Se for uma pessoa portadora de deficiência visual ou preferir ouvir a locução do texto abaixo, siga o link para o áudio no SoundCloud.
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O ponto de encontro foi um hotel na baixa de Lisboa. Sexta-feira, 11 da manhã, mesa posta para um pequeno-almoço tardio com jornalistas. O uso da tecnologia pelas pessoas com deficiência visual foi o pretexto para uma conversa informal com a direção da ACAPO (Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal), na semana em que a associação aderiu pela primeira vez à Get Online Week, campanha europeia para a capacitação e inclusão digital. Isto acontece numa altura em que a tecnologia está muito longe da que existia há 25 anos, quando a ACAPO foi constituída. Para Ana Sofia Antunes, Presidente da Direção Nacional, uma das áreas onde se deram passos mais significativos nestes 25 anos foi precisamente a das novas tecnologias.
Jorge Fernandes, Responsável do Programa Acesso da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), começou por resumir a história da evolução tecnológica para pessoas com baixa visão. Recorda as aulas de informática no final dos anos 1980 onde se comentava o aparecimento de um sintetizador de voz, uma tecnologia hoje comum e que foi determinante no modo como as pessoas com deficiência visual lidam com o mundo que as rodeia. Isto porque uma coisa é ler, outra coisa é ouvir ler. “Os primeiros dispositivos braille liam 8 caracteres de cada vez. Era difícil, mas permitia ultrapassar barreiras.” Depois, os computadores abriram as portas da informação às pessoas com deficiência visual.
Os primeiros computadores não dispunham de sistemas de ajuda para os utilizadores com baixa visão, mas ao longo dos anos foram surgindo software paralelo, nomeadamente os sistemas de ampliação de texto. A ACAPO foi a porta de entrada em Portugal de muitas destas tecnologias.
Os primeiros sintetizadores de voz apareceram em Portugal no início dos anos 1990. Os dispositivos braille também foram sendo aperfeiçoados, mas não ao mesmo ritmo dos processadores de voz. Nessa altura, as máquinas de braille custavam 10 vezes mais (dois mil contos para as linhas braille, 200 contos para um sintetizador), por isso estes entraram tão rapidamente nos hábitos de aprendizagem e leitura. Graças aos sintetizadores de voz, houve gerações de cegos e amblíopes que estudaram mesmo sem saber braille.
Hoje é muito comum encontrar pessoas com deficiência visual que não sabem braille. Ana Sofia Antunes realça um lado menos positivo da tecnologia. “Quando uma pessoa inicia um processo de aprendizagem a ouvir ler, ela não tem um contacto direto com a escrita e com a leitura, com a formação das palavras, e isso provoca automaticamente um baixo domínio da ortografia e da correção da escrita e condiciona o processo da aprendizagem a níveis superiores.”
Ao longo dos anos a tecnologia de consumo evoluiu muito mas não para as pessoas com baixa visão. Jorge Fernandes realça que a tecnologia acessória que era preciso comprar para utilizar um computador normal era desproporcional no preço. Mas ainda é assim? “Hoje em dia assiste-se a um movimento muito interessante puxado pelas grandes empresas tecnológicas. Elas próprias estão a incorporar [de origem] nos seus próprios dispositivos as funcionalidades de acessibilidade.”
E sublinha que estes sistemas nativos são tão bons quanto mais cedo são incorporados pelas empresas que os produzem, ou seja, as soluções que aparecem a posteriori para corrigir algo que era inacessível tendem a não ser tão eficazes. Deram-nos como bom exemplo a incorporação dos teclados de braille nos tablets de última geração. Jorge Fernandes acredita que o avanço tecnológico vai permitir que dentro de pouco tempo seja possível ler braille no ecrã do próprio tablet.
Mas estes dispositivos não são todos iguais. Os membros da ACAPO presentes naquela mesa foram unânimes: na linha da frente encontram-se os sistemas operativos da Apple, em particular a partir da versão 8 do iOS. O sistema Android está mais atrasado, as adaptações são menos funcionais e intuitivas. Jorge Fernandes fez uma demonstração que fala por si.
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Os dedos são os seus olhos e a facilidade com que se trabalha num teclado (virtual) da Apple está muito à frente da concorrência. O reconhecimento do sistema de voz também funciona cada vez melhor, o que permite ditar um email ou uma mensagem, bem como chamar por um contacto. É um sistema desenhado para ser utilizado por todos (por exemplo para fazer uma chamada enquanto se conduz um automóvel, apenas com comandos de voz) mas que proporciona aos utilizadores com baixa visão uma oportunidade acrescida para interagir e tirar proveito dos dispositivos móveis.
Jorge Fernandes destaca também o esforço da Microsoft para melhorar a tecnologia de acessibilidade. O Windows 8 já inclui um sistema de ampliação de texto interessante e a empresa já permite o acesso gratuito a um leitor de ecrã. Mas realça um contra importante: a Microsoft nunca desenvolveu um sintetizador de fala em português de Portugal.
A capacidade nativa destes sistemas que lêem texto foi muito destacada. As vozes sintetizadas estão melhores, muito distantes das primeiras que apareceram e que eram praticamente impercetíveis, requeriam muito treino. “Nós começámos a trabalhar com vozes tão más que as atuais parecem fantásticas”, diz Ana Sofia Antunes. No entanto, o tratamento dado às diferentes línguas é notório: “As novas vozes em inglês são francamente melhores, mas em Português melhorou pouco”, diz-nos Fernando Santos, técnico de informática da ACAPO. Mas aqui o fundamental é que deixou de ser necessário software ou hardware adicional para que um cego seja capaz de utilizar um computador ou um smartphone/tablet.
