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Um busto de Shakespeare, mal entramos, mete respeito. Limpemos bem os pés, portanto. Tentar contar as estantes e os respetivos livros que habitam a casa de Luís Miguel Cintra é o passo mais certo para a insanidade. Isso e as figuras religiosas: “Quem entra aqui deve achar que sou muito devoto”, ironiza. É uma daquelas casas que imaginamos que os génios têm, onde gostaríamos de viver, nem que fosse para sermos um pouco como eles.
Mas o confronto com a impossibilidade é o mais áspero dos males. Parecido com aquele com que Luís Miguel Cintra e a companhia que dirige desde 1973 se depararam. A impossibilidade será, como quase tudo, relativa. Este cessar de atividade é antes um ato de coragem, uma espécie de mãos-ao-ar, próprio de quem tudo fez na vida, próprio de quem já não está armado. No fundo, a Cornucópia não se enquadra agora no que, para Luís Miguel Cintra, devia ser. Hoje é “transformar em estética algo que é apenas precariedade, política de poupança e de gastos”, diz.
O Teatro da Cornucópia podia escolher tentar sobreviver. Podia mas não vai, porque isso seria definhar, e a eutanásia, nas empresas, sempre foi legal. O fim da sua atividade celebra-se este sábado com um recital de Apollinaire e a edição do segundo livro, espécie de catálogo, que une grande parte da história que criaram. Numa conversa densa com Luís Miguel Cintra, percorremos o caminho desta companhia, do seu líder, sobre o teatro e o que o rodeia. E sobre essa coisa de “não sucumbirmos ao que o mundo deseja”.
“Pensamos que ao longo destes anos fizemos muito e menos mal, mas também julgamos já ter idade para ousar dizer que não sabemos nem queremos adaptar-nos a modelos de gestão a que dificilmente nos habituaríamos. Isso faríamos mal.” O que querem dizer com esta frase, retirada do número mais recente da vossa newsletter?
Há três anos que a situação é esta: perdemos metade do nosso subsídio, a nível do apoio oficial, e querem que com essa metade consigamos fazer a mesma coisa. Ora já antes era muito pouco para fazer o tipo de trabalho que a Cornucópia faz. E, no fundo, fomos arrastando uma situação de precariedade. Não se deu por isso, porque tivemos coproduções com teatros nacionais, com o São Luiz, assim vamos poupando para conseguir fazer as coisas seguintes. Só que chegou a um extremo, não conseguimos mais. Podíamos partir, daqui para a frente, para uma situação absurda de termos uma casa a funcionar, termos pessoal competente para fazer as coisas e não termos dinheiro.
A idade também pesa?
Claro, já estamos mais velhos e um bocado mais cansados de fazer este esticar. No fundo, a gente escolheu fazer um teatro de encenador, é um teatro de texto, mas também de encenador e de cenografia e esse é um teatro que já está fora de moda. Sinto, agora falando de uma outra maneira, que há uma espécie de transformar em estética algo que é apenas precariedade, política de poupança e de gastos. Inclusive já se começa a dizer que o encenador morreu, o encenador não morreu, o que morreu foi a capacidade de financiar coisas mais complexas que implicam a existência de um encenador.
Mas esse corte, há três anos, foi geral.
Sim, o que acontece é que sobretudo os mais novos, e as estruturas mais recentes, adaptaram-se facilmente. Participei numa sessão de discussão organizada no Teatro Nacional no tempo do Diogo Infante e da Maria João Brilhante que se chamava “Teatro e Economia”. O Tiago Rodrigues às tantas pediu a palavra e dizia que não era preciso financiamento do Estado às companhias independentes, era preciso era imaginação porque há muitas maneiras de ganhar dinheiro. E isso é relativo. Isso acontece a uma escala reduzida, o modelo de gestão vigente é parecer que se faz muito com pouco dinheiro.
E a Cornucópia já não está para aí virada.
O que queremos dizer é que não gostamos disso, se nos fôssemos adaptar para fazer dessa maneira não sabíamos fazer, faríamos mal. Não sei fazer uma peça… [longa pausa]
…com duas T-shirts e três atores?
Sim, por aí. Quer dizer, se me aplicasse muito talvez conseguisse, mas não vejo razão para o fazer. Não nos querem aproveitar, não aproveitem, paciência. Não estou a fazer currículo.
Isso, claramente, não está. Então a Cornucópia fecha porque não se quer adaptar.
