Título: “Ensaios e Artigos 1951-2007”
Autora: Agustina Bessa-Luís
Editora: Fundação Calouste Gulbenkian
Páginas: 2793, em três volumes
Preço: 90€

Há pouco mais de uma década que Agustina Bessa-Luís — completou 94 anos em Outubro passado — saiu da esfera pública devido à hecatombe de um acidente vascular cerebral fulminante, mas desde então cuidados de amigos e familiares com a sua obra (e certamente também com a sua pessoa) não têm parado de mantê-la presente. Autora desde longa data da Guimarães Editores, os seus livros ganharam nessa chancela edições ne varietur (comprovadas pelos originais) com distintivas capas lápis-lazúli criadas por João Botelho, na série Opera Omnia inaugurada em 2008 por um Dicionário Imperfeito um pouco pensado como homenagem a Aforismos (1986), e uma dúzia de livros foram saindo paulatinamente — inclusive, pela primeira vez, a sua correspondência (1955-68) com José Régio — até que o grupo Babel se vergou ao impacto de uma gestão complicada, e hoje dele nada ou pouco resta do que foi ou quis ser.

Ainda assim, dadas as circunstâncias tão especiais da vida actual da escritora, o método, competência e propósito com os quais os editores trabalharam durante aqueles anos hão-de ficar, na história da nossa literatura (se tivermos uma), como um caso exemplar de devoção co-adjuvante, em prol da fixação e conservação rigorosa de uma das obras mais originais em língua portuguesa contemporânea. Se Agustina Bessa-Luís foi forçada a parar de escrever, terá sido pensado, então que tudo quanto ela deixou escrito — e foi tanto e tão bom — perdure nas melhores condições possíveis.

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Dentro deste espírito foram lançados três livros de inéditos, Kafkiana (2012), Caderno de Significados (2013) e Elogio do Inacabado (este, com 534 páginas, também editado pela Gulbenkian, no início de 2014, com cinco narrativas incompletas, comentadas por Silvina Rodrigues Lopes, uma professora de literatura que dedicou a Bessa-Luís assinalável atenção crítica). Meses mais tarde, em Setembro, um número quase monográfico da revista Colóquio Letras foi consagrado à autora de Sibila (onde destacaria os tributos de Hélia Correia e Maria Velho da Costa), e um ano depois, no Porto, uma exposição biobibliográfica sobre Agustina Bessa-Luís teve lugar por ocasião da cerimónia em que o seu nome foi atribuído, por iniciativa municipal, a uma árvore na avenida das tílias que se destaca no belo jardim do Palácio de Cristal.

Além disso, a Fundação Gulbenkian, destinou assinaláveis recursos ao financiamento dos trabalhos de classificação e conservação do espólio literário e pessoal da escritora nascida em Vila Meã, Amarante, em 1922. Uma autobiografia ilustrada e um livro de Agustina sobre a pintora Paula Rego, promovidos pelo editor Manuel S. Fonseca em 2001/2, foram repostos nas livrarias em 2014, com formato reduzido e sobretudo preço mais acessível do que o dos anteriores. E convém lembrar que, no mesmo ano em que se inicia a publicação da Opera Omnia (2008), João Botelho adaptou ao cinema o romance A Corte do Norte, um filme rodado na ilha da Madeira e apropriadamente produzido pelo funchalense António da Cunha Telles, que esteve em cartaz algumas semanas, passou várias vezes na nossa televisão pública e também foi mostrado em festivais internacionais.

Faltava de alguma maneira reunir os dispersos de Agustina Bessa-Luís, algo que ela já havia feito, em parte, nos volumes Alegria do Mundo (I: Escritos dos anos 1965-69 e II: Escritos dos anos 1970-74, 550 pp. por junto), de 1996 e 1998, e que permitira a Pedro Mexia fazer também, três anos depois, em Contemplação Carinhosa da Angústia (2001, 388 pp.), num lúcido gesto de reconhecimento precoce de alguém que viria a ser cada vez mais marcante na nossa vida cultural. Mas estes livros são como best of, sem comparação com a recolha sistemática — melhor diria: quase sistemática — que Lourença Baldaque, neta da escritora, agora levou a cabo para esta edição que não hesito em chamar “monumental”.

