Foi com surpresa que vi o texto de Frei Herculano Alves, publicado domingo passado no Observador. Escrevo “ver” porque a surpresa chegou ainda antes de ler o texto do biblista capuchinho, confrontando os leitores do jornal com uma pergunta absurda: “Uma nova tradução da Bíblia?” Esta interrogação é naturalmente malévola e, apesar de tudo, não faz justiça ao resto do artigo, onde o biblista capuchinho – um nome importante e respeitável, tanto quanto respeitado, dos estudos bíblicos católicos – enumera uma série de questões a colocar, creio que quatro, à tradução da Bíblia realizada, e em realização, por Frederico Lourenço.

Responda-se, portanto, ao título do artigo: sim, de facto, trata-se de uma nova tradução da Bíblia. Ao usar a interrogação no título, o insigne biblista capuchinho pretende apenas (há mil anos de uso desta técnica retórica, devidamente comprovada) lançar a chamada “dúvida inexistente” sobre o trabalho de Frederico Lourenço. Esta indelicadeza não a merecia, em primeiro lugar, o Padre Herculano Alves, estudioso e homem dedicado aos estudos bíblicos – mas marca (desde o início, o título) um tom claramente adversativo, apriorístico e também marcado pela acidez e pela ausência de generosidade: em lugar de dizer, “aqui está uma nova tradução da Bíblia, junte-se a nós, que já cá andamos há muito”, o Padre Herculano Alves trata de fechar as portas como se o trabalho de Frederico Lourenço fosse o dos invasores de um território com as suas cidadelas, as suas prerrogativas, os seus títulos de propriedade, as suas ameias e – no caso – as suas reconhecidas tradições e hierarquias.

Primeira surpresa: o Padre Herculano Alves contesta a possibilidade de uma tradução solitária da Bíblia. “Como se um trabalho destes pudesse ser feito por uma só pessoa.” Para o autor do artigo, o defeito das traduções solitárias da Bíblia é que “são obras de um único tradutor”. La Palisse chegou à congregação capuchinha. Pois: se há um único tradutor, como é o caso, não se lhe pode elogiar a autoria colectiva.

Este aspecto tem sido tratado já por outros críticos recentes, todos homens da Igreja que ou colaboraram noutras traduções ou estão a colaborar numa nova tradução com o apoio e o selo do Episcopado. Acontece que em várias traduções colectivas (não estendo esta crítica ao biblista dos Capuchinhos) a diferença entre a tradução colectiva e a tradução solitária é muito ténue: cada autor traduz uma parte do texto bíblico. Há nisso mais diálogo? Quem garante ao Padre Herculano Alves que esse diálogo (com outros helenistas, com teólogos, com historiadores, com leitores devotos ou agnósticos) não existiu no trabalho de Frederico Lourenço, como teria decerto existido nos casos de J. Ferreira Annes d’Almeida, de António Pereira de Figueiredo ou de Manoel de Mattos Soares?

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Ao contrário do que estas reacções em cadeia querem fazer crer, sempre houve traduções solitárias da Bíblia. São Jerónimo, Wycliffe, Tyndale, Lutero, os próprios Ferreira d’Almeida e Figueiredo, ou, mais recentemente, o notabilíssimo trabalho de Nicholas King. Aliás, a tradução de King foi feita no seio da própria Igreja Católica, já em pleno século XXI.

Não sendo biblista nem pretendendo discutir o pormenor com o Padre Herculano Alves, creio mesmo que quem dá o pontapé decisivo para se para abrir uma nova abordagem, com a coragem da convicção própria, com o compromisso absoluto diante do texto, é o tradutor solitário.

Ao contrário do que acontece, infelizmente, com parte da “opinião dominante” de representantes da Igreja Católica em Portugal, a tradução de Nicholas King (basta ler os textos do mais prestigiado colunista de assuntos religiosos do país, Christopher Howse, no The Daily Telegraph) foi recebida de braços abertos mesmo antes de se conhecer a tradução ao pormenor. Aliás, depois da tradução de Nicholas King, as novas traduções em língua inglesa terão de ser diferentes. A primeira e fundamental licenciatura do jesuíta Nicholas King (professor de teologia em Oxford), foi Filologia Clássica (como Frederico Lourenço) e não Teologia; a ele se deve a tradução da Bíblia Grega completa (a mesma versão que Frederico Lourenço traduziu para português). Por isso, quando o Padre Herculano Alves escreve, no seu artigo, em relação à “tradução solitária”, que, “hoje, tal tarefa é impensável”, só o pode fazer por uma de três razões: má fé, ignorância ou distração. Certamente que foi por distração. Há limites.

