Há muito tempo me questiono porque se gastarão tanto as palavras, até se tornarem simples instintos na garganta, sons perdidos do seu primeiro brilho. Sempre me impressionou a forma desafectuosa como alguns as arrojam, até as mais belas, as mais íntimas. Não me refiro “ao bom português”, uma expressão que me é particularmente execrável. Não sou um daqueles intrépidos exploradores dos vazios legais da nossa língua, prescritor entusiasta de regências verbais estripadas de velhos calhamaços, que quase espumam de ódio – tantas vezes confundido com prazer – perante as calinadas dos oráculos da televisão (outra bela palavra caída em desgraça). Aliás, não sei quem me irrita mais: se os donos da língua, de olhar sobranceiro e dedo acusador, se os que se desenamoraram das palavras. Mas isso é uma outra conversa.
Recentemente, porém, este último grupo – o dos que cospem palavras – tem andado muito activo. Talvez seja porque nos últimos tempos também a mim as “redes sociais” me têm consumido muito mais tempo do que a inteligência recomendaria e, por mal dos meus pecados, a televisão tem andado muito mais palradora aqui em casa. E não fosse o triste facto de o telecomando parecer ter uma vontade própria, sadicamente contrária à minha, hoje estaria mais sossegado. É que quando chegam os intervalos do telejornal, não vou a tempo de mudar de canal, por não encontrar o pérfido objecto. E assim se foi instalando, nestas últimas semanas, um ligeiro incómodo, sempre que um mesmo reclame (os puristas que me perdoem o galicismo) se repetia, vagamente enjoativo, cavado numa voz lenta, grave e compassiva, embargada por um certo tipo de patriotismo muito em voga em vãos de escada, e que apelava à firme esperança num futuro melhor. Escusado será dizer que o objectivo não era o nosso reconforto, mas promover um certo operador telefónico – um dos ramos da actividade económica, que, aliás, muito tem sofrido com a actual crise, como é facto público. Seguiram-no, bem de perto, em desenfreado despique, os slogans dos retalhistas, outras vítimas do momento, competindo para ver quem amassaria e escarraria mais rapidamente as palavras para as voltar a engolir, convenientemente embrulhadas em papel higiénico. Uma vez mais, as palavras corrompiam-se diante de mim, pronunciadas por bocas forçadas a não as estimar, num crescendo tal que a coisa se tornou, para mim, insuportável.
Tomei, então, há poucos dias, uma decisão sensata, e desliguei a televisão por tempo indeterminado. Bem sei que devia ter pegado num livro. Ao invés, tive a infeliz ideia de ligar o computador. Arrependi-me imediatamente. A primeira coisa que vejo na minha “rede social” é um anúncio a uma conhecida marca de bolachas, daquelas com cinquenta vezes mais açúcar do que uma centena de pandas precisaria numa vida inteira. Acompanhava-a o famigerado arco-íris. A dita bolachinha, gorda e apetitosa, procurava tranquilizar-me: “vai ficar tudo bem”. Já andava com a frase e a mensageira dos deuses apanhadas de canto. Sei de professores e de amigos que veem na mensagem um simples e ingénuo desejo, principalmente no lápis de uma criança. Não o contesto. Mas o que mais receava confirmou-se: a frase, as suas palavras, o seu âmago, transformaram-se numa espécie de chavão sem realidade, num simulacro de intenção. Uma boçalidade. Agi por instinto: comentei, no próprio anúncio, como era errado usar o contexto da pandemia e aquelas palavras para vender bolachas. Já devia ter idade para ter juízo. Respondeu-me logo um cliente satisfeito (suspeito que pago pela marca, ou enamorado por ela, caso ainda mais grave); não entendia o meu pejo, achava um disparate o meu comentário. Outro acrescentou, muito a despropósito, que adorava uma das muitas variedades da dita cuja. E a bolacha (é sob a sua imagem que a marca fala) respondeu prontamente a este último, perguntando-lhe qual variante ocuparia para ele, então, o segundo lugar. Estava curiosa. E aqui se iniciou um profícuo diálogo no meu próprio comentário. A bolacha ignorava-me ostensivamente, do alto da sua doçura.
Fiquei a entender melhor porque definham tantas vezes as palavras. São como aqueles cães outrora magníficos e bem tratados, que os donos negligenciam até os deixarem escanzelados e sem pêlo, presos à casota. Também algumas palavras ficam nesta espécie de limbo, semi-mortas, acabrunhadas. Esperam tristemente pelo dia em que as usarão para emprenhar a próxima geração, com o pálido ardor do que outrora foram.