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Para ocupar o campo importa colocar o jogador certo na posição que interessa. Em Buenos Aires há muito talento, há muito jogo e quem corre quer fazê-lo por todo o campo. Ou então não quer seguir ordens, quer joga e apenas isso: jogar. A capital argentina é como o futebol argentino, ou então é o segundo que é igual à primeira. Tudo se confunde numa cidade que, afinal, é inconfundível. E que está cheia de sítios para ver, experimentar, viver, comer e visitar com dúvidas. Escolhemos 11 porque isto é tudo um jogo e porque fomos ver o “superclásico” River contra Boca. Esta é a seleção de um visitante bom de bola:

Aníbal

Guarda redes

O amigo Aníbal

É uma posição ingrata, é uma profissão criticada. Mas Aníbal, o taxista, homem dos seus 50 anos, é um duro e está preparado para tudo. Defende a sua dama, Buenos Aires, o seu clube, Boca Juniors, e aproveita logo para lançar o ataque: “Têm que conhecer a Bombonera, sou Boca, claro. E vamos ganhar 1-3 no Domingo. Têm de ir ao restaurante de um amigo, tem tangos fantásticos. E arranjo-vos uma viagem a Colónia de Sacramento a um preço. Ah, e Tigre! Têm que conhecer Tigre. Vamos já hoje?” Vamos.

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Tigre

Lateral direito

Tigre é lindo

É uma zona de classe média que parece rica, com casas invejáveis e cores e cheiros inigualáveis. Tem mercado, rio e barcos. É o lateral que parece melhor do que é. No início deslumbra, é rápido, cruza bem, faz umas fintas para a fotografia. Mas depois descobrimos as humidades. “O problema são as humidades”, dizia a outra. Ao fim do dia, isso até interessa pouco. Tigre é lindo. Tigre é a verde Argentina a entrar pela cidade.

Manifestações

Lateral esquerdo

Nada muda, mas vai mudando

Do outro lado temos um lateral mais velho, menos exuberante mas de total confiança. Não vira a cara à luta. A Argentina está na rua. Está sempre na rua, garante Aníbal. Pela perda de poder de compra, pelo fim da herança peronista, pelo Santiago Maldonado, o novo mártir da extrema-esquerda. É um pouco do espírito de Che que vemos nos olhares daqueles com que nos cruzamos. Nada muda, mas vai mudando. Não precisam de se manifestar sempre, mas urge fazê-lo.

Chuva

Central direito

Quem diz chuva diz mau tempo; quem diz mau tempo diz árvores caídas

É o central fraquinho. Estraga sempre a festa, mete sempre água. Já o sabemos mas somos sempre apanhados de surpresa. “O tempo aqui não é certo. Tanto está bom como fica horrible”, confessa o Aníbal. Foi um dia inteiro assim, com chuva, ventos fortes, trovoada, árvores caídas. As vantagens de um dilúvio destes? Fez brilhar o outro central.

Museus

Central esquerdo

Bellas artes, é assim que se escreve

Buenos Aires é cidade-cultura e tem centenas de museus, galerias ou espaços artísticos inesperados. O Museo Nacional de Bellas Artes, por exemplo, é um antigo palácio transformado num espaço cultural impressionante. Sempre cheio, com gente de todas as idades, é um percurso elucidativo pela história da pintura europeia e argentina. O Centro Cultural Kirchner é a antiga sede dos Correios, um edifício enorme, com exposições de arte contemporânea em todos os andares, e casa da Orquestra Sinfónica.

A Fundación Proa é outra paragem obrigatória. Situada na Boca, apresenta regularmente exposições ou intervenções artísticas que visam uma total rutura com o óbvio, com o hábito, com a previsibilidade. Proa, tal como o próprio bairro de Boca, é irreverência e isso é obrigatório. Mas Buenos Aires também se faz de tradição e o Museu Evita é um dos seus melhores exemplos. A viagem, de cerca de uma hora, pela vida da mulher que ainda todos amam é, simplesmente, imperdível.

Catedral do Tango

Médio defensivo

O número 4006 é um barracão feito catedral

Longe do centro e do turismo, a gentrificação ainda não chegou a esta zona mas nem a herança da linha de Sintra me salva. O trajeto numa quinta à noite é, no mínimo, marcante. Há demasiada pobreza nas ruas, imenso lixo, é toda uma viagem a uma Buenos Aires desconhecida. O número 4006 é um barracão feito catedral. Um espaço imponente, quase berlinense, onde todo o pé de chumbo se mostra e ninguém voa. O vinho é quente, Malbec de família, tinto de escolha. E eis que a hora chega e somos chamados à pista. Três conselhos da Irina sobre tango: “O tango é sobre ti e a música. É sobre tu e o outro. E é sobre vocês os dois e os outros.” Começa a música, siga a dança.

San Telmo

Médio ofensivo

Todas as cidades têm a sua Feira da Ladra

É o 8 do futebol moderno. Leva a bola para a frente, traz a vida do passado. Antiga zona rica, perdeu fama e dinheiro aquando da epidemia de febre amarela no século XIX. Desde então tornou-se refúgio de imigrantes europeus, de pobres, de desenraizados, de artistas. E foi graças a estes últimos que tem renascido. As rendas ainda são baixas mas encontram-se espaços imperiais e repletos de história, como aqueles que podemos visitar no El Zanjón de Granados, e com direito a explicação completa pelo entusiasta Enrique. San Telmo não é só passado, são também bares, restaurantes, galerias. Obrigatório? Passear pela Feira. Todas as cidades têm a sua feira da ladra. Esta prolonga-se por quilómetros. É enorme. Como tudo nesta cidade.