Há uma tensão enorme dentro do próprio trabalho, uma pressão angustiante, portanto a principal razão é essa, sim, a Cornucópia vai fechar porque não há dinheiro para sermos a Cornucópia. Percebes? Há uma espécie de cansaço que se entranhou em nós. E assim não vale a pena.
Diria, nesse caso, que é uma questão de exigência.
É, até porque o público não nos deixa, habituou-se a um determinado nível e tipo de espetáculos… mesmo agora, quando a dizemos que vamos fazer o recital do Apollinaire e que não se sabe o que se passa a seguir, o público, e mesmo pessoas responsáveis como a Margarida Gil ou a Rita Azevedo Gomes, que me diziam: “Ah, vocês também estão sempre a fazer essa fita do acabam e começam…”. Essas pessoas não têm consciência das dificuldades que existem, e, por exemplo, muitos dos espetáculos fizeram-se, porque algumas pessoas precisam de menos dinheiro, abdicando de um ordenado.
O confronto com este final, ainda que anunciado, está a ser um tempo de digestão complexa?
Claro que depois de tantos anos de trabalho, desde 1973, é um bocado difícil uma pessoa despedir colegas com quem esteve tanto tempo e, simplesmente, desfazer uma casa daquelas, que foi feita por nós.
Mas a Cornucópia, enquanto coletivo, deixa de fazer sentido?
Como a maioria da classe deixou de acreditar na capacidade de lutar contra qualquer coisa não se sente um movimento de estrangulamento na maior parte das pessoas. Ou pelo menos não é expresso. Parece que estaríamos sozinhos a lutar contra uma coisa que os outros aceitaram como possível, e que é possível. Já ninguém se importa de fazer um espetáculo que depois é representado três dias. Eu ficaria moribundo. Depois dizem que as casas estão cheias, pois estão, são três dias de espetáculo. “As Criadas”, no Teatro Nacional, está sempre cheio está sempre cheio… leva pouquíssimas pessoas, é na Sala Estúdio, feito em arena com um espaço muito pequeno. Deve ter para aí trinta ou quarenta pessoas. Com atrizes boas e um texto formidável, claro que esgota.
“Não existiu outra companhia com esta atitude”
Qual a razão de trazer Apollinaire para assinalar o fim da Cornucópia?
O que fiz foi uma colagem a partir de textos desse autor, são textos do início do século XX, mas em que se sente uma coisa que é importante em relação à época que estamos a viver: sente-se uma atitude artística responsável pela vanguarda do pensamento. Apollinaire foi amigo dos grandes senhores daquela época, do Picasso, do Cocteau, quando todos os grandes artistas se cruzaram em Paris.
Esse inconformismo diz-vos muito?
Exato, sente-se que há um desejo de renovar, de romper com qualquer coisa, estabelecer hipóteses de pensamento e de estilo de vida que não sejam os que se herdaram nem os normalizados. A gente acha que há aí uma coisa importante de defesa do artista e da importância política da arte que hoje em dia se põe, parece-me. Acho indissociável qualquer atitude progressista, no sentido de querer uma transformação na sociedade no sentido melhor, que não fale e não integre a função da arte como uma das coisas principais. A arte e a educação, que são duas coisas bastante ligadas.
Este segundo livro do Teatro da Cornucópia reforça isso mesmo.
É algo bastante importante para nós, sim. O primeiro volume é um calhamaço bastante pesado, este ainda é mais e tem mais fotografias, e é uma coisa espetacular de edição, sobretudo em relação ao trabalho de cenografia da Cristina Reis, tem maquetes, tem isso tudo. É uma espécie de catálogo. Não creio que tenha existido durante este século outra companhia com uma atividade regular e uma atitude perante o trabalho, com tanta longevidade, do mesmo género. Houve pessoas a quem reconheço a mesma atitude, num ou outro espetáculo, durante três anos, não esta persistência tão grande.
Para a qual já não têm força.
Como se diz na peça do Apollinaire: tudo tem de morrer. É preferível não morrer porque o coração pára, mas morrer porque se fechou um ciclo. Assim construímos o fim e não faz sentido estarmos a arrastar-nos desta maneira. Da mesma maneira quando decidi afastar-me dos palcos… preferi que fosse assim, conheço profundamente as minhas capacidades e sei que esta doença não me permite dar aquilo que podia dar.
Compara o fim da Cornucópia com uma doença?