Permita-me ainda o Padre Herculano Alves que lhe peça que informe os leitores da sua revista Bíblica (segundo o seu texto, parece que o têm interrogado sobre a “versão solitária” de Frederico Lourenço), que a própria “Bíblia do Rei James”, de 1611, se baseou na “tradução solitária” de William Tyndale. Como informação subsidiária, que deixo aos leitores do Observador, William Tyndale (1494-1536), académico em Oxford, foi queimado vivo (por ter traduzido a Bíblia) em praça pública (imagine-se a mando de quem), em 1536, na então Flandres.

É sintomático que uma curiosa onda de adversativas (curiosamente, em simultâneo; algumas no mesmo dia, algumas usando frases semelhantes) sobre a tradução da Bíblia de Frederico Lourenço seja colocada por homens da Igreja Católica que parecem insistir que a Bíblia só pode ser traduzida por uma equipa, de preferência até com bispos portugueses, de preferência com a autoridade da Conferência Episcopal Portuguesa.

É sintomático, sim – mas é compreensível, embora absurdo e desmerecedor. O Padre Herculano Alves, por exemplo, não merece – nem a este nem a outros propósitos – que se lembre que a Igreja Católica perseguiu, através dos seus canais ou através da Inquisição, aqueles que liam, traduziam ou eram sequer proprietários de exemplares da Bíblia. Mas, como o Padre Herculano Alves sabe, quem não quer ser lobo não veste a pele do lobo.

Depois, o insigne biblista capuchinho parece ignorar (mas decerto não ignorará) que nos EUA, no Reino Unido, na Alemanha ou até em França, o estudo da Bíblia deixou há muito de ser domínio exclusivo das igrejas, de qualquer designação. Se bem que o papel da Igreja Católica na tradução bíblica se tenha incrementado apenas a partir de 1940 (nunca é demais relembrá-lo), a larga maioria dos investigadores e tradutores que se ocupam das “matérias bíblicas” nas grandes universidades (Harvard, Yale, Oxford, etc.) é oriundo de áreas como a Filologia Clássica e não das Conferências Episcopais.

É este o outro aspecto em que o Padre Herculano Alves insiste mais demoradamente: para compreender sumamente a Bíblia é necessário conhecer “as palavras da linguagem cristã, usadas através dos séculos para transmitir as verdades da fé”. Acontece que – como será evidente para os leitores do Observador – se as “verdades da fé” assentarem numa tradução deficiente, ou unívoca, ou única, das “palavras da linguagem cristã”, todos sabemos que não deixarão de ser “verdades da fé”; mas deixarão de assentar numa discussão sobre a tradução dos textos. Essa discussão só pode ser feita com base em traduções efectivamente bem realizadas. E, se forem feitas tendo em vista “o espírito da letra” mais do que o espírito das “verdades da fé”, é provável que mais pessoas queiram participar dessa discussão, queiram alegrar essa leitura e queiram partilhar as suas surpresas e a beleza do texto bíblico. Aceito (e compreendo, vista a sua argumentação) que não seja esse o caminho do Padre Herculano Alves.

Ora, o que a tradução da Bíblia de Frederico Lourenço – também tradutor da Ilíada, da Odisseia, de poesia grega, de muitos outros autores clássicos – pretende é propor uma tradução linguisticamente mais exacta do Novo Testamento (que é o caso em discussão), não desmerecendo as traduções anteriores (nunca o faz), mas entendendo que é possível chegar ainda mais perto da exactidão do texto grego. O Padre Herculano Alves acha isto impossível porque Frederico Lourenço não é doutorado em Teologia, porque o faz de modo solitário e porque não procede tendo em conta o “perfume cristão” em que o apurado olfacto de séculos católicos se especializou.

