Agosto de 2010. Esplanada à beira Tejo. Fernando Lima já não era o assessor de imprensa de Cavaco Silva na Presidência da República há meses. Depois do “escândalo das escutas”, em 2009, tinha sido afastado para uma posição mais recuada, mas permanecera no Palácio de Belém. Era demasiado valioso. Sabia demais. Tinham sido 23 anos de proximidade. Almoçava então com um amigo jornalista. “Pouco tempo após a minha chegada, vi entrar alguém cujo estilo me fez desconfiar. Óculos escuros característico dos usados pelos seguranças de entidades oficiais, trazia na mão, bem visível, o exemplar de um conhecido diário do Rio de Janeiro, provavelmente para servir de disfarce e fazer-se passar por brasileiro”. O antigo braço direito de Aníbal Cavaco Silva registou várias tentativas de vigilância ou de operações encobertas contra si. E agora dá conta dessas desconfianças no livro “Na Sombra da Presidência – relato de 10 anos em Belém”, que chega às livrarias na quinta-feira, dia 8 de setembro.
Depois dos dois amigos saírem do restaurante, o homem suspeito entrou num BMW série 1 preto. “Esqueceu-se que tinha uma vulnerabilidade bem visível: a matrícula do carro. Foi o suficiente para conhecer a sua identificação. Apurei que era morador numa praceta da Venda Nova, Amadora. Muito bem informado, o amigo com quem estivera disse-me, posteriormente, que era ex-militar”, descreveu num capítulo dedicado à alegada espionagem exercida sobre si.
Não foi a única vez que se cruzou com o mesmo indivíduo. Mais tarde, havia de o ver no fim de um almoço com outro jornalista, neste caso Nuno Simas — Fernando Lima não divulga o nome mas é explícito ao sugeri-lo –, o jornalista que foi vigiado pelos serviços de informações, que tiveram acesso indevido à sua lista de telefonemas. “Desta vez, era portador de um jornal económico português, de cor salmão, com etiqueta branca de assinante”, descreve o ex-assessor. “O jornalista apercebeu-se também que aquele cidadão estava ali para nos vigiar.”
No extrato do texto a que o Observador teve acesso, Fernando Lima relata outros casos que o fazem desconfiar de que estava sob vigilância. Isto, na sua interpretação, confirma as suspeitas que tinha antes de ter caído em desgraça perante Cavaco Silva: também estava a ser alvo de controlo quando mantinha a sua influência junto do Presidente, e foram as fugas de informação no sentido de fazer essa denúncia que deitaram tudo a perder. Em 2010, foi abordado na rua por um homem que Lima descreve como “um provocador ao serviço de alguém”, que o apontou como “o assessor da Presidência da República que tinha estado envolvido no “caso das escutas”.
As denúncias continuam. Toda a tese de Fernando Lima vai no sentido de responsabilizar aquilo a que chama de “central de controlo socialista” do tempo de José Sócrates pela espionagem e pelas tentativas de intimidação. Seria um alvo a abater politicamente. Embora não revele o texto das mensagens trocadas por telemóvel para não envolver os outros interlocutores, Lima aponta no livro mais uma pista a corroborar os outros sinais: descobriu que os seus SMS apareceram no polémico processo de compra da TVI pela PT.
No processo “Face Oculta”, as escutas publicadas permitiram-me descobrir que os SMS que troquei sobre a tentativa de compra da TVI pela PT tinham sido controlados por gente que estava no negócio e da total confiança do primeiro-ministro José Sócrates. Como guardei os SMS, pude conferi-los com o que apareceu dito nas escutas.”
Refira-se que o Presidente da República contribuiu para dar a estocada final no negócio e que o caso deu origem a uma comissão de inquérito. No seu livro, o ex-assessor é bastante explícito: “Tendo em conta o que já se passara com os SMS, não encontrava outra explicação para o que acabara de acontecer na caixa de comentários do colunista favorito do Largo do Rato, a não ser um possível acesso aos meus emails da Presidência da República.” Lima refere-se aqui a uma proliferação desproporcionada de comentários contra si na caixa de comentários dos artigos de Ferreira Fernandes no site do Diário de Notícias.
Podia haver hakers a tentar aceder aos computadores de Belém? Na sequência do escândalo das vigilâncias, o Expresso chegou a publicar um artigo a dizer que conseguira entrar na rede informática do Governo, mas que a de Belém era “inviolável”. Não foi isso que Fernando Lima escreveu: a segurança do sistema informático da Presidência da República “constituía uma dúvida a que não sabíamos responder”. Essa preocupação chegou a ser veiculada por Cavaco Silva quando fez um discurso ao país na sequência dessa crise política — quatro meses depois de ter afastado o diretor de informática da Presidência. “Na Sombra da Presidência”, Fernando Lima suscita desconfiança em relação às comunicações:
Muito antes de acontecer o meu caso, ouvi um colega da área diplomática dizer que suspeitava que os seus emails estavam a ser seguidos por gente exterior a Belém, apontando de quem desconfiava.”
