Raul Lino pode hoje ser entendido desde que sejam tidas em conta três questões que têm condicionado sua imagem no nosso mundo cultural.

A primeira tem a ver com a sua obra escrita e a questão da casa portuguesa, surgida numa época em que o país punha em causa a sua sobrevivência com vocação autónoma, quer económica, quer cultural. Acusam Raul Lino de ser o inventor e instigador do que chamam impropriamente a casa à antiga portuguesa. A verdade reside no facto de Raul Lino defender a arquitectura como “manifestação cultural, expressão plástica perfeita que reflecte o tempo histórico a que serve de moldura.” Escreve estudos de raiz doutrinária e estratégica procurando encontrar novas expressões para o que de novo inventou mas também para o que persiste em constituir a essência do habitar. Trabalha essa vida inconsciente que atravessa os tempos e nos identifica como homens singulares e, ao mesmo tempo, como pertença de um povo.

A história da arquitectura de Lino, e bem assim a da arquitectura portuguesa, é a história de um processo evocativo, espécie de celebração da memória. A arquitectura é um processo de conhecimento que permite diferenciar, afirmando factores de identidade colectiva num processo de diálogo constante. Há momentos de ruptura mas sistematicamente é retomado o “fio”, o passado está lá. A sua produção pode ser dividida em fases de desenvolvimento com inquietações diferentes e assim respostas diferentes, mas há constantes que se mantêm e afirmam o estilo de Raul Lino. Este facto está expresso nos cerca de 700 projectos e obras que constrói e desenha durante a sua longa vida.

Há ainda quem o identifique como censor da arquitectura modernista e de estar ao serviço da política de propaganda do Estado Novo. Raul Lino afasta-se claramente dos princípios do Movimento Moderno de sentido positivista, maquinal e internacional mas não é seu censor. O lugar e a conciliação entre a arquitectura erudita e a tradição popular são os paradigmas dos seus projectos. O seu lado inconformista faz com que o processo de estudo seja infinito na busca do fazer bem. Defende como valores seguros da arquitectura portuguesa nomes como Cristino da Silva, Carlos Ramos (que foi desenhador no atelier do próprio Raul Lino) Cotinelli Telmo e Jorge Segurado, todos eles claramente ligados ao Movimento Moderno em Portugal. É consigo no júri do prémio Valmor, em 1931, que pela primeira vez é premiado um projecto de base racionalista. O edifício situa-se na Rua Infantaria 16 em Lisboa e é da autoria dos arquitectos Miguel Jacobethy Rosa e António Reis Camelo.

Na sua relação com o regime político do Estado Novo, constatámos que Raul Lino só com 68 anos, em 1947, vê reconhecido, com o cargo de Director dos Monumentos Nacionais, o seu valor profissional.

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A arquitectura de Raul Lino é assim a tentativa coerente de um Homem situado no seu tempo, que procura a autenticidade dos seus gestos com fundamento nas suas próprias raízes. A sua actividade como designer, cenógrafo e programador cultural é também tema de discórdia. A sua produção artística não se limita a projectos de edifícios. Inclui o design, particularmente o design de mobiliário e gráfico, e ainda a cenografia nomeadamente no teatro São Carlos onde trabalha com Almada Negreiros e a programação cultural, principalmente para o cinema Tivoli onde passa entre outros Fritz Lang e Chaplin. Nestas actividades consegue fugir aos constrangimentos próprios da arquitectura, mantendo a expressão de conceitos como método e tem ainda a oportunidade de conhecer vários países do Mundo (em 1911 passa 6 meses em Berlim onde nas suas próprias palavras “exercitei as artes aplicadas” sendo inclusivamente actor nas encenações de Max Reinhard.

