Na controvérsia instalada sobre a recondução (ou não) da PGR já se percebeu a fundamentação dos que defendem a sua continuidade no cargo. Mas ainda não se compreendem minimamente as razões ou os argumentos políticos dos que propõem, explícita ou dissimuladamente, o afastamento de Joana Marques Vidal da liderança do Ministério Público (MP).

Os que aconselham um novo mandato para a PGR destacam, em síntese, a isenção, a independência, a impermeabilidade a pressões diversas e a impactante eficácia com que o MP tem conduzido o combate à corrupção nestes seis anos de exercício do cargo por Joana Marques Vidal – e apontam casos como a Operação Marquês (que apanhou na sua rede, entre outros nomes sonantes, um poderoso ex-primeiro-ministro e o mais influente dos banqueiros do país, José Sócrates e Ricardo Salgado), a investigação que abrangeu sem subserviências um ex-vice-Presidente de Angola ou o processo dos Vistos Gold envolvendo figuras do PSD. É um registo único em termos de resultados e de liberdade de atuação judicial, sem paralelo na história da Procuradoria.

Já os que sugerem a saída de Joana Marques Vidal não avançam uma só justificação política que seja, apenas adiantando argumentos colaterais de ordem jurídica ou funcional. 1.Alegam (erradamente) como a ministra Francisca Van Dunem que a Constituição só permitiria um mandato único. 2.Advertem (enganosamente) como Carlos César e alguns opinadores ao serviço do PS que um segundo mandato abre portas a um indesejado condicionamento da(o) PGR para que a(o) reconduzam no cargo. 3.Recordam (infundadamente) que os anteriores procuradores Souto Moura e Pinto Monteiro também foram impedidos de exercer um segundo mandato. 4.Invocam (à falta de melhores pretextos) uma intolerável perseguição do poder judicial aos políticos por causa das investigações a viagens pagas para ver futebol ou para promover empresas estrangeiras. 5.Ou afirmam (hipocritamente) como Seixas da Costa que o tema nem deve ser debatido publicamente, pois é da exclusiva área de decisão do PR e do PM. Vejamos mais detalhadamente cada um destes argumentos.

1.Depois da celeuma levantada em janeiro pelas erróneas declarações da ministra da Justiça já ficou devida e cabalmente demonstrado por conceituados constitucionalistas e juristas que são legalmente previstos dois mandatos no cargo de PGR.

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2.Quem entende que o exercício de seis anos não deve ser renovável, por submeter o titular do cargo que queira ser reconduzido a pressões e influências indesejáveis no primeiro mandato, terá que, antes de mais, alterar a Constituição a esse respeito. Mas, no caso vertente de Joana Marques Vidal, o argumento é falacioso e mesmo reversível: poderia aplicar-se se ela estivesse no início do primeiro mandato, mas ela está no fim, não precisa de se sujeitar a qualquer pressão ou interesse para ser reconduzida; e até deu já sobejas provas nestes seis anos de capacidade e isenção (o que vira o argumento contra os seus utilizadores).

3.Tanto Souto Moura em 2006 como Pinto Monteiro em 2012 (este por atingir o limite de idade) revelaram a intenção de sair no final do mandato. Não é o caso de Joana Marques Vidal, ao que se sabe.

4.O balanço profissional e político do mandato da PGR faz-se tendo em conta os processos e investigações marcantes para a higiene democrática do país e contra a corrupção ao mais alto nível, como é o caso da Operação Marquês. Não se faz contabilizando casos menores, como o das viagens dos políticos, ou insucessos em tribunal de algumas acusações em processos secundários do MP – ou só o faz quem está interessado em se agarrar a qualquer minudência para menorizar a figura de Joana Marques Vidal.

5.Em qualquer sociedade democrática temas como a da recondução (ou não) da PGR são livremente debatidos pelas forças políticas, pelos órgãos de comunicação social e nos inúmeros palcos das redes sociais. Só mentes retorcidas ou interesseiramente enviesadas podem advogar a restrição desse debate aos intervenientes institucionais na decisão.

Aliás, não deixa de ser significativo que tanto o CDS (pela voz de Assunção Cristas), como o BE (Pedro Filipe Soares), o PSD (Elina Fraga) ou o PCP (Jerónimo de Sousa em entrevista â RTP) já se tenham pronunciado favoravelmente sobre a recondução de Joana Marques Vidal. Apenas o PS parece interessado em afastar a PGR da liderança das investigações judiciais – de Francisca Van Dunem ao próprio António Costa, passando por alguns peões opinativos das fileiras socialistas.

Ora o PS tem vários e incómodos esqueletos no armário no que respeita ao seu relacionamento passado com o poder judicial. Não será aconselhável revisitá-los nesta altura. E, pior ainda, o PS tem uma inquietante e permanente nuvem ameaçadora sobre a sua cabeça – a tóxica imagem pública de Sócrates, Vara e companhia, e as acusações de corrupção de que são alvo. Desde que chegou à liderança do PS no final de 2014, António Costa bem se tem esforçado por neutralizar ou afastar essa nuvem escura do seu caminho.

Se, agora, propuser sequer o afastamento da PGR todos lerão esse gesto como uma tentativa de ajuste de contas com o MP por parte do PS e do que resta no partido do sobrevivente socratismo. E, em pleno ano eleitoral, isso pode ter um efeito nefasto na sonhada maioria de Costa. O eleitorado central e moderado é mais suscetível a reagir negativamente contra abusos do poder político (como seria a proposta de retirar de cena Joana Marques Vidal) do que os fiéis eleitores que votam habitualmente no mesmo partido. Querer afastar a PGR pode custar a Costa muitos milhares de votos no eleitorado mais flexível, mais numeroso e mais decisivo.

E ficaria sempre a pergunta: mudar de PGR em nome de quê? Que razões de Estado se iriam invocar ou inventar? Não será fácil a Costa encontrar uma resposta consubstanciada e aceitável a essa pergunta. Nem a Marcelo Rebelo de Sousa seria fácil, se o PR permitisse o afastamento da PGR num eventual braço-de-ferro com o PM e o PS – do qual sairia derrotado aos olhos do país.

Jornalista