Frederico Lourenço por várias vezes manifesta o seu respeito, o seu reconhecimento e a sua dívida para com tradutores anteriores – incluindo, está claro, o Padre Herculano Alves. Mas o Padre Herculano Alves acha que qualquer dúvida (sobre a tradução do Pai Nosso, por exemplo, ou sobre as discrepâncias entre os evangelistas) é um ataque não só pessoal (a si, que é um dos nossos grandes tradutores), mas aos católicos. O que é, no mínimo, deselegante e inadequado ao seu papel como insigne tradutor e homem de fé em tempos de liberdade. Tanto que lança a pergunta (e o labéu, de seguida), “que Bíblia devem ler os cristãos?”, como se todos os cristãos estivessem plenamente satisfeitos com certas traduções que desafiam até o bom senso, para não dizer o conhecimento do grego. Teríamos, assim (sublime distracção – mas já vimos que o Padre Herculano Alves se distrai), duas versões: uma, que até pode ser exacta, fiel ao que autores maravilhosos como Marcos, Mateus, Lucas e João escreveram (por assim dizer), lançar pistas para compreender melhor as implicações daqueles relâmpagos que povoam o texto de Lucas ou de Marcos, as insinuações esplêndidas de João – e outra, onde está o “perfume” próprio para ser pressentido na liturgia da Igreja Católica. Eu, que já li a sublime tradução do Apocalipse, de Paulo e dos Actos dos Apóstolos do 2.º Volume traduzido por Frederico Lourenço, pressinto nesses textos um “perfume terrível” de fé, de loucura, de amor, de convulsão – coisas que compõem o sentimento religioso de todos os tempos.

Mais. No caso do Antigo Testamento, será a primeira vez (o Padre Herculano Alves tem uma má relação com esta evidência, mas terá de aceitá-la) que se traduz em português a versão da Septuaginta (a Bíblia Grega) com os seus 53 livros. Se o Padre Herculano Alves quiser rasgar os livros que considera excedentários, estará a cumprir um desígnio, mas esquece que a Septuaginta completa está a merecer traduções em todas as línguas modernas – parece o “Antigo Testamento da moda” – como acontece com a tradução inglesa de Nicholas King, de 2013, e com a versão alemã de 2009. Neste momento estão a ser preparadas igualmente as traduções para francês e para italiano (em português, o Antigo Testamento completo começará a ser publicado em finais de 2017). Por filólogos estimados e estimáveis que decerto evidenciarão nas suas traduções o perfume dos textos resgatados à erosão do tempo, à indiferença dos bispos de antanho, à ignorância transbordante que chegou até nós de muitas maneiras.

Finalmente, dois reparos – um, de alegria; outro, de perplexidade. Começo pela perplexidade: acho pobre e, mesmo, injusto, que o coordenador da Bíblia mais vendida em Portugal (por estimativa do próprio Padre Herculano Alves, vendeu mais de 1 milhão e 500 000 exemplares) critique no Observador a tradução de Frederico Lourenço reportando-se principalmente a artigos nos jornais sobre a tradução e não discutindo um único versículo da tradução em si. Não é um bom exemplo de hermenêutica, nem para os cristãos, nem para os leitores em geral; e parece apenas alguém que quer defender o seu território.

E termino, como convém, pela alegria: o Padre Herculano Alves reconhece no texto bíblico um “substrato inegavelmente semita” (que Frederico Lourenço, longe de negar, sempre admitiu). Para mim (sentimento estritamente pessoal) é um motivo de regozijo que o diga tão abertamente. Em Portugal foram muitas as vítimas da perseguição e do opróbrio por muito menos do que um “substrato semita”. Bastava uma suspeita ou uma denúncia, na altura em que não havia imprensa.

Foi isso que, como editor desta tradução da Bíblia, e de há muito leitor dos textos bíblicos, me levou a esclarecer esses aspectos suscitados pelo artigo do Padre Herculano Alves. E, naturalmente, a declarar-me muito desiludido com a sua pobreza de pontos de vista e de argumentação.

E sim, respondendo ao pobre título do artigo, é uma nova tradução da Bíblia. E é uma tradução em todo o esplendor da palavra.

Editor da Quetzal, que publica a tradução da Bíblia, por Frederico Lourenço