Os mais recentes ataques informáticos perpetrados, primeiro contra o Grupo Impresa, depois ao site do Parlamento e, agora, à empresa Vodafone revelam-nos uma conclusão grave sobre a conduta humana: é que há quem não se preocupe com os efeitos amplos que os seus atos podem acarretar, já que, conhecendo-os à partida, estas pessoas planeiam formas de os mesmos se tornarem efetivamente reais. Dado que estas ciberofensas aconteceram num prazo de apenas cerca de um mês, uma segunda tendência pode ser relatada: trata-se de investidas cada vez mais frequentes, advindas das necessidades e potencialidades que a pandemia de Covid-19 revelou, onde nem as entidades de maior tamanho, poder ou influência, alegadamente mais prevenidas para estes fenómenos, conseguem escapar ilesas.

A atualidade é do digital, por mais controvérsias que a transição do físico para o eletrónico possa levantar ou intensificar. Por enquanto sabemos que iremos sempre por os pés em chãos que podemos sentir, mas os olhos direcionam-se para o futuro que a tecnologia pode proporcionar. Dizer que a nossa vida – desde as transações financeiras que efetuamos às páginas que pesquisamos para estudar ou, até, às pequenas coisas que escrevemos numa simples aplicação com função de bloco de notas – é governada pelos critérios e desígnios do universo virtual constitui hoje um lugar-comum de tão óbvia que parece ser esta afirmação. Novos riscos são produzidos, por cada um/a de nós, por todas/os como grupos ou comunidades e pelos processos que desencadeamos, mas será útil perceber que estes riscos são apenas uma extensão ou uma reconfiguração daqueles que já existiam no face a face corpóreo: as intrujices e as burlas, os esquemas organizados, os ferimentos das palavras dolorosas, as invasões da privacidade, são tudo parte de uma realidade que já não nos é desconhecida, mas que simplesmente adquiriu um novo rosto mais sofisticado.

E é este novo semblante – ou a falta dele, porque os/as piratas informáticos/as são sempre inimputáveis, dado o desconhecimento que temos relativamente às suas identidades – que tem sustentado os abusos concretizados no mundo digital, sendo aquelas instituições ou empresas já referidas somente uma parte dos alvos selecionados pelos grupos organizados. O lado económico, com atrasos na produtividade, impossibilidades de fechar acordos e perdas de lucros é a dimensão mais visível das consequências destas invasões, mas não é claramente a única: falamos, por exemplo, de questões tecnológicas difíceis de resolver, que exigem gastos de tempo por parte de equipas que poderiam estar a alocar os seus esforços para outras atividades mais relevantes e possíveis aquando do normal funcionamento das redes; ou então informações de milhares ou milhões de clientes que se podem tornar acessíveis com um estalar dos dedos.

Este último perigo de tomada da vida privada está indissociável das mesmas ameaças que assaltam a vida pública: é a democracia que também está em jogo quando estes crimes acontecem. Repare-se que é o setor da comunicação um dos alvos preferidos destas fações do oculto virtual, senão o predileto. O Grupo Impresa é um dos que assume a comunicação social, o Parlamento é o lugar da comunicação e do diálogo democráticos com a população portuguesa e a Vodafone é uma das empresas que permite as comunicações individuais e de informações e conteúdos a partir da televisão ou da Internet. Obstruir esta comunicação é minar o exercício da democracia, quer este seja realizado em contextos e espaços específicos, quer aconteça na vida de todos os dias. E aqueles/as patifes, de resto, sabem-no muito bem. O debate que há séculos se tem efetuado, e se iniciou com Kant e Stuart Mill, sobre se o que importa mais são as intenções ou as consequências de uma ação, aqui se metamorfoseia numa complexidade perversa, pois os objetivos destas delinquências são maléficos e os desfechos mais vis ainda.

Não sei se a literacia digital, que abunda nos discursos hodiernos dos mundos educativo, científico e político, será a melhor ou a única ferramenta para lidar com estas intimidações que a toda a sociedade dizem respeito. Certamente que a segurança prévia e as investigações e ações punitivas posteriores têm o seu papel na contribuição para a dissuasão destes comportamentos. Todavia, não podemos desviar-nos da relevância e da premência que esta pedagogia para a cidadania digital tem suscitado. Daí que precisamos de “estourar as bolhas!”, como o título do presente texto assinala. Estourar as bolhas é precisamente deixar cair a capa da ignorância que nos leva a considerar que as realidades material e virtual são duas entidades distintas e independentes. O que o presente, e sobretudo o futuro, nos demonstra é que uma é o prolongamento da outra, uma está condicionada pela outra e juntas dão sentido à organização societal que hoje encontramos. Se as próximas hostilidades estão ali, ao virar da esquina, estejamos já na rua anterior a preparar-nos para as enfrentar.

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