34 para 36. Há sempre cinco enfermeiros em espera, que trabalham em blocos operatórios (já foram fechados quatro) mas sabem que podem ser chamados a qualquer momento em que seja preciso abrir mais duas camas de Medicina Intensiva.
A situação continua crítica todos os dias, mas 5 de março talvez ainda seja o dia mais angustiante para alguns dos elementos que compõem o gabinete de crise do hospital, que reúne os responsáveis pelos serviços de urgências, cuidados intensivos, enfermagem, anestesiologia e alguns peritos que pertencem aos conselhos consultivos da Ordem dos Médicos, da Faculdade e da Direção-Geral da Saúde.
Nesse dia, este gabinete de crise chegou a uma conclusão preocupante, quando foi confrontado com as terríveis imagens que chegavam dos hospitais em Itália: o plano de contingência do hospital não ia ser suficiente para enfrentar a pandemia. "Este plano não serve para nada", lembra-se Daniel Ferro de ter dito. E pediu novos planos em tempo recorde para os doentes críticos, para as urgências e para as enfermarias: "Temos de ter daqui a 72 horas um plano nas nossas mãos que, em cada uma destas áreas, seja completamente diferente deste e exequível. Não é no papel. Isso conhecemos aos montes. É para pegar nele e executar".
O novo plano já previa oito unidades de cuidados intensivos para doentes Covid, um crescimento tão significativo que ainda não chegou a ser concretizado: dez meses depois o hospital não passou das quatro unidades, onde estiveram internados, até 30 de novembro, 202 doentes infetados, com um tempo médio de permanência de 17,7 dias.
Covid-19 em números no Hospital de Santa Maria
De 13 março a 30 novembro 2020
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Número total de testes a profissionais de saúde 5 276testes -
Número total de testes a doentes 102 587testes -
Tempo médio de permanência dos infetados nos cuidados intensivos 17,7dias -
N.º de infetados atendidos vs. outros doentes * 3 369Covid-19106 296Outros -
N.º de infetados internados vs. outros doentes internados 1 129Covid-1920 644Outros -
Cuidados intensivos: n.º de infetados vs. outros doentes internados 202Covid-192 430Outros -
N.º de mortos por Covid-19 no hospital vs. n.º de mortos por outras causas ** 169Covid-191 788Outras causas
A gestão de espaços para tratar infetados e os telefonemas de Marta Temido
Os diretores de serviço e peritos do gabinete de crise do hospital estão reunidos num grupo de whatsapp — chamado GOp Covid CHLN — onde discutem, partilham artigos científicos, tiram dúvidas e colocam questões. Um dos primeiros alertas que fizeram foi em relação à Urgência Covid, que começou por funcionar em tendas frente ao hospital, e que entenderam que estava a colocar os profissionais e os doentes em risco.
Foi um dos maiores dilemas de Daniel Ferro: "Se antes da pandemia me perguntasse se era possível numa semana criar uma nova urgência no hospital, eu diria que era impossível. Mas foi possível. Claro, fizemos essa urgência num dos corredores do hospital. Nenhuma outra solução teria permitido num curto espaço de tempo passar de uma urgência de tenda para uma urgência de estrutura. Mas foi o que aconteceu". Só depois se avançou para a construção do Covidário, no parque de estacionamento em frente às urgências.
Com o equipamento não houve dilemas, apenas desespero e nervos. Ainda em fevereiro foram encomendados 48 ventiladores, mas com o resto da Europa sob forte pressão nunca mais eram entregues em Portugal. Parte desses ventiladores só chegariam no fim de junho. A encomenda dos últimos dez, que ainda não apareceram, foi cancelada agora em novembro. Cada ventilador custava 35 mil euros.
"Tínhamos tudo à míngua. Como é que íamos ter equipamento para montar cinco unidades de Cuidados Intensivos se fosse necessário? Ninguém tinha, nem nós nem ninguém. Temos 40 ventiladores nos blocos operatórios, que podiam ter sido a única solução, mas só em último caso. O que nos valeu foi o planalto na primeira fase da pandemia", recorda o administrador hospitalar, aliviado por a primeira vaga ter sido menos exigente em Portugal do que em Espanha e Itália.