Se calhar… é uma doença que a gente apanhou. É uma espécie de peste que entrou ali dentro. Custa-me dizer isto, porque é muito ofensivo em relação às outras pessoas, mas o que acontece com as companhias da minha geração é que sobrevivem, uma ideia de sobrevivência custa-me um bocado a aceitar. É claro que se tivéssemos um produtor — foi sempre uma questão que se pôs –, alguém moderno, um tipo inteligente, e que soubesse aproveitar o nosso trabalho sem termos que ser nós a fazer a gestão, provavelmente encontraria maneiras de fazer. Apesar de tudo, uma companhia como os Artistas Unidos farta-se de viajar e de fazer espetáculos por todo o lado e não faz um trabalho mau, antes pelo contrário.
E seria esse produtor a resolver todos os problemas da Cornucópia enquanto estrutura pensante?
Talvez não, mesmo um produtor moderno e de quem a gente gostasse entraria em guerra connosco.
Quase de certeza?
Quase de certeza. Por exemplo, convidavam-nos para uma sala grande, para Guimarães ou para a Guarda, não interessa. Diríamos que sim mas queria demorar três dias a fazer a iluminação, imediatamente isso aumenta o preço das despesas, significa estarem lá os técnicos. Outra companhia faz na véspera noite ou no próprio dia e é muito menos caro. Um produtor habituar-se-ia ao sistema que o permite trabalhar e acharia que somos teimosos e inflexíveis.
Isso faz-me recuperar uma frase que me disse numa entrevista em 2015: “A Cornucópia é anacrónica, tinha de ter mudado muito mais do que mudou”. Se calhar não tinha…
Uma coisa é certa, tanto eu como a Cristina Reis, somos pessoas que seremos incapazes de não ser fiéis a nós próprios. Ter uma postura em que fingimos estar a ser fiéis connosco próprios… disso não seremos capazes. Provavelmente aconteceu que não conseguimos fazer de outra maneira, mesmo que tivéssemos tentado. Um caso desses foi a questão do “Música”, no São Luiz.
Tenho a ideia que não correu muito bem.
Pois não, teve poucas representações e praticamente sem ninguém. Se calhar era errado aceitarmos os dados que nos ofereciam. Só que aí não tivemos alternativa, tivemos que aproveitar para resistir, e nem negociámos, e até ficámos agradecidos ao São Luiz por o terem feito. Só que aquela coprodução não era como outras que fizemos. Lembro-me que fizemos um espetáculo com o Jorge Salavisa, “A Cidade”, com uma multidão em cena, eram umas quarenta pessoas, músicos, por aí em diante. Foi um êxito retumbante.
O público espera mais de uma peça com quarenta pessoas?
Claro, conforme a ambição tem-se o público. Não é muito frequente conseguir-se encher uma sala grande num espetáculo com poucas pessoas, de teatro íntimo, etc. Portanto, há uma adequação da própria sala à produção que era uma coisa que o Jorge Salavisa, mais velho e com uma experiência muito grande, num teatro mais parecido com aquele que a gente faz agora, percebia perfeitamente. E com quem se podia conversar e discutir. Atualmente parece que há um big brother de que agora se manifestam escravos até os próprios programadores. Não se pode dizer que são eles próprios, é um big brother, que eles também têm.
É a tal espécie de peste.
Não sei se a é a mesma, mas talvez.
“Não é uma brincadeira, não é uma profissão sequer”
Fale-me da forma como anunciaram este fim: quase escondido na tal newsletter que enviaram às redações. Essa atitude discreta pautou sempre a vossa atividade.
Só sei ser assim. Corresponde à minha maneira de ser, não é uma brincadeira, não é uma profissão sequer, aquilo que a gente faz. Isto implica uma relação verdadeira com assuntos complicados, à medida que a companhia foi avançando fui pondo isso em prática, percebendo que, no fundo, estava a fazer trabalho de autor, não apenas de intérprete, e que o melhor era dar isso a ver do que esconder.
Vêm daí os textos “a partir de…”?
Sim, comecei a fazer colagens e arranjos, misturas de coisas, no sentido de os espectáculos poderem dizer aquilo que eu queria dizer ao público, quase nunca era o que o autor que escreveu a peça queria dizer. Dizia antigamente que gostava muito de ser intérprete, não me importava nada, gostava de ser como os músicos e como os maestros que não são propriamente criadores das obras que dirigem… mas são. É preciso é saber ouvir. Uma vez o fisco recusou-me os benefícios fiscais como autor das encenações, quando a SPA e tudo reconhece o encenador como autor. Vinha explícito, numa carta que ali tenho, que de “Romeu e Julieta” só há um autor, que é o Shakespeare. Não havia mais ninguém. Só não percebem que os espectadores não veem essa obra.
