Este texto de Maria João Avillez ficou publicado originalmente a 3 de junho de 2014. É republicado agora na sequência da notícia da morte de João Lobo Antunes.

Desde sempre se interrogou sobre “o enigma moral do seu ofício”. Conheço-o há meio século, sei que é assim, pude testemunhar de perto a seriedade intelectual, a inquietação, a tenacidade com que sempre perseguiu essa busca. O modo como transbordou das fronteiras do seu currículo, por muito que ele exiba a excelência de um percurso, como fez do cruzamento da ciência com o humanismo uma forma de vida, como pôs a ética ao serviço de corpos e almas.

João Lobo Antunes faz amanhã 70 anos, jubilou-se hoje, dando a sua última lição perante uma plateia com o melhor do país que (jubilosamente, tenho a certeza) acorreu à sua chamada. Para aplaudir alguém que teve – tem – como ele próprio afirma e a vida provou, um “entendimento sacerdotal da Medicina”, mas que agiu muito para além dela, deixando marca e memória impressivíssimas na vida académica, cultural, cívica, intelectual, política do país.

Vivemos os dois algumas coisas juntos, daquelas que também contam e marcam. Por isso e em nome disso consenti à memória e ao coração que se soltassem e escrevinhassem algumas linhas em vez de mim.

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João Lobo Antunes nasceu a 4 junho de 1944 e lembrava um menino exemplar: nunca havia, nem na escola nem em casa, reparos a fazer-lhe. Eram seis irmãos, a casa era no meio das hortas de Benfica, um quase mundo à parte num ambiente familiar feito de uma silenciosa austeridade: na família sempre se achou natural o cumprir. Havia também um avô militar que muito influenciou o neto João, aprofundando a educação religiosa que os pais fizeram questão que os filhos recebessem. Aliás, a paróquia de Benfica honrava anualmente a procissão da Senhora da Saúde porque os cabeções de renda dos seis meninos Lobo Antunes eram costurados pela avó e alvo de distinção ano após ano sempre renovada…

No segundo ano de Medicina, com 18 anos, obteve pela primeira vez a classificação de vinte valores. A euforia sem limite que então o embalou só voltou a senti-la uma outra (e única) vez quando, muitos anos depois, em 1996, recebeu o Prémio Pessoa. Um entre muitos prémios, como bem se sabe.

Formou-se com 19,47 valores – um caso na faculdade de Medicina de Lisboa. Durante cinco anos estudou ininterruptamente, debruçado sobre calhamaços e esqueletos. Como ele desabafou um dia “nascera com uma predisposição genética para um sentido cego do dever”. Nunca teve férias de verão, trocando a Praia das Maçãs, onde veraneava a família, pelos mistérios do corpo humano. Recordo-me bem de tudo isto porque ambos colaborávamos semanalmente no Programa Juvenil da RTP: o João tinha 18 anos, eu, 17. Lembro-me de o achar grave e ensimesmado, sem então perceber que o critério com que já detectava o essencial, lhe impunha a procura de prioridades menos ligeiras. Como a de não recusar presidir, tempos depois, à Juventude Universitária Católica, a convite de D. António dos Reis Rodrigues. E tão “particular” foi a marca nele deixada por D. António, que João Lobo Antunes, mesmo que não se diga hoje um homem de fé, sempre me lembrou o “dr. Reis Rodrigues “ – era assim que era chamado – como uma das pessoas que mais influência tiveram na sua formação e maior importância na sua vida.

Completou os estudos em neurocirurgia nos Estados Unidos onde ficou 13 anos e “aprendeu quase tudo”. Entre 1971 e 1984 trabalhou no Instituto Neurológico de Nova Iorque e ensinou na Universidade de Columbia. Ganhou excelente formação técnica, reteve a filosofia da profissão, nunca esqueceu os critérios de mérito. Valores que no seu regresso a Portugal em 1984, motivado por razões familiares, continuou a praticar e ampliar ao serviço da ciência, da investigação, da vida académica, da vida cívica. Da vida do espírito.

Cirurgião reputado e sábio homem de ciência, ia-se tornando no país um activo protagonista da sociedade civil a quem, porém, afligia a debilidade de algumas elites: “tinham rapidamente aprendido as regras da democracia mas não as regras do exercício da inteligência em liberdade”, disse-me uma vez. Começou a acorrer a múltiplas e diversas chamadas com fulgor científico e intelectual, onde nunca iludia porém o gosto com que o fazia: João Lobo Antunes gostava de ser requisitado. Continua a gostar muito. Apreciou muitíssimo ter sido o mandatário nacional da candidatura presidencial de Jorge Sampaio (falam de música os dois) e de, anos depois, ter desempenhado o mesmo papel junto de Cavaco Silva, na sua corrida a Belém. Um Presidente com quem continua a almoçar.

Vaidoso, sim, Lobo Antunes. Mas quando lhe falo nisso, ele prefere sorrir silenciosamente.

Para além porém de operar, tratar, investigar, ensinar, chefiar, também escreve: uma espécie de contraponto ao seu ofício, “quase uma continuação do que faz cirurgicamente, uma mistura de arte e técnica”. Mas há que parar nessa escrita, ela merece-nos isso, João Lobo Antunes escreve muito, escreve bem e escreve para vários instrumentos: a ciência, a cultura, a filosofia, a arte, a literatura. Escreve sobre o que o interpela mas o gesto é duplo: ao escrever põe ao serviço da universidade, das elites, dos políticos, dos jovens, o melhor de um estruturado pensamento sobre a vida, a morte, a natureza humana, as contradições do progresso, os limites da ciência. O espírito e a matéria. A estética e a ética.

São já sete ou oito os livros publicados e mais de duas centenas os artigos que sobre tais temas elaborou: não me dizia ele que “sempre entendeu a ética como a história das suas inquietações”?

E por se ocupar – e preocupar – com as áreas em que a ciência e a prática médica se intersectam com valores éticos e morais numa época em que as novas tecnologias parecem conferir aos homens um poder que eles não dominam, reuniu um dia num só volume vários escritos sobre esta temática. O título, “Inquietação Interminável” revela como permanece acesa a busca do enigma moral do seu ofício…

Dizem-no um sobredotado, prefiro chamar-lhe um Príncipe da Renascença.