A ministra da Saúde, Marta Temido, liga-lhe diretamente com regularidade, a fazer perguntas, alertas e pedidos: "Como estamos do plano de ativação de camas? Como está a correr o plano de enfermaria? E os Cuidados Intensivos? Como estão a fazer com os doentes suspensos? Olhe as listas de espera, olhe os tempos, 9 meses, 12 meses. Conseguiram fazer os protocolos [com os privados]? Excelente. Será que têm mais capacidade? Veja lá se têm mais".
Já a ligação com o Presidente da República é mais frequente através do seu assessor para a saúde, Mário Pereira Pinto, que ainda recentemente lhe ligou, a pedido de Marcelo Rebelo de Sousa, para saber como estava a correr a distribuição de medicamentos a 5 mil doentes crónicos fora do hospital.
A área não-Covid também coloca dilemas à gestão do hospital e chega a ser uma preocupação ainda maior. "Domingo e segunda-feira [13 e 14 de dezembro] foram dias de grande aflição. Ter duas vagas não-Covid é uma coisa… (suspiro)". Com a Medicina Interna cheia, a opção seguinte era internar doentes em 14 vagas que tinha nas especialidades. Se mesmo assim não fosse suficiente, poderia cancelar cirurgias programadas na Cardiologia, por exemplo, para poder usar essas camas. "Mas é o último escape".
Também há uma pressão maior para os doentes terem alta. "O diretor clínico esteve no fim de semana a trabalhar nestas vagas. Liga ao chefe de equipa e diz: 'Vai à Medicina 3 ou 4, ontem só houve uma alta'. Ou: 'Tens de ir ao Pulido Valente, há dois dias que não têm altas'. A gente vive isto ao doente, e à cama e ao dia. Só assim podemos antecipar soluções antes de as coisas acontecerem."
Nos doentes com Covid, o alerta chega nos dias em que há menos de seis, sete vagas de internamento em enfermarias. "É o sinal para abrir a unidade seguinte. Porquê seis ou sete? É o padrão. Todos os dias interno seis, sete, oito doentes. E já internei dez ou 12", explica Daniel Ferro. Na lista, a unidade seguinte a ocupar é a de Otorrinolaringologia: assim que a situação se complicar, passam a receber exclusivamente doentes infetados.
Nos Cuidados Intensivos, o limite previsto é de 50 camas para doentes com Covid-19, convertendo vagas da área não-covid e implicando uma gestão conjunta das restantes, por exemplo, a neurocirurgia, a cárdio-vascular ou a pulmonar e respiratória, passando os doentes destes serviços a ficar misturados. Mas no plano de catástrofe, num cenário mais extremo, quando todas as estruturas deixarem de conseguir dar resposta, está previsto que a unidade de cirurgia de ambulatório do Hospital Pulido Valente também passe a acolher doentes críticos.
Seis doentes críticos para uma vaga: o dia mais longo
Os relatos de Itália e Espanha, que descreviam a necessidade de escolher doentes para salvar por falta de ventiladores para todos, incomodaram todos os diretores de serviço e médicos ouvidos pelo Observador, ao longo das 85 horas em reportagem no Santa Maria. Muitos tentaram desmontar o simplismo dessa decisão, horrorizados com esta comparação pesada dos médicos a um Deus que decide quem vive e quem morre, ou pior ainda, que exclui automaticamente os idosos da salvação no limite. Apesar de em vários dias de novembro se terem esgotado as vagas nas unidades dedicadas à Covid-19, todos garantem que nenhum doente com critério para receber cuidados intensivos ficou sem resposta. Mas os dilemas estão lá. Todos os dias.
