É um lugar comum afirmar-se que Portugal precisa de mais habitação pública; e que tem um stock de habitação pública aquém dos seus congéneres europeus. As forças políticas de índole marxista, com influência relevante nas atuais políticas de habitação, consideram que devíamos ter mais habitação pública essencialmente porque desprezam tudo o que esteja associado à propriedade privada. Outras forças políticas também consideram que os atuais “problemas de habitação” se resolvem com uma intervenção significativa do Estado no mercado de habitação. E mesmo alguns setores da sociedade mais liberais argumentam que o Estado, através da promoção de habitação pública, deve ser o contrapeso para uma liberalização do mercado de habitação, nomeadamente do mercado de arrendamento.

Mas será mesmo assim? Precisamos de mais habitação pública? Temos menos habitação pública que os países com quem nos devemos comparar? Este artigo tem como objetivo demonstrar que estamos perante uma meia falácia. Temos globalmente um stock razoável de habitação pública, sendo o maior problema a sua má gestão.

Vamos aos factos.

Portugal tem cerca de 120.000 fogos de habitação pública; Lisboa tem cerca de 27.000. Considerando os cerca de 6.000.000 de fogos de alojamento existentes em Portugal, dos quais 320.000 em Lisboa, temos um rácio de habitação pública de 2% para o país e 8% para Lisboa (na capital, se considerarmos as 242.000 casas de residência habitual, o rácio sobe para 11,2%).

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Portugal é um dos países com um maior número de fogos da Europa pelo que o rácio fogos públicos/total de fogos está por esse facto diminuído, conforme se depreende do gráfico abaixo.

Dados Recolhidos do relatório “State of Housing in the EU”, 2019 Rácio de fogos vs nº de habitantes

Por outro lado, com exceção da Dinamarca e da Finlândia, que têm um parque de “habitação de interesse social” de propriedade essencialmente pública, todos os países com um maior rácio, como a Áustria, França, Países Baixos e Reino Unido, têm uma significativa percentagem de propriedade privada na “habitação de interesse social”.

Dados Recolhidos do relatório “State of Housing in the EU”, 2019, Percentagem de Habitação de Interesse Social

Acresce que a generalidade dos países com maiores rácios de “habitação de interesse social” têm rendimentos per capita substancialmente mais elevados, pelo que Portugal terá que se comparar com os países que estão a crescer mais e a convergir, os quais, não por coincidência, têm um peso do Estado – em geral e na habitação social – substancialmente inferior. Por outro lado, considerando que as dinâmicas da habitação são de longo prazo, é normal que certos países apresentem rácios superiores; é o caso dos países provenientes das ex-repúblicas socialistas, dos países que tiveram as suas cidades destruídas pela segunda Guerra Mundial, e que assentaram a sua reconstrução em apoios públicos, e ainda de países com uma maior cultura de arrendamento habitacional (por exemplo, Alemanha, Áustria e Dinamarca). Há, aliás, uma clara tendência nos países europeus de redução no investimento em stock de “habitação de interesse social” (que já sabemos ser muito diferente da habitação de propriedade pública). Portugal, ao querer aumentar esse stock, está claramente em contraciclo com a tendência liberalizadora no mercado de habitação.

Embora as políticas públicas de habitação em Portugal tenham cerca de 100 anos, é importante salientar que o maior marco de investimento público aconteceu com as bonificações de juros no crédito à habitação que, entre 1987 e 2011, ascenderam a cerca de sete mil milhões de Euros, valor que teria dado para construir cerca de 200.000 fogos de habitação a preços controlados. Este facto é muito relevante quando comparamos rácios. Portugal investiu muito dinheiro público na facilitação da compra da habitação, enquanto muitos outros países, com uma cultura mais favorável ao arrendamento, investiram na promoção de “habitação de interesse social” para arrendamento (independentemente do regime de propriedade, pública ou privada). Caso Portugal tivesse seguido a mesma política, o rácio não seria de 2%, mas sim de 5,3% (120.000 + 200.000 / 6.000.000); e se tivéssemos um stock de fogos mais em linha com outros países europeus, vamos dizer – por hipótese – cinco milhões de fogos, então o mesmo rácio já seria de 6,4%, de habitação exclusivamente pública, o que nos colocaria no pódio dos países com mais habitação pública.

