Um dos problemas da política nacional é o deserto das ideias. As forças partidárias domésticas, além da confessada devoção à ordem democrática estabelecida, complementada à esquerda por alguma radicalidade simplista de reafirmação antifascista e “à direita” por alguma fé europeísta e liberal, são de uma grande aridez em termos de pensamento político.

E quando querem deixar de o ser é quase pior: como, nos tempos recentes, por causa de Trump e Bolsonaro e, por cá, do Chega, com umas proclamações apocalípticas em linguagem tardo-marxista, pretensamente objectiva, científica e académica, prenunciando a chegada de uma nova longa noite de nazi-fascismo e o consequente fim do mundo.

Este triste panorama tem a atenuante de não ser propriamente uma novidade e uma excepção na maioria da Europa Ocidental por ser fruto de modelos culturais condicionados pelos sistemas de educação e comunicação; de uma História abafada pelas sucessivas correcções ideológicas. E da profunda decadência das chamadas “ciências humanas”, da falta de leitura e de leitura de ficção.

À direita é quase sempre o reducionismo do pensamento político ao liberalismo económico – e a extensão desse liberalismo à filosofia e à política – determinando uma progressiva hegemonia do relativismo absoluto. Daí a ausência de convicções sobre o que é certo e o que é errado na organização político-social, entregando-se a decisão aos eleitores. Que, em consequência, também não têm tido muito por onde escolher, acabando a III República portuguesa reduzida a um rotativismo entre o socialismo do PS e a social-democracia do PSD. E, para eternizar este rotativismo, para viabilizar a governação ou para garantir a “paz social”, os “partidos do governo” têm vindo a entregar as agendas ideológicas fracturantes às forças radicais, como se de inconsequentes rebuçados se tratasse.

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Na Europa, esta alternância também foi, por muitos anos, um rotativismo entre os blocos conservadores, democratas-cristãos versus sociais-democratas e socialistas, com os liberais a oscilarem de um lado para o outro.

Só que isso acabou. Primeiro, com o fim da Guerra Fria e da ameaça soviética, que mantinham uma certa ordem de medo no chamado “Ocidente”; depois, com a extensão, nos anos que se seguiram ao fim da Guerra Fria, do capitalismo ocidental à Ásia ex-comunista e à ex-Cortina de Ferro; com o aparecimento do fenómeno, no Islão, do jihadismo identitário e expansionista; e com a supremacia do pensamento político correcto.

As forças políticas do bipartidarismo centrista não foram capazes, dentro da sua ortodoxia, de encontrar respostas para os problemas que estas mudanças trouxeram ao mundo euro-americano. Em consequência, como a política tem horror ao vazio, surgiram respostas e alternativas, que tiveram formas diferentes na Europa e nos Estados Unidos. Na Europa houve, em geral, o aparecimento ou crescimento de novos partidos: o Front National(Rassemblement National em França; a Lega e os Fratelli d’Italia em Itália; a AFD na Alemanha; o Vox na Espanha. E uma série de partidos nacionais conservadores, alguns dos quais governam na Europa Central e de Leste, como na Hungria, na Polónia e na Áustria. E agora, entre nós, o Chega.

Nos Estados Unidos, sendo naturalmente difícil, por causa do sistema eleitoral, o aparecimento de novos partidos, o que aconteceu foi a radicalização e transformação dos partidos existentes: Donald Trump, um estranho ao sistema, tomou de assalto, por cima, o Partido Republicano e transformou-o de um partido de classe média conservadora, num partido mais popular e radical, de internacionalista num partido nacionalista-conservador, popular e proteccionista. No Partido Democrático, o establishment aguentou melhor o embate, mas cresceu uma ala radical que pactua com os grupos Antifas, as derivas violentas do Black Lives Matter e com o fundamentalismo LGBT.

Tudo isto vai criando uma grande tensão e um clima de confrontação ideológica e, às vezes, também física.

Portugal, que é uma nação muito antiga, onde não existem os fenómenos de “racismo identitário” ou religioso e onde a experiência salazarista introduziu os famosos “brandos costumes”, tem sido poupado a estas mudanças. Mas o regime, ao aproximar-se do meio século (que fará em 2024) e ao ultrapassar, em dois anos, o tempo de seu antecedente – os 48 anos de Ditadura Militar-Estado Novo, entre 1926 e 1974 – também vai ter de enfrentar estes problemas. E não ficará muito longe das soluções da sua região geopolítica.

Com isto queremos dizer que talvez seja tempo de haver um espaço para introduzir algumas ideias e pensamento político nos partidos existentes e nos novos, de modo a responderem com coerência e consequência aos novos problemas e desafios.

Queremos ser uma Nação independente, ou uma taifa? (De Bruxelas, de Madrid, da Comunidade Internacional, é indiferente.) Que Europa queremos – das Nações, federal ou confederal? O que vai ser preciso (legalmente) para ser português? Vamos ter relações privilegiadas com o mundo lusófono, ou isso não nos importa? Vamos ter uma educação cívica baseada na natureza dos homens, das mulheres, das coisas, ou ditada pelas paranóias delirantes do marginalismo cultural, trans-qualquer coisa? O Estado vai vigiar e regular a origem dos investimentos e salvaguardar os elementos essenciais da soberania económica, ou isto vai continuar um leilão à solta, para quem der mais? A economia livre deve ser regulada por um sentido de solidariedade nacional e social, que protege os mais velhos, os mais pobres, os mais excluídos, ou deixamos a mão invisível agir à vontade? Quase novecentos anos de vida do Estado português independente valem alguma coisa, ou nascemos com o 25 de Abril e o MFA? A tradição cristã e católica deve ter algum peso no ordenamento social, ou fazemos tábua rasa do passado?

Estas e muitas outras questões são questões políticas nacionais. A política, os políticos, os partidos, devem dar-lhes respostas. Para isso, em vez da casuística impressionista e volúvel dos inquéritos de opinião, talvez valha a pena encontrar a coerência das ideias e de um pensamento político estruturado em valores. Já não chegam slogans ou “bites” para impressionar a população e quem quiser vencer talvez tenha, por uma vez, que pensar e agir com coerência. Começando por pensar.