Continuamos na senda das politiquices que alimentam o suspense, a dúvida, a incerteza, e o desconhecido. Tudo tem servido para atacar, sem medo nem freios, com despudor e sem vergonha, sem pudor nem decoro, sem dignidade nem brio.

A novela madeirense que foi desencadeada em Janeiro tem tomado um rumo para uma eventual mexicanização dos episódios, com o renovar de protagonistas que se prestam a canalhices próprias do zoológico em que se transformou a política madeirense.

Há vários mitos que por aí correm sobre a responsabilidade de determinados partidos relativamente à falta de orçamento para o presente ano, e convém, a este propósito, recuarmos no tempo para que memórias mais esquecidas sejam relembradas dos factos que, efetivamente, ocorreram. Para isso importa esmiuçar cada acontecimento, cada posição, cada discurso e cada suspiro.

A crise política que se desencadeou no dia 24 de Janeiro gerou inúmeros marrecos que deram a cara por uma gestão da crise política absolutamente lastimável, o que contribuiu para a criação de um ambiente político que encerrava em si as ambições de mudança mais velhacas que ainda hoje estão por concretizar.

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Miguel Albuquerque, no próprio dia das buscas, recusou demitir-se, tendo a garantia de que o suporte partidário do seu Governo na Assembleia Legislativa se mantinha intacto. No dia seguinte, o PAN deu o dito por não dito e, sem rigorosamente nenhuma alteração dos factos que se sabiam à data, de um dia para o outro, retirou a confiança política à personalidade Miguel Albuquerque. Perante isto, o Presidente do Governo Regional apresentou a sua demissão ao Representante da República na Madeira.

É importante recordar que a Região estava em vésperas de discutir o Orçamento Regional para o ano corrente. Tendo em conta o Estatuto Político Administrativo da Região Autónoma da Madeira, mais concretamente o artigo 62º, número 1, alínea b), menciona-se que “implica a demissão do Governo Regional a apresentação, pelo Presidente do Governo Regional, do pedido de exoneração” – que foi, efetivamente, o que aconteceu. No cumprimento estrito e literal do Estatuto Político Administrativo, a partir do momento em que Miguel Albuquerque apresenta o seu pedido de exoneração ao Representante da República, o Governo passa imediatamente a demissionário, atendendo a que este pedido de demissão não carece de aceitação por parte do Representante da República – o que é contrário quando comparado com a demissão do Primeiro-Ministro que requer a aceitação desse pedido por parte do Presidente da República.

Pedido de exoneração entregue, o Governo deixa de ter plenitude de funções, legitimidade e competências para a discussão do Orçamento Regional que aconteceria dias mais tarde na Assembleia Legislativa. A falta de Orçamento aprovado na Região Autónoma da Madeira é única e exclusivamente da responsabilidade de quem escreveu este moribundo Estatuto Político Administrativo, que de pouco ou nada serve, carregado de ambiguidades, imperfeições e imprecisões que colocam em causa o funcionamento das instituições democráticas.

Acontece que por esta altura, tanto o Partido Socialista como o Chega – dizem-se tão diferentes, mas são tão iguais – apresentaram, cada um, uma moção de censura na ALRAM com votação agendada para antes da discussão do Orçamento Regional. Se estas moções de censura tivessem sido votadas nas datas propostas e tivessem sido aprovadas, o Governo, mais uma vez, ficaria imediatamente demitido, porque no artigo 62º, número 1, alínea d), do Estatuto Político Administrativo, diz-se que “implica a demissão do Governo Regional a aprovação de uma moção de censura por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções”.  Assim sendo, partindo do pressuposto que as moções de censura são apresentadas para serem favoravelmente votadas, tanto pelo PS como pelo CH, o Governo caía antes mesmo do Orçamento ser votado.

Quando hoje se ouve, por essa ilha fora, altos dirigentes destes partidos a responsabilizarem outros pela não aprovação do Orçamento Regional, que não haja dúvidas do risível cinismo que comportam tais insinuações.

Hoje em dia, o discurso ajustou-se, e faz jus aos procedimentos estatutários e regimentais que se seguem, nomeadamente quanto à votação do Programa de Governo – que será votado sob a forma de moção de confiança. O Partido Socialista já anunciou o seu voto contra, o CH idem aspas, os gauleses do JPP confirmaram também a intenção de votar contra o Programa de Governo depois de toda a cena fictícia e teatral que fez encher os seus eleitores de vergonha alheia.

Com isto, a probabilidade da moção de confiança ser rejeitada é elevadíssima. E se assim for o que é que sucede? No artigo 62º, número 1, alínea d), do Estatuto Político Administrativo, diz-se que “implica a demissão do Governo Regional a aprovação de uma moção de censura por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções”. Sendo a moção de confiança – que é contrária à moção de censura – rejeitada, então o Governo, na prática, acaba por ser censurado. Se o raciocínio for feito ao contrário chegamos a esta conclusão. A questão aqui é que, para além do facto do Estatuto Político Administrativo ter sido escrito por incompetentes de último grau, não é previsto o procedimento para o caso da rejeição de uma moção de confiança.

A verdade é que sem a aprovação do Programa de Governo, o executivo não fica em plenitude de funções, e se a interpretação acima vingar, na verdade, o Governo permanecerá estatutariamente inapto para a discussão do Orçamento Regional de 2024 – que, volvidos 6 meses, ainda não viu a luz do dia – já que voltará a estar demissionário.

Salvo melhor interpretação, que contrarie aquela que acima foi descrita e o governo não ficar na condição de demitido, o artigo 60º, número 1, do Estatuto Político Administrativo, refere que “(…) o Governo pode propor, por uma ou mais vezes, à Assembleia Legislativa Regional a aprovação de um voto de confiança sobre qualquer assunto de relevante interesse para a Região (…)”, o que me dá a entender que, caso o Governo não fique automaticamente demitido, poderá apresentar uma outra moção de confiança até que alguém a aprove.

No fundo, se os documentos que garantem o regular funcionamento das instituições tivessem sido redigidos numa lógica esclarecedora, concreta, e com pés e cabeça, não ficaríamos à mercê da interpretação de quem tem os poderes institucionais na mão…