É sempre demasiado cedo para avaliar uma tecnologia, até que, de repente, é demasiado tarde! (Martin Buxton)

Figura 1: Através da utilização de processadores de sinais neuronais, esta interface cérebro-máquina permite a uma pessoa paralisada controlar um braço robótico com os seus pensamentos. BrainGate.

O que são e para que servem as interfaces cérebro-máquina?

As interfaces cérebro-máquina (ICMs) não são uma tecnologia nova, mas o debate em torno delas reacendeu-se recentemente, sobretudo devido aos testes levados a cabo pela Neuralink, de Elon Musk.

De forma muito simples, as ICMs são interfaces entre o cérebro e dispositivos externos, como um computador, que têm como objetivo facilitar a comunicação direta entre o cérebro e estes dispositivos, permitindo a troca de informações ou de sinais de controlo sem a necessidade das vias tradicionais, como os músculos ou os nervos. No fundo, trata-se de permitir que a pessoa interaja com dispositivos ou tecnologias externas diretamente através da atividade cerebral. Para que tal seja possível, é necessário que a atividade neuronal que ocorre no cérebro seja captada, lida, interpretada e transformada em comandos ou sinais de controlo para esses dispositivos.

Há dois métodos diferentes para levar a cabo este processo: não-invasivos e invasivos. Os métodos não-invasivos utilizam sensores externos para detetar e interpretar sinais neuronais a partir do couro cabeludo ou de outros nervos periféricos. Este método é relativamente seguro, mas também mais suscetível a falhas devido a possíveis interferências de ruído e menor resolução espacial. Exemplo disto é a eletroencefalografia (EEG), que permite medir a atividade elétrica no cérebro utilizando elétrodos colocados no couro cabeludo. Os sinais captados permitem controlar dispositivos externos, como membros protésicos ou interfaces de computador, através da deteção de padrões de atividade cerebral associados a intenções ou comandos específicos.

Já os métodos invasivos envolvem a implantação direta de elétrodos ou outras interfaces neuronais no tecido cerebral. Estes elétrodos permitem registar a atividade neuronal com grande precisão, otimizando o controlo e comunicação entre o cérebro e os dispositivos externos. Sem surpresa, os riscos associados à cirurgia e implantação de ICMs diretamente no cérebro são consideráveis. A estimulação cerebral profunda é um exemplo deste tipo de ICM. Utilizada para tratar doenças neurológicas como a doença de Parkinson, os elétrodos implantados cirurgicamente em regiões específicas do cérebro permitem transmitir impulsos elétricos para modular a atividade neuronal e aliviar os sintomas da doença.

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Figura 2: Os dispositivos sem fios da Neuralink, com mais de 1000 condutores flexíveis, captam pensamentos relacionados com o movimento através de elétrodos no córtex cerebral. Neuralink/X.

Qualquer que seja o método, os objetivos são simples, mas variados. Desde devolver o controlo de membros a pessoas paralisadas, restaurar funções sensoriais ou motoras perdidas em indivíduos com deficiências, permitir o controlo de próteses externas, cursores e cadeiras de rodas, até possibilitar a comunicação através de comandos mentais (telepatia).

Ou seja, não se trata apenas de uma utilização terapêutica, mas, num futuro que se adivinha próximo, da sua massificação também para fins de entretenimento e de melhoramento.

No que toca ao entretenimento, pensemos, por exemplo, em experiências imersivas e novas formas de interação ao nível dos videojogos, em que os jogadores poderão controlar personagens ou ambientes de jogo diretamente com os seus pensamentos.

No que diz respeito às melhorias (enhancements, para usar o jargão inglês tão presente na literatura da especialidade, mas que não está isento de problemas), pensemos, a título de exemplo, na possibilidade de usar ICMs para aumentar as capacidades e funções humanas para além dos seus limites naturais. É verdade, contudo, que as categorias “tratamento” e “melhoramento” são bastante difusas e fluidas. Por exemplo, o desenvolvimento de braços protésicos elétricos ou robóticos podem oferecer não só o restabelecimento da função normal a uma pessoa que perdeu um braço, mas também aumentar as suas capacidades, como força, destreza ou precisão, muito para lá do normal.

