Os sonhos que temos dão muitas vezes a impressão de serem recados. As ideias aparecem de modo imperioso, como se alguém nos estivesse a dar ordens, e o sentimento de que a única maneira de lhes responder é fazer alguma coisa é também frequente. E apesar disso este modo imperioso combina-se por vezes com a ideia de que não percebemos bem aquilo que nos estão a dizer. Serão os recados realmente para nós? Nesse caso o nosso dever consistirá antes em fazer chegar aos seus verdadeiros destinatários o seu conteúdo. Como, no entanto, encontrar aqueles a quem os nossos sonhos dizem respeito, ou a quem realmente se destinam?

Até há uns anos havia o costume e o treino de atender chamadas de telefone para outras pessoas. Os destinatários pertenciam a uma de três categorias: aqueles que sabíamos quem eram e a quem prometíamos transmitir uma informação ou instruções; aqueles a quem por variadas razões não sabíamos como encontrar, porque por exemplo já não moravam por perto; e aqueles que não sabíamos quem eram, ou que confundiam connosco. Os sonhos põem problemas que correspondem aproximadamente a estas três categorias de destinatários.

A posse generalizada de telefones próprios alterou o tipo de chamadas que recebemos. Deixámos praticamente de atender chamadas que não são para nós; a expressão ‘é engano’ caiu em desuso. É possível que o fim dos enganos tenha contribuído para diminuir a reputação dos sonhos, e afectado as nossas capacidades de reagir aos recados que recebemos por essa via. É possível por isso que hoje as pessoas se esqueçam hoje dos seus sonhos com mais facilidade, e acordem muitas vezes com a alegria de quem desliga o telefone.

Acreditamos que nunca nos esquecemos das coisas importantes; e que se nos esquecemos dos sonhos eles não serão importantes. Mas como nos esquecemos quase sempre dos sonhos, e aliás da maior parte das coisas inesquecíveis, nunca podemos saber ao certo se são importantes. Pode pois ser avisado tomar notas dos nossos sonhos. Há todavia dificuldades logísticas: normalmente temos sonhos quando estamos a dormir; como dormir é um estado marcado pela imobilidade e pelo conforto, o incentivo para tomar nota desses sonhos é baixo ou inexistente.

Alguns de nós insistem não obstante, mesmo meio a dormir, em tomar notas por extenso dos recados que nos chegaram durante o sono, e de que sentimos a necessidade de nos desincumbir. Não serão sempre segredos ou soluções exaltadas: podem ser uma receita de cozinha, uma suspeita, uma comparação entre duas coisas, ou o lugar onde tínhamos posto uma chave. De manhã porém, quando conseguimos ler a nossa caligrafia, os recados que recebemos durante a noite encolhem como algodão doce; e só a esperança de nos voltarem a telefonar na noite seguinte compensa a decepção que sentimos.

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