A vida hoje é mais fácil para as pessoas com deficiência visual. Com os primeiros telemóveis era preciso decorar todos os números de telefone e era impossível enviar uma mensagem escrita. Hoje, como os smartphones, não só já não precisam de decorar números como podem usar estes aparelhos para distinguir objetos ou cores e ler rótulos dos produtos que estão na despensa. Conseguem aceder à ementa de um restaurante com um OCR (Optical Character Recognition — Reconhecimento Ótico de Caracteres, um scanner que traduz as letras da imagem em texto que se pode ouvir e editar), ler jornais ou revistas e consultar sites para aceder a informação.
A ACAPO tem um papel ativo na divulgação e promoção da tecnologia. Lança newsletters regulares com novidades, organiza com frequência sessões de formação e esclarecimento, que vão desde a tecnologia propriamente dita ao uso das redes sociais. Dos 3500 associados, cerca de mil têm registos de email, o que é uma amostra interessante do número de pessoas com deficiência visual que acede à internet.
Mas nem tudo são rosas quando falamos em navegar pela web. O acesso à informação varia muito com o nível de acessibilidade do site. “Temos muitas vezes dissabores quando um site de um determinado meio que era acessível introduz uma alteração de design ou funcionalidade, e por causa de um passo simples a acessibilidade perde-se”, conta Ana Sofia Antunes. Dão como exemplo uma grande cadeia de hipermercados que recentemente fez uma alteração na respectiva página que passou a impedir a utilização do site por cegos e amblíopes para, por exemplo, efetuar compras online.
Desde 2011 que a legislação nacional contempla a adoção de boas práticas na construção de páginas web, ou seja, mecanismos que permitam aos sistemas automáticos de auxílio às pessoas com baixa visão aceder ao conteúdo e funções disponibilizados por essas páginas. Fernando Santos diz que a aplicação do Observador para iOS é muito boa, mas segundo a página que avalia (automaticamente) o nível de acessibilidade o nosso site passa à tangente. Ainda temos caminho a percorrer.
Os livros online são outro exemplo. Algumas editoras criam e disponibilizam ficheiros que não podem ser lidos automaticamente por sistemas de reconhecimento, isto porque para ser lido o ficheiro tem de ser editável, por isso as leis dos direitos de autor são o escudo que bloqueia o acesso a muitos livros. Algumas editoras não são sensíveis às necessidades das pessoas com deficiência visual, geralmente por desconhecimento. É a ACAPO quem, geralmente, tem de dar o primeiro passo para negociar com as empresas e desbloquear situações de conflito que põem em causa os direitos de acesso. E foi a associação também quem transmitiu aos deputados portugueses a necessidade de retificar o Tratado de Marraquexe, que permitirá legalizar o intercâmbio entre diferentes países de literatura em formatos acessíveis.
Estas dificuldades têm reflexo noutras vertentes do dia-a-dia. Por exemplo, o novo programa que permite o carregamento a partir de casa do cartão Lisboa Viva foi desenhado numa linguagem informática (Java) que não é acessível. Os códigos CAPTCHA, são outro exemplo. Estes algoritmos de segurança baseados em desenhos de números ou letras são muito utilizados nos sistemas de pagamento online e não podem ser lidos pelos programas de leitura de ecrã.
Questionados sobre se o preço dos produtos é ou não um fator impeditivo para o acesso à tecnologia, a presidente da associação falou do sistema de atribuição de produtos de apoio. “A nível estatal existe um conjunto de entidades que podem prescrever e financiar a atribuição de produtos e tecnologias que sejam indispensáveis às pessoas com deficiência, na sua inclusão ao nível profissional e social. A ACAPO é a entidade prescritora de equipamentos de apoio às pessoas com deficiência visual”. Ana Sofia Antunes confessa que existe renitência por parte das entidades financiadoras (Instituto do Emprego e Formação Profissional e a Segurança Social) em aceitar o iPhone como único dispositivo móvel com garantias de acessibilidade. Diz-nos que “eles não percebem porque é que têm de financiar um produto que custa 500, 600 ou 700 euros.” E não pode ser um Android? “Tal com está, ainda não.”
E no dia-a-dia, o que é que faz mais falta? Em suma, mais acessos. Coisas simples como botões nos elevadores, eletrodomésticos como o micro-ondas ou as boxes da televisão ou a Bimby, cuja nova versão digital impede a utilização. “Às vezes temos de comprar a versão anterior de um determinado equipamento porque a última versão têm uma atualização cuja tecnologia não acompanha as nossas necessidades de acesso”, diz-nos Graça Gerardo, vice-presidente da ACAPO. Ou seja, as tecnologias de comunicação (smartphones e tablets) estão a ser pensadas com a acessibilidade em linha de conta, ao passo que em quase todas as outras isso não acontece.
É o reverso da medalha. A tecnologia raramente caminha a par e passo com as necessidades dos deficientes visuais. “É constantemente retirada acessibilidade a coisas que já a tiveram”, confessa Fernando Santos. A proliferação dos ecrãs táteis sem as devidas adaptações é o melhor exemplo: deixou de ser possível a um cego comprar um bilhete de Metro. E levantar dinheiro numa máquina multibanco é cada vez mais difícil. Mas o técnico de informática da ACAPO tem a esperança de que num futuro próximo seja possível usar os dispositivos móveis como interface de uma outra máquina qualquer. Quando essa ligação for feita, talvez se dê outro salto importante na acessibilidade. Será que a “internet das coisas” vai chegar a todos ao mesmo tempo?