Dá-se o caso de eu conhecer relativamente bem o que significa um trabalho deste tipo e amplitude, que busca e colige pacientemente textos dum escritor que doutro modo desapareceriam com facilidade, ainda que sejam partes indissociáveis do mesmo trabalho literário fixado em livros conhecidos. Lamentando que tais empreendimentos faltem tanto no nosso país (Nemésio é um caso paradigmático, para não dizer absurdo, quase gritante), não posso deixar de saudar com grande entusiasmo, e na primeiríssima oportunidade, o trabalho aqui desenvolvido e o facto de Lourença Baldaque agradecer o “profissionalismo e dedicação” dos bibliotecários que contactou.

Agustina escreveu nos mais variados periódicos, desde grandes jornais (alguns dos quais dirigiu) até revistas conhecidas ou inesperadas, por vezes em séries, como “Cartas do Campo Alegre”, “Retratos” e “As sete chaves”, noutros casos de forma ocasional ou esporádica, e ainda que o seu arquivo e memórias familiares tenham dado uma sólida indicação de onde procurar, o arco temporal de cinquenta anos de escritos, a relativa juventude da pesquisadora — com tudo o que isso significa de natural distância ao ambiente literário do século passado — e a expectável pulverização das solicitações editoriais a uma grande escritora de referência constituíam condicionantes de monta para o completo desempenho duma tarefa deste porte. Portugal não dispõe de tradição de indexação de publicações periódicas (nem se crê que venha a criá-la), fichários de velhos jornais extintos estão em parte incerta ou foram destruídos, e de outros são domínio exclusivo ou de acesso escandalosamente caro, raríssimos são os casos de partilha generosa como o do secretário editorial Luís Amaro (um homem bom, como poucos), e tudo se move a esforço de virar páginas e rodar microfilmes ou depende de perícia criada por uma longa prática de intuir nexos e de cruzar informações já disponíveis para se chegar ao (in)esperado.

Lourença Baldaque fez sem dúvida um excelente trabalho, mas ao qual — seja permitido dizê-lo — faltou aquela ponta de maturidade “oficinal” que lhe apontasse o instinto de acrescentar informação onde ela fosse necessária e útil, como sucede com a diacronia editorial dos textos compilados, para que se saiba facilmente quais deles haviam sido eleitos para os citados A Alegria do Mundo e Contemplação Carinhosa da Angústia, ou caíram em páginas de livros outros, como sucedeu com crónicas sobre Recife incluídas em Breviário do Brasil e outros textos, de 2012, ou com textos já recolhidos em Longos Dias Têm Cem Anos: presença de Vieira da Silva seguido de outros textos sobre Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes, de 2009. Podia também — mas sim, isso seria já o melhor dos mundos — ter verificado na biblioteca da Cinemateca Portuguesa se o bom amigo João Bénard da Costa estivera atento aos escritos de Agustina sobre filmes, divulgando-os nas célebres folhas de sala — como seria o notório caso dum grande filme de culto, “Ordet” de Carl Dreyer (vol. I, pp. 496-97) —, pois isso ter-lhe-ia permitido saber que publicara por duas vezes, a partir de 1997, uma crítica sua a “Una Mujer sin amor” de Luis Buñuel saída no Diário de Notícias a 19 de Fevereiro de 1990, e que por ter escapado à sua consulta desse jornal está omissa nesta recolha.