O que é que respondeu ao fisco?
Não respondi nada, paguei e pronto.
E o fisco tem alguma coisa a ver com o que vai acontecer ao edifício que a Cornucópia habita?
Isso é uma coisa que não está nas nossas mãos. É um edifício privado que o ministério da Cultura nos alugava desde 1975, primeiro por um preço simbólico, depois aumentou a renda. Uma vez que cessamos atividade, o ministério tem que decidir se quer continuar a pagar a renda e a criar outra atividade que queira lá dentro ou não. Isso é uma coisa que lhes compete, e até já andamos em conversações com o ministério a fim de perceber se quer ou não aproveitar o material e o legado da companhia.
O que é que o Luís Miguel gostava que fosse? Um museu, por exemplo?
Gostaria que algumas das pessoas mais novas de quem eu gosto mais se organizassem e propusessem ser responsáveis por uma programação.
Parece-lhe possível?
Acho que era muito possível. Depende da confiança que o ministério possa ter nesses grupos que se apresentarem, bem como da maturidade dessas pessoas em fazer a própria gestão. Esses jovens assustam-se quando começam a perceber o que é que implica, não sabem o que significa ter uma casa daquele tamanho, a limpeza daquilo, pagar a água e a luz, ter os telefonistas, as pessoas que abrem a porta em dia de espetáculo. Isso implica muita dedicação… não se pode levar o estilo de vida que atualmente um ator jovem costuma ter e, ao mesmo tempo, tomar conta daquilo. É evidente que podia mudar de estilo, aquilo pode ser utilizado de várias maneiras. Agora também não nos peçam que organizemos para os outros que ficam.
“Mudar o mundo, sempre sonhámos com isso”
Confessou-me, há um ano e meio, que no início da Cornucópia tanto o Luís Miguel como o Jorge Silva Melo [co-fundador da companhia em 1973] ganhavam o mesmo que os que estavam na bilheteira.
Do que toda a gente.
Teria feito diferente? Acha que a Cornucópia teria uma outra história?
Excluía, à partida, o trabalho com certas pessoas.
Como por exemplo?
Não sei… os mais antigos seria impensável aceitar, aceitaram mas foi numa situação um bocado excecional. Acham que têm direito, e em princípio, teriam, de acordo com a moral vigente nesses assuntos. Têm mais experiência, mais técnica, sendo pessoas com um currículo maior, teriam direito a ser mais bem pagos. Foi um bocado contrariados que começámos a fazer escalões, têm uma diferença tão pequena que os mais novos são muito bem pagos. Sendo menos é muito mais do que é costume pagar-se aos principiantes noutros sítios. Partimos sempre desta ideia: o que é preciso é que toda a gente possa comer e tenha sítio onde dormir. A partir daí já é melhor ter mais dinheiro, mas não é indispensável.
A minha pergunta era mais no sentido de perceber se acha que esse era um dos fatores onde a Cornucópia podia não ter mudado. Ou era inevitável?
Não sei, tenho a minha opinião mas sou uma pessoa diferente das outras. Sou solteiro, apesar de ter esta profissão e de nunca ter comercializado a minha atividade sou alguém que não tem problemas de dinheiro porque recebi uma herança de família… portanto, sou um caso especial. Gostaria que tivesse continuado assim, isso transforma as relações entre as pessoas no trabalho.
O ambiente muda.
Sim, parece que há uma responsabilização de tudo. Tira os compartimentos. As pessoas sentem-se na necessidade de dar aquele extra por isso mesmo. Sendo certo que isto na prática não é assim, lembro-me que todos éramos responsáveis pela montagem das campanhas de dinamização do MFA e quando chegava ao fim dos espetáculos havia sempre uns que se raspavam o mais rapidamente possível. Mas isso faz parte da vida toda, tem que haver gosto pelas diferenças entre as pessoas, mas não é com diferenças de escalões que isso se faz.
Escalões à parte, em que ambiente é que a Cornucópia nasce?