O uso de ICMs para fins militares é aqui ilustrativo. Além do seu uso em programas de treino para melhorar a aquisição de competências e acelerar a aprendizagem, falamos da possibilidade de controlar veículos militares diretamente com o pensamento, permitindo uma execução mais rápida e precisa das missões sem necessidade de controlos manuais, ou de facilitar e otimizar a comunicação entre soldados, comandantes e equipas de apoio. Mais significativamente, falamos também da neuromodulação, que implica modular a atividade neuronal dos soldados para melhorar o desempenho, reduzir a fadiga ou aumentar a resistência ao stresse durante missões prolongadas.

É ainda previsível que a utilização de ICMs venha a ser utilizada para avaliar a performance de profissionais a atuar em situações complexas, altamente exigentes e de risco elevado. A monitorização da atividade cerebral de pilotos de aviões, por exemplo, poderá ajudar a compreender o nível de esforço cognitivo empregue durante as diferentes fases do voo e, por conseguinte, ajudar a melhorar a segurança da aviação através do desenvolvimento de sistemas que ajudem os pilotos durante períodos de elevado esforço, contribuindo para uma potencial redução de erros e melhoria do desempenho geral.

Figura 3: A Cognixion ONE é uma ICM não-invasiva de realidade aumentada. Os vários elétrodos do equipamento captam os sinais elétricos gerados pela atividade cerebral, permitindo ao dispositivo interpretar as intenções do utilizador e traduzi-las em comandos para interação com interfaces virtuais apresentadas no ecrã. Cognixion.

É importante abordar este tema com cautela. Apesar dos progressos significativos alcançados nos últimos anos, algumas das funcionalidades que aqui refiro estão ainda muito longe de serem possíveis e temos o dever de não criar expetativas falsas ou infundadas em torno destas matérias. Todavia, o rápido desenvolvimento destas tecnologias faz adivinhar a sua comercialização e massificação mais tarde ou mais cedo. Assim, filósofos e eticistas têm uma obrigação especial de acompanhar e participar no seu desenvolvimento, acautelando possíveis problemas éticos e oferecendo soluções para atenuar ou resolver eventuais conflitos e dilemas antes, durante e depois de estes surgirem.

Ética e valores em questão

Quero aqui identificar um conjunto de áreas em que possíveis problemas éticos estarão cada vez mais presentes na discussão em torno do desenvolvimento, comercialização e utilização de interfaces cérebro-máquina, quer ao nível terapêutico, quer não-terapêutico.

Segurança e balanço risco-benefício. A segurança e o risco para a vida e saúde da pessoa são mais evidentes e imediatos no caso das ICMs invasivas; a cirurgia e a implantação de um chip sob a pele ou diretamente no cérebro pode resultar em infeções, traumatismo cerebral agudo ou cicatrizes gliais em torno do implante, dificultando o seu desempenho. ICMs não-invasivas apresentam desafios igualmente importantes, sobretudo ao nível de possíveis efeitos secundários ainda desconhecidos e da reação do cérebro quer à utilização prolongada e intensiva das ICMs, quer à sua remoção e ausência. Por exemplo, como reage o cérebro e que impacto tem na pessoa viver sem uma ICM que até ali lhe tinha possibilitado conduzir uma cadeira de rodas ou manobrar uma prótese?

A dependência da tecnologia é um fator crucial a ter em conta quanto à questão da segurança e risco. Falhas técnicas em ambiente industrial, médico ou militar podem ter resultados graves: se uma ICM usada para controlar uma bomba de insulina ou um pacemaker falhar ou perder a conetividade, pode resultar numa dosagem incorreta de medicamentos ou em ritmos cardíacos irregulares, pondo em risco a vida do doente.