Filipe Bessa, o "sénior" de turno no Covidário, é muito claro a expor as maiores dúvidas que o vão assaltando: "O doente precisa de Medicina Intensiva? Será que eu o consigo agarrar cá em baixo [no Covidário] sem a Medicina Intensiva? Será que eu o ventilo? Será que o doente tem indicação para ser ventilado? Os maiores dilemas que temos aqui são termos doentes de 80 anos que estão perfeitamente bem e que são pessoas completamente autónomas e termos de pensar: 'Ok, mas eu tenho um homem de 50 anos que precisa de ventilação, eles estão os dois igualmente mal, mas só tenho uma vaga de Medicina Intensiva. Quem é que eu consigo segurar aqui mais um bocadinho para ter uma vaga de Medicina Intensiva mais tarde. Não chegámos ao dilema de não haver vaga, mas temos o dilema de tentar aguentar o máximo possível um doente para não sobrecarregar a Medicina Intensiva. Acaba sempre por haver vaga. Porque um lá se conseguiu extubar ou outro ficou melhor dos intensivos. Mais tarde ou mais cedo dá para se acudir aos dois. Mas é preciso escolher quem é que vai primeiro".
A falta de vagas de cuidados intensivos ou mesmo o facto de se saber que se está a ocupar a última vaga coloca uma pressão permanente no médico e obriga a outras decisões difíceis: ir acompanhar um doente crítico a outro hospital ou evitar deixar a equipa desfalcada quando enfrenta uma "urgência caótica"?
"Uma angústia enorme". Na parte final deste vídeo, a médica Sandra Braz descreve o seu pior dia destes dez meses de combate à Covid-19, em que tinha apenas uma vaga de cuidados intensivos para seis doentes críticos e todos os outros que haveriam de chegar, naquela sexta-feira de novembro que chegou a parecer interminável e apenas acabou no dia seguinte às 3 da tarde.
Um cenário tenso como este obriga o médico a falar, muito, com muita gente. Com as equipas de Medicina Intensiva, para avaliar se haverá doentes em condições de deixar os Cuidados Intensivos, ou se os doentes críticos nas enfermarias conseguem ir aguentando sem risco até abrirem mais vagas. Com os médicos que recebem os doentes na urgência. Com os médicos que habitualmente os seguem. Com os médicos dos outros hospitais que têm doentes críticos e precisam de os enviar para o hospital de referência, Santa Maria. E, muito importante, com os familiares: para perceber que tipo de doente é, que autonomia tem, que funções vitais pode recuperar e estabilizar.
Ao mesmo tempo, avalia-se a disponibilidade de camas de cuidados intensivos no resto do país: a norte estava tudo cheio, mas ainda havia vagas a sul, o que poderia ser usado num caso-limite, se não houvesse alternativa dentro do maior hospital do país.
Não se chegou a ir tão longe. Acabaram por avançar com a criação de emergência de três novas camas de cuidados intensivos, indo buscar a outros serviços enfermeiros já com experiência de acompanhamento de doentes críticos. Essas três novas camas tiveram mesmo de ser usadas. Todos os doentes em risco nessa longa sexta-feira acabaram por sobreviver.
"A população pode achar que isto é um bocadinho à filme das séries americanas e que mal os doentes entram o médico tem de tomar a decisão em minutos. Não vou dizer que não, mas não será em dois ou três minutos. Há uma equipa, não há um médico", frisa Sandra Braz.
"Aquele doente vai ultrapassar os Cuidados Intensivos e manter-se funcional?"
Um ponto ainda mais sensível do que a eventual escolha de doentes que vão mais cedo para cuidados intensivos é a decisão de não entregar de todo um doente a um ventilador, mesmo que haja vaga. Em doentes com insuficiência respiratória, com disfunção renal ou com uma doença neurológica degenerativa, é crítico tentar antever como é que o doente vai lidar com semanas de cuidados intensivos e procedimentos invasivos.