Quem queria fazer teatro era eu. Mas no verão de 68, no rescaldo do Maio de 68, mais o festival de Avignon. Depois disso fui a Paris, para tentar saber onde é que poderia aprender teatro. Houve um encenador francês, a quem fiquei bastante agradecido, que disse: “Ouve lá, mas tu, na tua terra, não podes fazer teatro seja de que maneira for? Com estudantes, com os teus colegas…”. E eu disse: “Posso, estou na Faculdade de Letras, tem um grupo de teatro”. E ele: “Então o que é que queres mais? Fazes com os teus colegas e não interessa mais nada… desde que consigas fazer, é a fazer que a gente aprende”. E vim com esta ideia na cabeça. Depois quis ir estudar, o Jorge Silva Melo foi para Londres estudar cinema e eu para Bristol estudar teatro. Isto em 1972. Depois o Jorge foi-se embora mais cedo e começou a trabalhar com uma das companhias independentes que já estavam a trabalhar cá em Lisboa. Perante isso, o Jorge percebeu como era possível uma companhia funcionar. E a certa altura disse-me para vir.
Isto em plena ditadura.
Sim, falámos muito sobre como haveria de ser e tínhamos a ideia de fintar a censura com os clássicos. Começámos a fazer com teatros alugados antes do 25 de Abril, com essa ideia da cultura de resistência, escritores, músicos, pensando numa época que viria mais tarde, depois de haver uma revolução as pessoas viveriam felizes, mais justamente. Mas com aquela vontade de mudar o mundo, sempre sonhámos com isso. Havia um grande motor ideológico.
A Cornucópia lidou bem com o 25 de Abril?
Muito bem, mais felizes não podíamos estar.
Onde é que estava a companhia, no 25 de Abril, sabe dizer?
Íamos fazer uma digressão com um espetáculo que tínhamos montado. Estava o Nuno Carinhas e o meu primo Paulo Cintra a carregar a camioneta no Parque Mayer. Depois apercebemo-nos do que estava a acontecer, reunimos e mudámos logo a peça que estávamos a fazer. Escrevemos um comunicado a dizer: “A partir de hoje, o Teatro da Cornucópia é uma estrutura democrática onde todas as decisões são tomadas coletivamente e já que deixa de haver censura mudamos o reportório para um reportório explicitamente político”.
Isso fez com que se aproximassem desses movimentos de rotura?
Sim, a partir daí começámos a entrar nas campanhas da dinamização e tal. O melhor que nos aconteceu com o 25 de Abril foi termos aquela sala do Teatro do Bairro Alto, sem ela nada disto tinha acontecido. O que se passou naquela sala no pós-25 de Abril, de movimentação de pessoas, de reuniões de militares… foi inesquecível.
Portanto, a Cornucópia sempre foi um lugar de agitação. Concorda?
Concordo, como também concordo que foi sempre uma ilha, como as pessoas muitas vezes dizem.
Só água à volta.
Não sei bem se era água, mas não vale a pena falar disso.
Estamos a falar de uma vida que envolveu 126 criações. Sei que deve ser difícil mas tenho que perguntar: quais são os momentos chave do Teatro da Cornucópia?
É mesmo, não sei bem dizer o que foi fundamental. Na fase mais recente há um espetáculo que marca uma grande mudança que foi o “Miserere” [2010]. Foi importante, porque o autor considerado nacional, Gil Vicente, era feito de uma maneira completamente diferente. Era feito de um ponto de vista de quem não conhecia a igreja católica, quando aquilo é sobre a igreja e a redenção. A encenação dialogava com a própria autoria do texto. A partir daí houve uma atividade mais de autor, uma afirmação da personalidade da companhia, isso coincidiu com uma série de prémios importantes que recebi na altura. Quando a direção do Teatro Nacional nos convidou para fazer esse espetáculo, isso acontece porque éramos a companhia mais autorizada para fazer um clássico português. De certa maneira, a gente trocou as voltas a isso e fez um espetáculo experimental quando nos pediam para fazer algo de autoridade académica. Portanto, a Cornucópia sempre foi inovando, à sua medida.
Convidam agora o público a falar sobre o percurso do Teatro da Cornucópia. O que espera que se diga
Espero uma conversa como esta, no melhor dos casos. E espero ouvir, no pior dos casos, “não podem acabar, nós vamos ajudar-vos”.
E o Luís Miguel não o quer?
Fico comovidíssimo, porque sinto uma solidariedade enorme. Mas acho que tenho razão e a decisão é mesmo assim, é irreversível. Não quer dizer que não faça outras coisas, não quer dizer que não participe até noutras coisas que se fazem naquela sala. Parece-me uma sala essencial no teatro português.
