Sempre gostei de ficção científica. O efeito de séries como “Star Trek” ou “Espaço 1999” na infância foi determinante para mais tarde ler livros da coleção Argonauta ou gostar de filmes como “Alien” ou “Blade Runner”. Gostava da ideia de futuro e universos paralelos, naves espaciais e aventuras noutros planetas. Também foi isso que me levou até Philip K. Dick mas depressa percebi que a sua escrita está muito para lá do que dizem as regras de género (também percebi que a ficção científica tende a ser vista como “literatura menor” mas, com o tempo e as adaptações ao cinema, o estigma tem vindo a esbater-se).

Na verdade, K. Dick só usou a matriz da ficção científica para dar voz às histórias (e paranoias) que ecoavam na sua cabeça. Mesmo nos primeiros contos, escritos a metro para revistas da especialidade, o fundamental não é a vida alienígena ou a ameaça das máquinas, mas os seres humanos e os fundamentos do real.

será que os andróides

“Será que os Andróides Sonham com Ovelhas Eléctricas”, na nova edição da Relógio D’Água

Poucos terão escrito tanto sobre a mesma coisa: 44 novelas, 121 contos, muitos textos dispersos e uma obra mastodôntica chamada Exegesis, 8000 páginas de impenetrável escrita automática, produzidas ao longo de 8 anos e apenas editadas em 2011. K Dick foi sempre coerente na sua dúvida, colocou tudo em questão, até ele próprio, e acabou por contagiar os seus leitores e, de certo modo, o mundo. A sua mania de perseguição acabaria por antecipar algumas realidades atuais e alimentar a indústria de Hollywood durante décadas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Origens

O meu primeiro contacto foi com “Blade Runner” (apanhado acidentalmente na TVE dobrado em espanhol), mas na altura não dei muita importância ao facto de haver um livro por detrás do filme. O que me fascinou além da estética — e de Harrison Ford — foi a revolta das máquinas contra o seu criador e a mortalidade a que tinham sido condenadas.

[trailer de “Blade Runner”]

Quando, alguns anos mais tarde, li o livro (Do Androids Dream of Electric Sheep no original, Blade Runner na tradução da Europa América que ainda tenho), descobri que é muito mais complexo do que Ridley Scott conseguiu mostrar (o que me fez gostar um pouco menos do filme), mas a questão da humanidade é absolutamente central. Também só li o conto que serviu de base a “Desafio Total” (“We Can Remember It For You Wholesale”), depois de ver o filme, e hoje, mais de 10 adaptações a ecrãs de vários tamanhos depois, parece-me evidente que as versões cinematográficas de K. Dick tendem a valorizar os aspetos policiais e os efeitos especiais e a tornar subliminares as questões da condição humana.

Só “A Scanner Darkly” (de Richard Linklater) se desvia dessa norma enquanto objeto cinematográfico porque usa a animação, mas algum artifício tinha que existir para contar a história de um junkie que desconfia de si próprio, de todos os seus amigos e do real. A Scanner Darkly, publicado em Portugal pela Argonauta com tradução de Eurico da Fonseca e o título O Homem Duplo, foi o primeiro livro de K. Dick que li com a consciência de estar a fazer uma coisa importante.

[o trailer de “A Scanner Darkly”]

Já sabia que K. Dick era incrivelmente influente porque toda a gente parecia citá-lo, de Emmerson Lake & Palmer, aos The Fall e Sonic Youth (“Sister” é inspirado na vida e obra de K. Dick, cuja irmã gémea morreu com poucas semanas vida, alegadamente por falta de nutrição), com quase todas as bandas de industrial pelo meio. Até os Telectu tinham feito discos com títulos de histórias dele (do álbum Ctu Telectu, 1982). O Homem Duplo não é um livro típico, mas ajudou-me a situar K. Dick num contexto e a ter um vislumbre da sua profunda angústia com o real.

Não me lembro que livro veio a seguir (provavelmente foi O Homem do Castelo Alto que me levou a interessar-me pelo i Ching porque ele tinha usado o oráculo para construir a história alternativa do fim da II Guerra Mundial) mas acabei por me transformar numa dickhead, a colecionar edições em português e inglês para perceber melhor a mensagem.

o homem do castelo alto

A capa da nova edição de “O Homem do Castelo Alto”

Cada história apresentava pistas novas com que me identificava e as suas interrogações e conjeturas, mais a forma como questionava a estrutura do real, tudo fazia eco na minha inquietação. Confesso que me tornei muito mais desconfiada depois de ler K. Dick. Como nos seus livros, a realidade pode não ser o que parece e podemos estar a ser manipulados na nossa perceção (nesse aspeto As Marionetas Cósmicas, de 1957, teve bastante impacto).

Opiniões

Enquanto vivo, K. Dick foi atormentado pela ideia da sua escrita não ser levada a sério. O circuito intelectual em que algumas das suas amizades e namoradas se movimentavam olhava-o com sobranceria. Depois da sua morte, e após a estreia de “Blade Runner” e da ascensão a filme de culto, K. Dick, que morreu pobre, transformou-se num autor de referência, reconhecido como um dos mais importantes do séc XX, comparado a Gabriel Garcia Marquez ou Kafka, até mesmo Dickens, um filósofo que levantou questões que pareciam delírios de ficção mas acabaram por antecipar o futuro.

Em 1964, quando escreveu Do Androids…, os robots humanoides eram uma especulação futurista, uma derivação de Frankenstein; hoje a indústria de inteligência artificial floresce. Também falou de perda de privacidade e controle do indivíduo através da tecnologia, com cumplicidade dos governos e das grandes corporações, um assunto cada vez mais quente — a realidade está cada vez mais perto de Relatório Minoritário.

Claro que K. Dick não era uma pessoa normal (quem é?). O seu desassossego metafísico tinha fundamentos médicos. Ao longo da vida foi diagnosticado como esquizofrénico, depressivo, louco, tentou suicidar-se pelo menos uma vez e mandou internar uma das suas mulheres por ter medo que ela o matasse. Tudo isso se refletiu no que escreveu e permitiu-lhe inventar o cyberpunk antes dos computadores se tornarem eletrodomésticos, criar a base de Matrix sem conhecer a internet ou profetizar uma sociedade hipertecnológica que controla o indivíduo e a sua perceção do real com simulacros. É, sem dúvida, o escritor que melhor compreendeu o nosso tempo estando fora dele.

Isilda Sanches é jornalista e animadora de rádio na Antena 3