Leitores mais severos quanto a doutrina editorial moderna poderiam também objectar-lhe o facto de ter deixado de lado prefácios, textos para catálogos e outros avulsos — apesar do seu máximo valor intrínseco —, deles não ter sequer preparado uma tábua bibliográfica complementar ou os não referisse, se caso fosse, como matéria de publicação futura e autónoma. É que também há muito de Agustina Bessa-Luís nesses outros “ensaios e artigos”, como sucede, e são exemplos rápidos, com “Os sete tormentos do mar” (Catálogo oficial do Pavilhão dos Oceanos, 1998), os prefácios a de António Nobre (1982) e a Cântico dos Cânticos (Bíblia, 2001), cujo título é simplesmente este: “Um tijolo quente na cama”…

Como leitor comum, também sinto falta duma cronologia biográfica que permitisse perceber, comodamente, que livros (e em que diferentes géneros literários) Agustina Bessa-Luís foi escrevendo em paralelo com estas páginas, porque isso forneceria indicações preciosas sobre a sua extraordinária “cabeça”. E também me parece agora que “Ensaio e Crónica”, enquanto géneros, se ajustariam melhor ao título e conteúdo destes livros, do que o plural ensaios e artigos, o último dos quais de fraca densidade conceptual.

Depois, quem passe horas a fio lendo estas páginas — sobretudo se conhece os elegantes livrinhos azuis da Opera Omnia — não deixará de notar, num dado momento, o anacronismo do seu dispositivo gráfico obsoleto, banal e precário, algo já tão fora deste nosso tempo mas mantido numa instituição, como a Gulbenkian, que inversamente tem sido uma verdadeira locomotiva para a instauração dum design gráfico contemporâneo, cujos artistas, seus colaboradores habituais, numa penada fariam aqui o indispensável up grade estético e até económico (que a irrepreensível página-padrão dos livros da Biblioteca Nacional sirva de termo de comparação) de um modelo de livro que, aliás, tem servido a restituição dos escritos de intelectuais destacados.

Os três livros estão estruturados por fatias cronológicas — I: 1951-79, II: 1980-90 e III: 1991-2007 — sem correspondência evidente com picos da biografia literária de Agustina Bessa-Luís, mas permitindo reconhecer que a década de 1980 foi de todas a mais intensa neste tipo de registo literário que, como refere Pedro Mexia, é “uma crónica um pouco altiva para o gosto de muita gente, mas também com acessos de proximidade de quem vive o seu tempo”.

De facto, a escritora está muito atenta ao presente, e nada tem dum “génio eremita” à maneira de Herberto Helder, como refere Mexia: viaja muito, vai bastante ao cinema, vê exposições, escreve sobre escritores e artistas, responde a inquéritos, toma de jornais estrangeiros pretextos para os seus escritos, comenta o feminino até a partir duma telenovela brasileira (“Gabriela”, III, pp. 1874-76), lê e relê clássicos gregos e latinos sempre presentes, como o mundo antigo e a cultura europeia, nas suas divagações (“O tempo que se passa nos consultórios dava para abrir o estreito de Corinto e descobrir a passagem do Noroeste”, III, p. 2478).

Num jogo livre e permanente, correspondências inusitadas tornam-se o fascínio da sua leitura tanto quanto os aforismos ou “sentenças frias que me são próprias” — e que, reconhece, criavam no rosto de José Régio “um sorriso de incredubilidade” (I, p. 543). Três exemplos respigados: “Sou por natureza uma pessoa amigável, como os cães de caça” (III, p. 1886); “O Douro é uma epopeia, o resto é uma nação bem ou mal sucedida” (III, p. 2160) e “Eu canto mais depressa a perenidade da couve galega do que a duração duma presidência da República. Eu e todos os portugueses” (III, p. 2516).

Podemos lembrar, por fim, a nota que Agustina Bessa-Luís escreveu como apresentação à sua Alegria do Mundo, recolha de escritos a que chamou “a melhor forma de afirmar a participação nas exigências da época, na beleza, nos trabalhos e na alegria do mundo”. Diz ela: “Deixai que vos convide a este festim em que não há sombra de desgostos e de competição. Amo a terra em que me torno mais dia a dia. Quem a amar comigo, que me acompanhe nesta leitura”.

“Ensaios e Artigos 1951-2007” de Agustina Bessa-Luís tem lançamento a 6 de Fevereiro na sede da Fundação Gulbenkian, e a 10 de Fevereiro na Fundação de Serralves.