Neste caso, apontava para os chineses, que estavam preocupados com a visita do Dalai Lama a Portugal. A infiltração eletrónica em 103 países de uma “grande rede de espionagem sedeada na China” seria revelada no relatório de uma organização canadiana denominada Information Warfare Monitor, após uma investigação solicitada pelo gabinete do próprio Dalai Lama. O nome de Portugal constava da lista. “Em outubro de 2009”, continua Fernando Lima no seu novo livro, “uma empresa portuguesa de segurança informática, chamada Trusted Technologies, reiterava que informação sensível do Estado português fora roubada por uma rede de ciberespionagem sediada na China”.
Tudo começou com uma conversa com uma jornalista do Público…
Os comportamentos inexplicáveis de Cavaco Silva
Em 2004, Fernando Lima publicava “O Meu Tempo com Cavaco Silva”. Na capa, o autor aparecia ao lado do homem que adjuvou desde 1986. Era uma fotografia de ambos a sair do Palácio de Belém, depois de uma audiência com Mário Soares. Era o prenúncio do que estava para acontecer: a candidatura de Cavaco a Belém em finais de 2005, para ser eleito em janeiro de 2006. Neste primeiro livro, onde contou como foram os quase 10 anos que passou com Cavaco Silva em São Bento, Fernando Lima fez uma obra apologética, sem objetivo de suscitar polémica. Agora, o livro sobre Belém suscita a curiosidade de meio mundo político, por ser a obra de um influente que perdeu as graças do líder político depois de um escândalo mediático:
Ainda hoje, não compreendo que [Cavaco Silva] tenha tido comigo comportamentos que considero inexplicáveis, depois de termos convivido ininterruptamente, desde que comecei a trabalhar com ele em 1986. Confesso que não o esperava”, disse Fernando Lima esta semana num depoimento divulgado pela Lusa.
“Na Sombra da Presidência” é o livro em que Fernando Lima conta as suas memórias de Belém, mas onde, sobretudo, dá a sua versão dos factos no que se refere ao “caso das escutas”. Findo o silêncio por dever a um homem que se mantinha no cargo mais alto da nação, resta saber até onde vai este açoriano discreto, por vezes meio secreto, nas revelações sobre os bastidores da Presidência. “Agora, é tempo de usar o direito à minha defesa”, afirmou no mesmo depoimento à Lusa.
Começou tudo no período pré-eleitoral de 2009. Nas legislativas de setembro, Manuela Ferreira Leite, no PSD, desafiava José Sócrates, no poder desde 2005. O mês de agosto prenunciava guerra política, com dirigentes do PS, como José Junqueiro e Vitalino Canas a lançarem a suspeita de haver assessores da Casa Civil do Presidente da República a participar na elaboração do programa eleitoral do PSD. “Se Cavaco Silva autorizar isso, há uma clara interferência na campanha eleitoral”, disse Junqueiro. “Toda a gente compreende que, nesta fase eleitoral, a sua simpatia vai para outro lado, até pela circunstância de ser Manuela Ferreira Leite a atual líder do PSD”, afirmou então Vitalino Canas.
Os dados estavam lançados. O escândalo público rebentou no dia 18 de agosto de 2009, na capa do Público. Em manchete, uma foto de Cavaco com Sócrates e o título: “Presidência suspeita estar a ser vigiada pelo Governo”. O mote era a declaração de um “membro da Casa Civil”, não identificado, que perguntava: “Estarão os assessores da Presidência a ser vigiados?”. Na página dois, o texto apresentava-se assim: “Está o Palácio de Belém sob escuta ou sob vigilância? Fontes da Casa Civil recorrem a um episódio recente para alimentar a dúvida”.
As declarações da fonte anónima de Belém eram uma reação aos comentários recentes daqueles dirigentes socialistas. “Como é que os dirigentes do PS sabem o que fazem ou não fazem os assessores do Presidente? Será que estão a ser observados, vigiados? Estamos sobre [sic] escuta ou há alguém na Presidência a passar informações? Será que que Belém está sob vigilância?” Com esta citação, em cima das eleições, a guerra institucional entre Governo e Presidente estava lançada e teria muitos episódios e desenvolvimentos a partir da notícia.