Nos projectos de arquitectura desenha tudo, desde a escala territorial até à escala da mão. Do mobiliário aos puxadores das portas, dos tecidos aos papéis de parede tudo é desenhado em função do todo, num caminho de coerência na busca da surpresa admissível. Nas suas produções cenográficas, do guarda-roupa aos cenários, tudo é pensado como um todo de intencionalidade poética. A adesão aos princípios românticos fica evidente neste pensar tudo e tudo estar em relação a tudo. Nada se basta a si mesmo e tudo remete. Cada parte indica o todo e o todo exibe-se nas partes.

A vida de Raul Lino e a obra de Raul Lino, enraizadas numa hierarquia de valores, são uma única realidade. Raul Lino teve a coragem de viver a vida que a arquitectura lhe exigiu. Por isso a sua obra continua disponível para dialogar connosco. Raul Lino é história no mundo, um fragmento relacionável mas com autonomia. Sei que não “é possível distinguir entre a sua vida e a sua arquitectura e que os infinitos obstáculos que sempre encontrou e superou são também os traços comuns da sua escrita.”

Assim consigamos compreender o que Raul Lino continua a anunciar porque em síntese escrever e desenhar manifestam a mesma realidade. Os fundamentos da sua arquitectura revela-se na economia – As suas acções territoriais têm um fundamento de sustentabilidade nomeadamente na relação que estabelecem com a Natureza como tema fundador. Os projectos constroem-se a partir das informações contidas no sítio, usando o desenho como instrumento de pesquisa. Constroem-se assim lugares de articulação que incorporam as escolhas do arquitecto.
Os edifícios demarcam-se da Natureza mas emergem dela, fazem parte de um todo sistemático. Raul Lino consegue preservar a relação indescritível entre o gesto humano e a estrutura do Mundo. Elege a natureza como a nossa casa verdadeira. Revelam-se ainda na beleza – Há de maneira sistemática, a construção de uma narrativa espacial com jogos de transições e articulações potenciadas pelos jogos de escala e proporção, e pelo uso expressivo da luz. E por fim revelam-se na solidez – O uso dos diferentes materiais como expressão de intenções espaciais, ou seja, como instrumentos de comunicação sensorial dos níveis de intimidade, na construção de mundos familiares.

Hoje e a partir de Raul Lino podemos enunciar como fundamentos operativos do processo de fazer arquitectura a percepção na qual o espaço arquitectónico vai caracterizar-se a partir da hierarquia de articulações que o arquitecto, pela sua leitura particular do programa e do sítio, vai incorporar no projecto. A arquitectura é assim uma arte. Acontece com a obra de arte o que acontece com cada um dos homens. A individualidade é vivida no interior do mundo humano. Cada homem é fonte de sentido, berço da obra de arte. A história colocando cada obra num determinado tempo e num determinado espaço. O fundamento é o indivíduo porque é no seu corpo que se dá o mistério da consciência, pelo desenvolvimento do sentir. É ai que nasce a história, é ai que surge o sentido. E ainda a expressão porque uma sociedade justa constrói-se com indivíduos livres atuando em função das suas convicções. A defesa da liberdade é condição primeira, fundada na educação e no rigor, como fundamentos da sua possibilidade. A única lei verdadeira é a que nos permite ser livres.

Todo o acto de conhecer é um gesto de desvelamento. É o que acontece com o aparecer de toda a obra de arte. A angústia do arquitecto está na procura do fundamento do seu gesto, “na tentativa de mostrar como as coisas nascem no seu corpo.” Num texto, seja ele escrito ou desenhado, o leitor só lá consegue encontrar aquilo que da sua vida ele próprio aí deposita. As pedras são mudas, mas objectivamente, gritam, se houver um Homem que consiga decifrar a sua linguagem. E toda a linguagem fecunda é sempre indirecta. É necessária empatia para ouvir as vozes da Arquitectura de Raul Lino.

Arquitecto, Prof. auxiliar na Faculdade de Arquitectura da Univ. Lusíada de Lisboa. Comissário Geral da Exposição “Casa (na) Amadora, Vivência e Pensamento, de Roque Gameiro a Raul Lino”