"Nós não estamos aqui a fazer escolhas de quem vive e quem é que tem direito à unidade [de Cuidados Intensivos]", assevera Sandra Braz. "Claro que o nosso receio é: se eu identificar um doente que tem indicação e potencial de recuperação numa unidade e eu não tiver vaga, como é que eu lido com isto? Mas temos de ser capazes de perceber se aquele doente vai ultrapassar os cuidados intensivos. Há muitos doentes que têm indicação para entrar nos Cuidados Intensivos do ponto de vista estrito de disfunção de órgão, mas o médico seria um mau médico se o propusesse para admissão nos Cuidados Intensivos porque ele não ia ultrapassar aquilo, tem uma reserva funcional muito baixa, portanto o médico ia estar a fazer-lhe mal. Agora decidir isso não é fácil", admite a coordenadora.
Neste vídeo, médicos e enfermeiros falam dos principais dilemas, do que os assusta, e do que os entristece nesta luta contra a pandemia.
"Os doentes morriam por causa do medo de nos aproximarmos deles". No fim do vídeo, vemos João Valente Jorge, interno de Anestesiologia, a falar não de um dilema, mas de uma lição a partir de uma dúvida terrível e pesada que se verificou no início da pandemia. Momentos antes, o seu diretor de serviço, Lucindo Ormonde, tinha partilhado essa mesma dúvida: pode não se ter conseguido fazer tudo para salvar doentes críticos, por causa dos dez minutos que os médicos demoravam a vestir os equipamentos de proteção individual antes de abordarem qualquer doente, com receio de que tivesse Covid-19 e pudesse infetá-los, numa fase em que se sabia bastante menos sobre a propagação do vírus.
Não é possível dizer com certeza que os doentes teriam sobrevivido se os médicos tivessem demorado menos tempo a socorrê-los. Mas a dúvida bastou para alterar os procedimentos, recorda o diretor: "Tivemos que ponderar imediatamente desescalar cuidados de segurança para salvar a vida aos doentes. Os profissionais têm que se equipar, o que demora muito tempo, e nestas situações o doente morre se demorarmos tempo. Houve muitas situações de conflito pessoal [interior] das pessoas entre deixar ou não deixar morrer alguém".
João Valente Jorge, o interno de 5º ano de Anestesiologia, calcula que entre 20 e 30 doentes poderiam não ter sobrevivido desde o início da pandemia, se ele ou um colega não estivessem presentes: "É gratificante, mas é o meu trabalho. É mais um dia no escritório. Venho porque todos os dias alguém pode precisar de mim, a mãe ou o filho de alguém pode precisar de mim. Adoro o que faço por essa sensação de adrenalina..."
Estava a dar a entrevista ao Observador junto à Urgência quando teve de interromper abruptamente, para socorrer uma mulher alvejada na cabeça pelo companheiro em Peniche — uma história que apareceria em todos os noticiários.
A doente foi submetida a um teste rápido, apenas autorizado em situações de emergência, e em menos de uma hora soube-se que não estava infetada, o que permitiu a todos os profissionais de saúde envolvidos no seu socorro correrem muito menos riscos. Não foi possível entrar na sala de emergência, mas o interno manteve o microfone na lapela, pelo que é possível ouvir como coordenou a operação.
O novo "setor dos instáveis". E o milagre da multiplicação de profissionais de saúde
Como é que se enfrenta um início de turno com a pressão de não ter vagas de cuidados intensivos? O que se faz aos doentes que chegam? E como lidar com esse peso? A resposta a estas três perguntas pode ser tão complicada, que o hospital tentou responder antes a outra: o que fazer para tentar evitar chegar a esta situação-limite sem vagas nos cuidados intensivos?
Além do alargamento progressivo do número de camas dedicadas exclusivamente a doentes com Covid-19, foi tomada uma medida mais radical e decisiva para enfrentar a segunda vaga: a criação em outubro de uma enfermaria apenas para seguir doentes críticos infetados, que precisem de oxigénio de alto fluxo ou ventilação não invasiva.
Sandra Braz chama-lhe informalmente o "setor dos instáveis". São doentes que em condições normais estariam a ocupar vagas de Cuidados Intensivos. Estão constantemente a ser monitorizados, inclusivamente com câmaras de vídeo que os vão mostrando e dando conta dos seus parâmetros vitais, podendo assim ser controlados à distância por quem estiver no gabinete de enfermagem, sem ter de se equipar para entrar na zona vermelha, que obriga a proteção total para atenuar o risco de contágio.