“Sinto um grande desgosto com este meu estado de saúde”
O Luís Miguel despediu-se dos palcos em outubro de 2015…
Sim, tem sido péssimo. Percebi que gosto muito mais de ser ator do que encenador. Ideia que se adensou desde que me despedi dos palcos, sobretudo porque a minha incapacidade não é de pensamento, tenho a cabeça boazinha ainda. O meu problema é ter dificuldades físicas muito grandes, custa-me a levantar, falta-me o equilíbrio, gaguejo. São coisas que um ator não pode ter. Sinto um grande desgosto com este meu estado de saúde [Luís Miguel Cintra sofre de Parkinson].
Com o que lida pior?
Não distingo, se não estivesse doente não me teria afastado. E reparei, com isto, que não tenho mais nada na vida do que a minha dedicação ao teatro. Não tenho filhos, os meus pais já morreram, não me dou muito bem com o meu irmão, sinto uma solidão muito maior do que sentia antes. É como se tivesse sido adolescente até tarde e de repente já sou avó.
Sem netos. O que faz para combater essa solidão?
Olha, faço disparates como este: gastar um dinheirão em bonecos que não servem para nada. Só que não tenho tempo livre, não sinto que por isto tenha mais tempo para pensar noutras coisas, não tenho é ocupações que tomem conta de mim como tive até agora. O fundamental, para mim, está as relações com as outras pessoas.
As pessoas apoiam esta decisão?
As pessoas que me conhecem melhor e cuja opinião política tenho mais em conta disseram que isto já devia ter acontecido. Já existia um arrastar de dificuldades que não era criativo.
Quando diz “não quer dizer que eu não vá fazer mais nada” o que quer dizer?
Há um espetáculo que queria ter feito e que só não fiz ainda porque não houve dinheiro para isso. Queria fazer um Dom João, a partir do “Dom João” de Molière. É uma peça que lida com dois temas fundamentais, com os quais me apetecia brincar, que é o amor e a morte. O Dom João não vive o amor como se fosse o amor, é como se fosse mecânico, e o que vive é a sua relação com a morte. Já tenho idade para perceber melhor o assunto.
Lembro-me de me falar de um filme, há uns tempos…
Isso está mais complicado. O cinema tem regras próprias e não me entusiasma muito ficar com uma imagem dentro de uma caixa, gosto mais de ficar com uma memória de uma vivência quotidiana, de ensaios e tudo mais, do que construir uma imagem que ficou ali condensada. Tenho demasiada noção do que isso significa. Normalmente significa bem, os filmes com uma carga de anos em cima ficam mais interessantes. Tenho a certeza que os filmes do Manoel de Oliveira, com o passar dos anos, ficam mais interessantes, o cinema evoluiu e aquilo que era considerado defeito passa a ser um traço de estilo.
Portanto, cinema nem pensar.
“Nem pensar” não digo, mas não ando a pensar nisso. O que pode acontecer é uma coisa que gosto muito de fazer: pôr-me ao serviço das pessoas mais novas, no sentido de fazer formação, de certa maneira. Entendo a formação não como uma passagem de sabedoria, antes ensinar a ser companheiro de trabalho, só acredito que sou capaz de ensinar qualquer coisa se estivermos a fazer, em conjunto, alguma coisa. As aulas de administrar conhecimentos no teatro não interessam nada. Sinto que é desse convívio que as pessoas colhem mais.
E o que sente em relação ao facto de já existir uma sala de teatro com o seu nome?
Não é algo a que seja muito sensível, mas sou um bocadinho. Tenho demasiada consciência de que é mais útil, à própria sala, estar ligado a ela profundamente do que ela a mim, que estou ali algumas vezes. Gostei muito de fazer alguns espetáculos lá, mas não é a sala que está ligada à minha carreira, portanto, há aí uma coisa estranha. Mas acho graça que daqui a uns anos, quando já tiver morrido, as pessoas irem lá e verem o meu nome escrito sem saber a razão.
A justificação é o seu nome, não?
Sim, é uma maneira de reconhecerem que tive importância no teatro português. Não tanto naquela sala, mas pronto.
Está a sugerir que daqui a uns anos ninguém saberá quem é, quem foi, Luís Miguel Cintra.
Provavelmente.
Porque razão é que o diz?
Com os atores é assim, já assisti a tantos atores geniais que foram absolutamente esquecidos. O teatro é uma arte efémera, não faz mal.
O que é que não faz mal: o teatro ser uma arte efémera ou não se recordarem do seu nome?
Não faz mal as pessoas esquecerem-se de mim.