Laboratórios que fabricam diamantes, a morte do uso da gravata como símbolo da elegância masculina e a sua substituição por um par de ténis Nike, o desaparecimento das lojas e centros comerciais, bactérias que limpam os tecidos, seda feita de casca de laranja. Ou ainda: o desaparecimento da joalharia porque os millennial preferem usar relógio digitais, o desaparecimento do comércio em troca de experiências, o desaparecimento dos “produtos” em troca de narrativas. Foram muitas as ideias postas em cima da mesa pelos brilhantes e exigentes convidados do Business of Luxury Summit, organizado pelo Finantial Times (FT) e que decorreu esta segunda e terça-feira no Hotel Ritz Four Seasons, em Lisboa.
Um admirável mundo novo ou apenas mais umas série de tendências passageiras, que perto de um diamante da Cartier não passam de uma enunciação do efémero e evanescente mundo da moda? Só o tempo o dirá. Um coisa é certa: quando o tema dos bens de luxo, das marcas de culto, das roupas e da comida é há anos inundado por um discurso superficial, um buzz vazio criado nos blogues e nas redes sociais, é absolutamente fundamental ouvir finalmente quem pensa com profundidade sobre estes temas e os sabe indissociáveis da cultura, da política e da economia. Por isso, quem considera que falar de relógios da Cartier, de lenços da Hermès ou de malas da Louis Vuitton é pura futilidade, deve saber que raras vezes se tem oportunidade de ouvir discutir coisas tão sérias, e de forma tão sólida, ainda que, por vezes, com mundividências totalmente díspares. Ou não fossem os objetos uma das mais ancestrais obsessões e necessidades humanas.
Há, efetivamente, uma linguagem totalmente diferente entre estes homens e mulheres que detêm negócios de milhões, alguns deles com mais de um século de existência, e a linguagem dos média, especialmente bloggers e instagramers mas também revistas de moda. Ficou claro que nem todos eles gostam da forma como os novos consumidores retratam os seus produtos, mas todos — bem, quase todos –, reconhecem que isto lhes abriu possibilidades de negócio totalmente novas. Ou seja, trouxeram uma relação quase direta com os clientes, sem precisarem de publicidade ou mesmo de espaços físicos para funcionarem. Um exemplo disso é o empresário português José Neves que fundou a plataforma digital Farfetch para vender roupa de criadores e boutiques independentes, em 2008, e hoje já está a trabalhar com marcas como a Gucci. Comprar uma peça de luxo e ela ser-lhe entregue em casa como uma pizza, eis o futuro. Ou não? Para Cyrille Vigneron, presidente e CEO da Cartier, é definitivamente “não”. Para uma peça da Cartier, que trabalha com a “eternidade dos diamantes” arrancados da terra e não de laboratório, o futuro continuará a implicar a ida a uma loja ou a um evento desenhado ao pormenor em qualquer parte do mundo. A Cartier não vende online e não tenciona fazê-lo. “E não tem medo de a Cartier desaparecer?”, pergunta a jornalista a Vigneron. “Não. Tenho paciência para esperar”, declara entre o tranquilo e o blasé. Nos corredores, empresários americanos descrevê-lo-iam como “um homem sombrio”. Será?
Produtos de luxo numa encruzilhada entre a herança e o futuro tecnológico
Destes dois dias uma coisa tornou-se clara: o mercado dos negócios de luxo vive (como todos nós, aliás) um tempo agitado entre as mudanças e aceleração temporal provocada pelas novas tecnologias, e as tradições e heranças de símbolos e formas de fazer que têm sido o sustentáculo destes negócios. A saber: a escassez, um público restrito, maioritariamente branco e ocidental, o fabrico de objetos manufaturados e sobretudo o controlo “”dos desejos humanos”. Como explicou Axel Dumas, herdeiro e CEO da centenária casa Hermès, a figura deste Summit, “o objetivo de uma marca não é satisfazer os clientes mas despertar neles os desejos de amanhã, tornar-se relevante no seu tempo”. A marca que começou, há 180 anos, a fabricar arreios e selas para cavalos não tem departamento de marketing, não oferece roupas a celebridades e faz uma publicidade muito restrita. Dumas, que tal como Vigneron parece muito mais voltado para apostar na tradição de fazer de cada objeto uma peça de arte, claramente assume que prefere investir na aura e na intemporalidade do que na velocidade e no desejo de conquistar o máximo de clientes possível. Faz notar que os produtos Hermès mudam pouco e também não cedem à velocidade imposta pelo mercado da moda. “Continuamos a trabalhar nos detalhes. Na construção de um estilo, e isso faz-se no fascínio pelos detalhes, e 85 por cento da nossa produção continua a ser em França.”