A fonte anónima era, como viria a saber-se, Fernando Lima. Num programa da SIC, durante uma reportagem com os principais candidatos às legislativas, Francisco Louçã, coordenador do Bloco de Esquerda, já tinha adiantado que Fernando Lima tinha sido a fonte do Público. Fugas de informação não autorizadas ou declarações a jornais que podiam ser interpretadas como sendo em seu nome, era das coisas que Cavaco Silva mais detestava. E que tinha dificuldade em perdoar. Neste caso, o experiente Fernando Lima dava o flanco ao adversário — José Sócrates e o PS –, que a seguir lhe atirou com toda a artilharia disponível. E ainda com os “submarinos”, pelo a crer nas suspeitas lançadas pelo próprio autor no livro.
Fernando Lima só falou em público da polémica das escutas, passados três meses, em janeiro de 2010, num artigo intitulado: “A minha verdade”. Classificou a “intriga” como uma “teia bem urdida pelo fértil imaginário dos criadores de ‘factos políticos”. Nesse texto publicado no Expresso, o adjunto justificou as suas declarações anónimas com a insistência dos jornalistas em querer saber se havia ou não membros da Casa Civil a participar na elaboração do programa do PSD. Teria sido isto a conduzi-lo a “um gesto de impaciência”, para que a resposta acabasse por ser “dada sob a forma de uma pergunta”. Então, formulou uma questão, não exatamente como o Público o citara: “Se não há registo de participação pública, como é que sabem o que faz cada um na sua vida privada? Andam a vigiar os assessores?”
“Estava obtido o pretexto para fazer explodir a armadilha e ela funcionou”. Belém estava a partir dali manietada, numa campanha eleitoral em que José Sócrates lutava para não perder a maioria.
Semanas depois, em plena campanha eleitoral e com enorme estrondo, o Diário de Notícias publicava um email trocado entre jornalistas do Público, onde um deles relatava uma conversa tida com Fernando Lima. O assunto versava mais uma vez as supostas vigilâncias, desta vez o envio de um assessor governamental do PS que, na interpretação de Lima, teve um comportamento suspeito (de estar a vigiar a comitiva) durante uma ida de Cavaco à Madeira, em 2008.
A polémica voltava a estoirar ainda com mais ruído O assessor de Cavaco qualificava assim o caso no texto do Expresso: “Entendamo-nos. Eu sei que esta trama raia o incrível e que é um daqueles casos em que a realidade ultrapassa a ficção, daí o ser virtualmente impossível pretender que alguém, de boa-fé e com lisura de sentimentos, acredite que tudo isto aconteceu e teve crédito na opinião pública, gerando mesmo quilómetros de artigos de opinião”. E terminava: “Tenho o direito e o dever de apresentar as coisas tal como aconteceram. Aqui fica a minha verdade, para que a mentira não passe incólume à história”.
Na sequência da divulgação do email do Público, Fernando Lima seria afastado da assessoria para a comunicação social. Tinha-se tornado tóxico para Cavaco Silva. Mas permanecia em Belém. Uma semana depois, regressado das férias algarvias, Cavaco Silva faria uma comunicação ao país por causa do caso das escutas, onde desautorizava totalmente Fernando Lima ao dizer que “os chefes da Casa Civil e da Casa Militar são os únicos autorizados a falar em nome do Presidente da República”. Mas também mencionou o seguinte: “Interrogações atribuídas a um membro da minha Casa Civil, de que não tive conhecimento prévio e que tenho algumas dúvidas quanto aos termos exatos em que possam ter sido produzidas”. Por outras palavras, o PR sugeria que Lima tinha sido mal citado.
Apesar da relação entre os dois homens ter gelado, o Presidente fez parecer que defendia a posição do assessor: “Pessoalmente, confesso que não consigo ver bem onde está o crime de um cidadão, mesmo que seja membro do staff da casa civil do Presidente, ter sentimentos de desconfiança ou de outra natureza em relação a atitudes de outras pessoas”. Uma no cravo, outra na ferradura. No discurso, o Presidente justificou as alterações na Casa Civil, ou seja, o afastamento de Fernando Lima, como uma forma de matar a controvérsia: “Eu não podia deixar que a dúvida permanecesse”, argumentou.
Nessa comunicação, o Chefe de Estado não deixaria de lançar, também, questões e dúvidas que continuaram a alimentar a polémica pública: “Será possível alguém do exterior entrar no meu mail e lê-los?” Ou ainda: “Hoje ouvi várias entidades e existem várias vulnerabilidade no sistema informático da Presidência da República”. Cavaco Silva diria ainda que “o Presidente não cede a pressões nem se deixa condicionar” e que “foram ultrapassados os limites do tolerável e da decência”. Para o PR, tudo se tratava de uma manobra para “colar o Presidente ao PSD e desviar as atenções” da luta eleitoral. Resta saber que buracos desta narrativa vai preencher o livro de Fernando Lima.