Colónia del Sacramento

Extremo direito

Da praia de Las Delicias ao campo de futebol

Portugal vive do lado direito do Rio de la Plata. Meio mundo recomenda a passagem pela antiga colónia portuguesa e esse meio mundo tem toda a razão. Da calçada de pedra a lembrar Trás-os-Montes aos jacarandás que me lembram a minha Lisboa, do bater das ondas na praia de Las Delicias ao campo de futebol quase abandonado, quase tudo são reminiscências dum império que se desfez. A viagem é relativamente curta, não chega a uma hora de barco e compensa cada minuto. Mesmo aqueles extra que ocorrem por atrasos da transportadora. E se o atraso for muito e a raiva crescer? É bater palmas, pelo menos em Roma há que fazer como os romanos.

Boca

Extremo esquerdo

Boca é Bombonera

É a história de um clube, de um estádio imponente, de um deus na Terra, mas de um museu pobre. O clube merecia mais, Maradona merecia mais. Boca é também o bairro dos extremos. O extremo dos truques e das fintas, do fogo de vista. Da cor e da explosão. Feito para inglês ver. E americano. E italiano. E português. E, por isso, falta tanta vida e realidade ao Caminito. A vida que sobra no outro lado, na vida de quem sofre com uma pobreza brutal. Boca é fome, desemprego, violência e “por aí não, señor”. Para sair de Boca? Bus. Com uma nota de 100 pesos (eles nunca têm troco) sai a custo zero.

Comida

Avançado

E que tal embutidos artesanales?

Argentina é carne. E pizza e choripan e papas fritas e ternera no pão e chimichurri e… “têm de ir ao La Granada”, era o conselho do Aníbal. Não fui, mas arrisquei a carne do Gran Parilla del Plata e foi increíble! Um sabor quase sem igual no mundo. Por outro lado, a história da Argentina fez-se de italianos e a pizza é um dos seus pratos mais afamados, a referência? Guerrin. Situada na Corrientes, que tem tanto de Itália como de Broadway, oferece uma lista com dezenas de opções de pizzas. Dezenas! Comer à porteño também é comer na rua e que bem se come nesta cidade. Das salsichas aos nacos de carne, dos dulces de leche às amêndoas caramelizadas, tudo se vende, tudo se come. E já estou com água na boca outra vez.

“Superclásico”

Ponta de lança

Domingo é dia da família. Dia de futebol. Tudo pára. Tudo pára na cidade e no metro, adeus bilheteiras e corrente elétrica. Tic tac tic tac. Já só faltam 3 horas para jogo e continuo preso no metro. A carruagem vai repleta e só dá River. Ao meu lado, um homem bate a perna a um ritmo louco. Compreendo bem essa sensação. A ânsia pela bola que não rola. Do meu outro lado, pai e filho. Não os consigo compreender mas quero acreditar que o pai explica-lhe que todos os grandes feitos compensam as noites infelizes como a desta semana, em que a final da Libertadores ficou a um passo. “O futebol é tudo, meu filho.”

O mural com os “millonários” do River

O outro caminho é feito de ruas e ruas que formam quarteirões à River. De todo o lado surgem velhos e novos com aquela risca diagonal. Uma última curva à direita e o Monumental ao longe. Vejo roulotes à antiga, cheiro os asados, sinto a festa. É o Jamor mas do outro lado do mundo. Entrar não é fácil, sou revistado cuidadosamente uma e duas vezes, e pedem-me o DNI card. Quê? “Tarjeta DNI. ID card, man!” Nova conversa com um polícia e, finalmente, o Monumental! As escadas rumam ao céu, são antigas e ensinam aos mais novos que não há futebol sem bola. Quando as escadas acabam, passo as pinturas dos heróis millonários e eis que o estádio e as suas bancadas se abrem aos meus olhos.

O Monumental é monumental. Faltam duas horas, falta uma hora, faltam 30 minutos. A última meia hora é de loucos, dos foguetes aos panos que caem do céu, dos velhos que rasgam a voz num assomo de paixão às crianças que se penduram por todo o lado. Tenho a certeza de que a sanidade não tinha DNI card e ficou à porta, ao meu lado só restam os doidos. Rola a bola e as emoções são tantas e tão contagiosas que me sinto um deles e grito:

River vos sos mi vida
River vos sos mi vida.
Lo mas grande de la Argentina,
te llevamos en el corazon.

O Boca ganhou o derby 200 e caminha imparável rumo ao recorde de 9 vitórias consecutivas pertencente ao River, em 1991. Há noites mais difíceis, mesmo para os que são os mas grandes, e esta noite foi o fim de toda uma semana de terror para a equipa de Gallardo. Mas nem tudo foi mau, quando Fabra falhou o 1-3, evitou que Aníbal tivesse razão “una vez mas”. Ah, Buenos Aires.