O Presidente da República vetou esta quarta-feira uma alteração legislativa que tinha sido imposta pelo PCP, que tornava impossível a Carris vir a ser concessionada a privados mesmo que viesse a ser essa a vontade da câmara. Em dezembro, Marcelo Rebelo de Sousa já tinha promulgado o decreto de lei que transferiu, a partir do dia 1 de fevereiro, a gestão daquela empresa de transportes para a câmara de Lisboa, travando agora a tentativa de blindagem aprovada pela maioria de esquerda no Parlamento. Marcelo fala em “intervenção excessiva” da Assembleia da República.

Na argumentação para explicar o veto, Marcelo diz que a alteração legislativa em causa, proposta pelo PCP e apoiada pela maioria de esquerda, não sendo inconstitucional, “pode ser politicamente contraproducente, e, por isso, excessiva e censurável”.

Isto porque “o presente decreto impõe ao Governo e às autarquias locais um regime que proíbe qualquer concessão da Carris mesmo que tal possa vir a corresponder um dia à vontade da Autarquia Local”, escreve Marcelo na nota publicada no site da Presidência. Ou seja, a Carris é titularidade da câmara pelo que, em nome da separação de poderes, o Governo não pode interferir nas futuras decisões sobre eventuais concessões da empresa a privados. Ou mesmo impedir a Câmara de Lisboa de, no futuro, devolver a concessão e a empresa ao Estado.

É por essa razão que o Presidente da República devolve aquela alteração legislativa ao Parlamento, sem promulgação, lembrando que o legislador “deve conter-se” em nome da separação de poderes, e que a Assembleia da República não deve interferir de forma “excessiva” nos assuntos que são da decisão da Administração Pública, neste caso do poder local.

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Por princípio, num Estado de Direito Democrático, o legislador deve conter-se, em homenagem à lógica da separação de poderes, não intervindo de forma casuística, em decisões concretas da Administração Pública, que têm de atender a razões de natureza económica, financeira e social mutáveis. E em que ela está em melhores condições para ajuizar, até por se encontrar mais próxima dos problemas a resolver”, escreve.

E continua, dizendo que o regime em causa, ao vedar taxativamente qualquer eventual concessão da empresa, se trata de uma “excessiva intervenção da Assembleia da República num espaço de decisão concreta da Administração Pública – em particular do Poder Local, condicionando, de forma drástica, a futura opção da própria Autarquia Local”. O veto de Marcelo não tem consequências práticas na gestão da Carris que já está sob a tutela da autarquia. Isso mesmo é sublinhado em comunicado pela Câmara de Lisboa, esclarecendo algumas das interpretações iniciais que foram feitas do veto do Presidente.

Este foi o quinto veto político de Marcelo desde que tomou posse enquanto Presidente da República.

Presidente da República já usou o veto político cinco vezes

Câmara não quer concessionar, mas elogia valorização do Poder Local

A autarquia reafirma o “propósito de manter a empresa na esfera municipal com gestão direta, e o seu forte empenho em continuar a investir para recuperar significativamente a qualidade do serviço prestado. Mas apesar de não pretender usar a faculdade da concessão, que fica aberta, considera que a decisão do Presidente “valoriza a autonomia do Poder Local no uso das suas competências e na gestão do seu património”.

Em causa está uma longa divergência à esquerda, sobretudo entre PCP e PS, sobre a transferência da gestão da Carris para a Câmara de Lisboa (e da STCP para a câmara do Porto). A 30 de dezembro de 2016, Marcelo promulgou o diploma que vinha do Governo, e no dia 1 de fevereiro a Carris passou formalmente para as mãos da Câmara de Lisboa. Na altura o PCP, que sempre foi contra, ameaçou pedir apreciação parlamentar do diploma, exigindo a cessação da vigência do mesmo, mas acabou por optar por chegar a meio caminho.

PCP pode travar municipalização da Carris no Parlamento. Nova tensão na maioria?

Em vez da cessação de vigência, os comunistas apresentaram propostas de alteração, sendo a mais relevante aquela que impedia a câmara de avançar com qualquer privatização. “A transmissão de ações e da posição contratual do Estado, determinada no presente decreto-lei, é imediatamente revertida caso seja desencadeado qualquer processo de privatização total ou parcial da empresa, ou de concessão a privados de qualquer parte da operação da Carris ou das suas participadas”, lia-se no artigo 4º A da referida alteração.

Ou seja, não conseguindo que a Carris voltasse a ser integrada no setor empresarial do Estado, o PCP aceitou manter a empresa de transportes sob a alçada da Câmara de Lisboa, mas colocou uma cláusula-travão: a impossibilidade de o município privatizar ou concessionar o serviço a privados.

Gestão municipal versus concessão a privados

Com este impedimento, legalmente consagrado, os comunistas procuravam sobretudo acautelar uma eventual mudança da política na Câmara de Lisboa que viesse a resultar do regresso futuro dos partidos à direita à gestão da autarquia. O PS de António Costa e Fernando Medina nunca manifestou qualquer intenção de concessionar a Carris a privados. O atual primeiro-ministro, enquanto autarca, foi sempre defensor da gestão da empresa de transportes pela câmara. Uma solução que contrasta com a opção assumida pelo anterior Governo do PSD/CDS, e revertida pelo atual Executivo, de concessionar a privados a exploração das empresas de transportes públicos de Lisboa e Porto.

A proposta de alteração ao decreto original de passagem da Carris feita pelos comunistas foi admitida no Parlamento no final de fevereiro, e foi aprovada por toda a esquerda e pelo PAN em julho, na reta final dos trabalhos parlamentares.

Na altura, o Bloco de Esquerda também apresentou uma proposta de alteração, mas não blindava a Carris a qualquer espécie de concessão ou privatização. A proposta de alteração mais sonante referia-se à “integração na estrutura empresarial da Carris de todos os serviços e trabalhadores relacionados com a atividade de transporte público na cidade de Lisboa, no âmbito das sociedades detidas a 100% pela Carris, nomeadamente Carristur e CarrisBus”.

PCP considera a decisão “negativa”

As palavras vêm de João Ferreira, o candidato da CDU à liderança da
Câmara de Lisboa e também vereador no executivo, que classificou como “negativa” a decisão de Marcelo. Nas suas declarações, João Ferreira considera que o partido não pode “deixar de considerar negativa a decisão do Presidente da República e, sobretudo, os pressupostos na base da qual ela é tomada”.

O PCP defendeu, desde a primeira hora, o carácter imperioso de manter a propriedade e a gestão pública de uma empresa como a Carris. A Carris tem uma importância fundamental na área metropolitana, é estruturante da mobilidade na área metropolitana, é fundamental para o bem-estar e qualidade de vida das populações e para a própria economia e isto torna indispensável que o caráter público da empresa seja salvaguardado”, afirmou.

João Ferreira recupera ainda alguns exemplos de setores já privatizados “desde a PT à banca, passando pela própria TAP” onde considera “visíveis as consequências da privatização”.”A Carris é importante demais para nós
permitirmos que aconteça à Carris o mesmo que aconteceu a outras empresas”, concluiu.

Já do lado do PSD, Luís Leite Ramos afirmou que o partido está de acordo com a decisão do Presidente da República. Nas palavras do vice-presidente da bancada parlamentar do partido, o PSD não podia estar mais “de acordo com os argumentos que ele [Marcelo Rebelo de Sousa] invoca porque foram os mesmos que usámos nos debates que decorreram na Assembleia da República”.

Atualizado com comunicado da Câmara Municipal de Lisboa e com reações partidárias.