Do outro lado da barricada estão empresários como Miroslava Duma, a jovem siberiana que se tornou uma das figuras mais excitantes do mundo da moda com o seu site de moda de luxo Buro 24/7 e que agora está a investir em laboratórios que usam as novas tecnologias para revolucionar o impacto ambiental da indústria da moda (a segunda mais poluente, logo a seguir ao petróleo). Apesar de partilharem o sobrenome “Duma(s)”, Miroslava e Axel não pertencem à mesma família. No entanto, partilham uma energia e uma solidez intelectual contagiantes. Quem esperava que a menina Duma viesse a Lisboa falar de it bags, terá ficado desapontado. Nem uma palavra sobre luxo, apenas sobre como retirar a produção de diamantes às máfias que estão na origem de guerras em vários países de África, produzindo diamantes em laboratório. Diamantes livres de sangue, sendo um dos investidores neste projeto o ator Leonardo Di Caprio.
Hoje em dia Miroslava desdobra-se entre semanas da moda e a busca de investidores para estes laboratórios. Confrontada pela jornalista e editora de moda do FT, Jo Collins, admitiu que não é fácil arranjar investidores e que custa muito caro, mas que o novo luxo será esse: “Vestir roupa ecologicamente sustentável, como seda fabricada a partir de cascas de laranja, meias com ships incorporados que vigiam a nossa saúde, ou tecidos com bactérias incorporadas que não precisam de ser lavados.”
Esta democratização do luxo, onde cada vez mais gente pode comprar produtos que antes eram apenas acessíveis a uma elite, onde mercados gigantes como a China e a Índia estão em ebulição com tantos novos consumidores para o mercado dos bens que “só são acessíveis e tocáveis com os olhos” para o comum dos mortais, como notou o bem humorado editor do FT, Lionel Barber, está a aproximá-lo perigosamente da banalização da fast fashion. Ainda podemos falar de luxo se não falarmos de objetos com aura, ou seja intemporais? Vigneron conta uma história carregada de simbolismo:
“Há uns anos os diamantes estavam um pouco fora de moda, até porque estavam ligados a uma certa submissão feminina, do anel de noivado comprado pelo homem. Hoje, cada vez mais, são as mulheres que compram as suas próprias joias. Quando Kate Middleton herdou uma tiara da Cartier, feita em 1936, que tinha pertencido à mulher do rei George VI, a venda das tiaras disparou. Porque as mulheres continuam a gostar de joias, mas agora as joias já não simbolizam o amor de um homem mas a confirmação do seu poder enquanto mulheres. Nós temos que perceber essa mudança dos símbolos.”
Quem também esteve em Lisboa a prometer um luxo democratizado foi Marcia Kilgore, que nos anos 90 foi o rosto da nova geração de empresários com a criação dos estúdios de beleza Bliss Spa e agora regressa com um modelo de negócio inovador: vender produtos de beleza, desde cremes a maquilhagem de luxo, ao preço de fábrica. Ou seja, “seis vezes mais barato que o mercado”. Basta fazer uma assinatura anual na Beauty Pie e depois pode comprar-se “um batom de luxo ao preço de um café com leite”, garante Kilgore. Infelizmente a Beauty Pie ainda só vende para o Reino Unido.
Entre estas duas barricadas estiveram os artistas, ou seja os criadores, como Nicolas Ghesquiére, da Louis Vuitton, e sobretudo Jonathan W. Anderson. Ambos fascinados simultaneamente pela herança cultural das marcas mas ao mesmo tempo pelas ruas e pela forma como as novas tecnologias estão a juntar o gosto das elites ao gosto das ruas e vice-versa. Se Ghesquiérre assumiu que o seu objetivo é “a intemporalidade”, Anderson, agora a trabalhar para a espanhola Loewe, afirmou-se “obcecado com objetos manufaturados que contem uma história” mas lembrou que algo fundamental mudou na indústria do luxo: “o progressivo desaparecimento de intermediários e a nova relação direta com os clientes via redes sociais, em especial o Instagram, claramente a principal rede social que importa nos mercados de luxo (Facebook ou Twitter não foram sequer mencionados).
Anderson, que começou por ser ator, empregado de lojas e só muito depois se apaixonou pelo Design, reconheceu que as marcas de luxo pressionam os criadores para fazerem mudanças constantes que respondam às exigências do mercado e que isso a longo prazo não é bom. “Porque é que uma pessoa vai pagar 400 euros por uma t-shirt se pode comprar uma igual por quatro euros? Porque a de 400 euros tem uma narrativa e a de quatro euros não”, afirmou. Como renovar a tradição é um paradoxo que parece impossível, mas não é. Basta voltarmos a Baudelaire, que mostrou como a tradição e a modernidade são afinal apenas duas faces da mesma moeda e uma não existe sem a outra.
E onde é que ficou Portugal no meio de tanto futuro? É verdade que não se falou de moda nem de design português, e a participação do Portugal Fashion no evento consistiu na apresentação de modelos feitos por Alves/Gonçalves, Carlos Gil, Luís Buchinho, Miguel Vieira e Storytailors, mas colocados num canto tão escuro do Pateo da Galé, e num ambiente de afterparty, que ninguém pareceu notá-los. Mas o Summit registou a presença de muitos empresários portugueses que terão certamente levado muitas ideias deste encontro.