Olhei para o relógio e eram 10h26. Estava a passar na rádio “Only memories remain” dos My Morning Jacket com o messiânico Jim James a cantar. Lembrei-me de imediato de Nick Cave a dissertar sobre essas expressões baratas que usamos de cor e que não se coadunam com a dor: “ele viverá para sempre no teu coração”. No coração? Não, o filho Arthur (que morreu em 2015, com 15 anos) será lembrado em cada sopro de vida dos pais, mas não vive no coração deles. Nós gostávamos que o coração fosse algo com mais vida para além do sangue que o bombeia mas não é: é um órgão que bate e se cala um dia. Por isso sim, o homem de quem hoje falamos, lembramos e falo agora, vai recordar-se do filho para sempre mas ele não vive no coração dele. Nem os nossos amores. Nem os que continuam vivos.

nick cave skeleton Tree

A capa do novo “Skeleton Tree”, que é editado esta sexta, dia 9

No momento em que vos escrevo ouço “Girl in Amber” do novo disco de Nick Cave, Skeleton Tree. Tudo me lembra Push the sky Away (disco de 2013) por ter o assombroso Warren Ellis ali ao lado. Todos na verdade merecíamos um Warren Ellis que em “20.000 dias na Terra” (filme de 2014) preparava aquele prato estranho das enguias na sua casa modesta — modesta para alguém que alberga tanto talento, tanta dedicação. Para que precisamos de sumptuosas assoalhadas quando aquilo que temos cabe em tão pouco?

Às 10h26 da manhã, na Radar, já eu tinha cruzado Nick Cave com PJ Harvey. Faço esta coisa infantil de criar um universo paralelo para os meus heróis. Junto-os quando eles foram amantes. Junto-os até quando já não são vivos e, acredito eu, podem viver para além do que vemos. No dia a seguir à morte de Prince acabei a juntá-lo com Bowie lembrando que aquele era o dia em que os cruzava e eles já não estavam vivos. Nunca eu pensei estar ali. Ou eles não estarem ali.

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Na rádio fazemos isto. É um poder instantâneo como todos de resto.

De manhã, nesta manhã, trago no estômago dois cafés e mais qualquer coisa e penso que é com o Nick Cave que tenho de abrir a emissão porque foi com ele que a minha noite acabou. Queria ter ido sair e percebi que tinha de vir para casa acondicioná-lo na minha (in)sensibilidade. E com isso dormir, acordar e ele aqui continuar.

O mais bonito e tocante de “One More Time With Feeling” não é a generosidade de Nick Cave. Qual generosidade quando ele é elegante até na dor? Até na hora da morte de um filho? O mais bonito é aquele fim onde se ouvem os filhos cantar “Deep Water”, canção que Marianne Faithfull gravara em 2014 com Ed Harcourt ao piano e que os filhos de Cave (os dois ainda) cantam com o pai. Foi no fim que me arrepiei. É um fim que trazemos para casa como quando se viu “20.000 dias na Terra” e Nick Cave nos aparece no sofá com eles a comer pizza e isso lhe dá uma dimensão demasiada humana para quem nos habituou a ser um deus. O homem que foi ao inferno e voltou, mas não se tornou condescendente por isso.

É muito importante que a dor não nos derrube, não nos amachuque a identidade até num momento destes. Eu vi Nick Cave igual: contido, duro, a recolher-se na sua dor. Ele é o contrário do que as redes sociais que hoje o partilham propagandeiam: ele não quer chamar atenção sobre si. Tem até pudor nisso. Encolhe-se perante o que os se vitimizam e se apropriam da sua dor para carpir as suas medianas maleitas. Hoje todos quiseram que as suas palavras suplantassem a beleza cirúrgica de Nick Cave mas isso era igualarmo-nos a alguém que sabe manter-se distante de nós. O homem que entra na padaria — na de todos os dias, e que teve até aí o temor e o respeito dos que lá estão, e que passa a ser olhado com piedade. Cave pergunta: quando é que passei a ser alvo da piedade deles?

Ouço agora “Magneto”, de onde ecoa “One More Time With Feeling”. Bate-me o momento em que Cave diz recear estar a perder a voz, a memória. A lucidez? A dor é terrível, ri-se de nós no momento em que nos tira o tapete.

Não sei nada de lutos. Só aqueles que continuam vivos me causaram ocasionalmente dor. Por isso é quase pornográfico que alguém se queira apropriar da dor de um pai que perdeu um filho. Uma dor que não encontra túmulo dentro de nós. O Rei David que Israel ainda lembra (e que terá morrido em 970 a.c.) tinha um filho enfermo e por ele jejuou e se entregou à dor absoluta esperando que Deus tivesse pena dele. O filho morreu e nesse dia o Rei David saiu do luto para se entregar à vida: penteou-se, lavou-se, comeu. Espantados os súbditos ter-se-ão interrogado sobre o seu regresso à vida e ele explicou que durante a enfermidade do seu filho esperava que Deus tivesse dó dele, penitenciando-se. Mas Deus — seja ele qual for, como pode exigir isso aos que nele acreditam? E assim David honrou o filho morto: vivendo. O que Nick Cave, a mulher, o filho e os amigos todos estão a fazer é isso: viver. É disso que precisamos todos: entregarmo-nos à dor quando for preciso e aguentá-la para depois voltar à superfície. Não tenham pena dele, nem de vocês próprios. Há tanto por viver.

“One More Time With Feeling” não é um filme brilhante, é um documento que aceita a dor como Cave a decidiu entregar, como ele é: elegante nas trevas e na luz. Um homem genial. O disco, Skeleton Tree é mais uma obra-prima como foi Push the Sky Away: sem temer os arranjos melódicos de onde sobressai a força das palavras. Não queiram complicar a vida quando ela termina sempre em morte e se entretém com amor e dores várias. Tudo isto é na verdade simples — às vezes demora algum tempo a descobrirmos.

Inês Maria Meneses é autora dos programas Fala com Ela e PBX da Rádio Radar