Os doentes podem ser transferidos a qualquer momento deste "setor dos instáveis" para os Cuidados Intensivos. E vice-versa: também é este setor a primeira paragem para muitos dos doentes que deixam os Cuidados Intensivos e ficam aqui sob vigilância. Num universo de 24 vagas de Cuidados Intensivos para doentes Covid, se o "setor dos instáveis" consegue acompanhar nove doentes críticos, pode fazer toda a diferença na gestão de vagas, aumentando em 37,5% a disponibilidade. No total, até há 21 camas nesta enfermaria, mas é difícil ter em todos os turnos o número necessário de profissionais de saúde preparados para lidar com tantos doentes críticos.
Como é que se "inventam" de repente médicos e enfermeiros para acompanhar tantos doentes com a vida no limite, ainda para mais num contexto em que não param de se aposentar ou de sair para hospitais particulares onde podem ser mais bem remunerados? Com alguma capacidade de improviso e adaptação, como mostram alguns exemplos:
— A equipa de enfermagem que agora se reveza em turnos no "setor dos instáveis" nunca tinha acompanhado doentes críticos e teve de aprender muito rapidamente tudo sobre a administração de oxigénio de alto fluxo e ventilação não invasiva.
— Os enfermeiros que vão sendo chamados para as novas camas de Cuidados Intensivos não são especializados em Medicina Intensiva, reconhece Daniel Ferro: "Uma coisa é ter experiência consolidada e atual, outra é ter alguma experiência com trabalhos próximos do doente crítico, numa sala operatória, num recobro operatório, com vigilância de funções e manejo de equipamento usado nos Cuidados Intensivos".
— O próprio esvaziamento das atividades não relacionadas com a Covid-19, a diminuição de consultas ou a suspensão de cirurgias não urgentes deixa os profissionais de saúde em início de carreira sem grandes alternativas para começarem a trabalhar. Numa Unidade de Cuidados Intensivos, o Observador encontrou uma enfermeira no seu segundo dia de trabalho, que preferia trabalhar com crianças em pediatria, onde não abriram vagas. Teve de fazer a formação inicial nos Cuidados Intensivos, que normalmente demoraria um mês, em apenas uma semana, para a partir daí integrar as escalas como todos os outros enfermeiros e assim serem cumpridos os rácios por doente.
— Estão a ser mobilizados médicos e internos de outras especialidades (Anestesiologia, Infecciologia, Pneumologia, Cardiologia) mas também os de outras áreas não diretamente ligadas à Medicina Intensiva ou à Medicina Interna, para acompanhar doentes com Covid-19. Foi ainda feita uma bolsa de médicos voluntários de outras especialidades.
— Muitas, muitas horas adicionais de trabalho. João Ribeiro, diretor de Medicina Intensiva, diz que tanto ele como outros colegas chegam a fazer 90 horas por semana. O enfermeiro-coordenador Benjamim Marques diz que a equipa está exausta: há enfermeiros a fazer 50 horas a mais por mês para equilibrar os turnos. No total, até novembro, foram contabilizadas 1.186.110 horas extraordinárias no Santa Maria, tendo já sido superado o acumulado do ano passado.
Mas há doentes que não poderiam ser salvos, mesmo que se juntassem todas as horas de todos os profissionais de saúde do mundo. Lidar diariamente com a morte no Covidário levou o interno Filipe Bessa a desabafar a sua irritação perante os que duvidam do impacto da doença: "Se acham que não existe, passem cá um dia. A história julgará quem tinha razão ou não. Na nossa perspetiva, que aqui estamos no meio deles, isto existe, isto é grave, isto está a piorar."
Texto Pedro Jorge Castro
Vídeo Catarina Santos
Fotografia João Porfírio
Web design e desenvolvimento Alex Santos