Outra forma de ver esta questão é analisarmos o investimento público em percentagem do PIB. Para o período entre 2000 e 2019 (para se excluir o efeito Covid), Portugal teve uma percentagem de 0,7%, que compara com uma média europeia de 0,8%. Mas acima dos Países Baixos que têm uma média de 0,6%, país este que é muitas vezes apontado, erroneamente, como um exemplo de forte investimento na habitação pública (a generalidade da “habitação de interesse social” é promovida por entidades privadas, num contexto de um mercado de arrendamento que de facto funciona); a Suíça, o país com um mercado de habitação mais liberal, tem uma percentagem de 0,2%.

Eurostat: rácio das despesas pública em habitação vs PIB. Média 2000/2019

Em suma, comparativamente com os restantes países europeus, não se pode dizer que Portugal tenha um défice, pelo menos significativo, de investimento público em “habitação de interesse social”, pelo que dizer que devemos passar de um rácio de 2% para 5%, objetivo assumido pelo atual governo, é algo desprovido de qualquer fundamentação, quer técnica quer ideológica. Quando em Lisboa temos um rácio de 8% (ou 11,2%), mais difícil é afirmar-se que os “problemas de habitação” na cidade de Lisboa se devem à existência de um stock reduzido de habitação pública.

Vamos então analisar a habitação pública, nomeadamente na cidade de Lisboa, caracterizada por cerca de 27.000 fogos de propriedade pública o que representa o referido rácio de 8% (ou de 11,2% se considerarmos as casas de residência habitual). Ou seja, muito acima dos 2% de média nacional. Destes 27.000 fogos, cerca de 23.000 fogos são geridos pela Gebalis, empresa pública municipal, ao abrigo do Programa de Arrendamento Apoiado, o que faz desta entidade um dos maiores players da Europa. Como principais dados da Gebalis temos:

  • Renda média de 76 euros por fogo;
  • Em 2019 e 2020, receitas de rendas de cerca de 20 milhões para custos totais de 30 milhões, sendo a diferença coberta pela CML;
  • Cerca de 20% das rendas emitidas anualmente não são recebidas nesse ano;
  • 11% das rendas são perdidas (rendas consideradas incobráveis);
  • Estima-se uma fila de espera de 6.000 famílias;
  • Cerca de 2.000 fogos devolutos e/ou não ocupados (1.400 da Gebalis e 600 da CML);
  • Cerca de 800 fogos ocupados ilegalmente;
  • Contratos de 10 anos, renováveis por igual período;
  • O atual regime do Arrendamento Apoiado permite que um agregado familiar que tenha deixado de ter dificuldades económicas possa continuar a manter a casa, com rendas simbólicas, não obstante haver uma lista de espera de famílias verdadeiramente carenciadas;
  • Grande parte do investimento público (cerca de 500 milhões de euros segundo as Grandes Opções do Plano da CML 2022-2026) é dirigido para o Programa de Arrendamento Acessível, que é direcionado para a classe média.

Em conclusão, não se nega a existência de um problema de habitação em Lisboa, cidade que perdeu quase 300.000 habitantes nas últimas décadas (embora com estagnação de população na última década) e onde é difícil encontrar oferta para a classe média, principalmente em consequência da inexistência de um mercado saudável de arrendamento e dos problemas com o licenciamento.

Mas fazer casas públicas para a classe média não resolve o problema porque a habitação pública não é mais barata do que a privada e assim não estamos a fazer mais do que transferir poupanças de muitos contribuintes para financiar rendas mais acessíveis para alguns sorteados nos programas de Arrendamento Acessível.

Situação bem diferente acontece com as famílias carenciadas que não conseguem de todo ter acesso a uma habitação condigna, mesmo num cenário de um mercado a funcionar e, portanto, sem as atuais falhas. É assim neste contexto que faz sentido um setor de habitação de interesse social, seja este de propriedade pública ou privada, que, pela sua importância, seja bem gerido e sirva de facto quem mais precisa, o que não parece de todo que esteja atualmente a acontecer.