Identidade. A prótese com que a pessoa vive há vários anos é apenas uma ferramenta ou ter-se-á tornado parte de si, da sua própria identidade e modo de viver? A crescente e progressiva ciborgificação do ser humano é amplamente discutida. Alguns autores têm defendido que as ICMs nos podem tornar menos humanos. Outros, como os transumanistas, veem nesta fusão com as tecnologias um passo natural para colmatar debilidades naturais do ser humano, como fracas capacidades cognitivas, físicas e até morais. A questão central continua a ser: o que nos torna e identifica como humanos? O que pensa um doente acerca da sua possível mudança de identidade ao longo do período em que usou uma ICM? E o que distingue este de outros processos médicos ou não-médicos igualmente transformadores da identidade? Vencer o cancro ou embarcar num cruzeiro pelo Mediterrâneo podem alterar profundamente a nossa identidade.

O problema mais candente serão os efeitos de longo prazo e a capacidade das ICMs para provocar alterações generalizadas no funcionamento do cérebro: tendo este a capacidade de mudar e de se adaptar com base na sua atividade, a utilização continuada de ICMs pode afetar esta plasticidade e alterar o seu funcionamento.

Justiça. Não falo apenas da regulação do acesso a estas tecnologias uma vez disponíveis no mercado, mas da participação pública no seu desenvolvimento. É importante ter em conta perspetivas de diferentes tipos de utilizadores, desde as pessoas que se prevê virem a ser mais afetadas pelo seu uso até pessoas com deficiências. É igualmente relevante perceber o papel dos sujeitos (humanos ou não humanos) que participam nos testes clínicos e o que lhes acontece depois desses testes. Se estes sujeitos mantiverem o implante, a quem cumpre a sua manutenção a longo prazo e que acompanhamento técnico e médico lhes é dado?

Privacidade. A recolha de sinais neuronais traduz-se numa extração de informação diretamente do cérebro, o que significa que as nossas mentes podem ser lidas por terceiros. Isto é especialmente preocupante devido ao risco acrescido de interferência indevida por parte de hackers. Tal como os computadores, as ICMs são vulneráveis a ataques informáticos. A extração de informação pessoal sensível de formas mais ou menos voluntárias por parte de piratas informáticos, de governos ou entidades empregadoras pode levar a uma maior vigilância, controlo e redução da autonomia individual. Ataques deste tipo podem também danificar o funcionamento da ICM e colocar em risco a segurança da pessoa.

Autonomia. Ao devolver movimentos e capacidade de comunicação, as ICMs impactam necessariamente a autonomia individual. Doentes com esclerose lateral amiotrófica ou lesão da medula espinal têm a sua autonomia profundamente reduzida, pelo que as ICMs podem aumentar a sua independência e capacidade de ação. Deste ponto de vista, contribuem para dignificar a vida da pessoa humana. Contudo, ao influenciarem os processos de tomada de decisão sem o total controlo ou consciência da pessoa, as ICMs podem também limitar a sua autonomia. Em certos casos, podemos mesmo falar de ilusão de agência, ou seja, casos em que os utilizadores acreditam infundadamente serem os agentes responsáveis pela ação da ICM. Considere-se um cenário em que uma ICM é utilizada para ajudar uma pessoa com paralisia grave a tomar decisões sobre as suas atividades diárias. Se os algoritmos ou a programação da ICM influenciarem ou enviesarem significativamente as escolhas da pessoa sem que esta tenha consciência disso, a sua autonomia pode ser violada pela limitação da sua capacidade de tomar decisões que resultam do seu juízo e são consonantes com as suas próprias preferências e valores.

Creio serem estes alguns dos desafios mais prementes no que concerne ao desenvolvimento de ICMs. Não só cada um deles mereceria uma discussão mais aprofundada, como seria importante referir outros, como o problema da responsabilidade, do consentimento informado, da legislação e regulação, do estigma e da normalidade assim como questões culturais, sociais e de conflitos de interesse.

Em qualquer caso, deve ser relevado o facto de o acelerado desenvolvimento destas tecnologias requerer a atenção da sociedade em geral e de filósofos e eticistas em particular, de forma a encontrar soluções viáveis para os desafios aqui identificados e, se possível, trazê-los para o debate público.