Quem costuma ir à Praia Azul em Santa Cruz, no concelho de Torres Vedras, provavelmente não imagina que naquelas rochas onde se senta estão os vestígios de um dinossauro com 150 milhões de anos. Mas estão mesmo, e estão em risco devido à força das marés. A Sociedade de História Natural (SHN) identificou a ameaça e foi rápida a agir, mas o mar não dá descanso e o prazo para recuperar os ossos fossilizados é apertado: dez dias. Tique-taque.
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“Se a história da Terra fosse contada em 24 horas, o Homem só aparecia nos últimos segundos”, é assim que Corina Melo, voluntária e membro da equipa do laboratório de Paleontologia da SHN, costuma explicar a importância dos dinossauros aos seus alunos. “É aquilo que encontramos nos fósseis que nos explica a história da Terra, porque essa ninguém a pode contar”, diz. Sentada numa rocha na Praia Azul debaixo de um toldo improvisado para se proteger do calor, a professora de Biologia e Geologia aproveita para descansar, visto que já ali está desde as 7h da manhã. Por esta altura serão umas 17h, mas lá em baixo, a dois passos de Corina e a outros dois passos do mar, a equipa continua firme na escavação.
O trabalho é de sol a sol porque a urgência é muita. O inverno rigoroso deste ano e a erosão marítima fez com que o sistema de georeferenciação da Sociedade – o SIGAP – tenha dado o alerta: a jazida da Praia Azul está em risco; larguem tudo e corram para lá. Com mais de 290 jazidas de fósseis identificadas ao longo de toda a bacia lusitânica (de Setúbal a Leiria, mais coisa menos coisa), “é difícil fazer a monitorização de todas”, lamenta Bruno Silva, diretor daquela associação. “As jazidas que estão em risco são sempre as primeiras a ser intervencionadas, depois são as que têm mais potencialidades em termos científicos”, diz, acrescentando que estava outra escavação prevista para este mês, nas Caldas da Rainha, mas que teve de ser cancelada.
Chegados à jazida, que, para dificultar o trabalho da equipa, fica mesmo junto ao mar, o trabalho é obrigatoriamente meticuloso. “Quando escavamos um dinossauro e há ossos que estão articulados, não os separamos uns dos outros”, explica Bruno Silva. “Ou seja, procuramos sempre levar o material para o laboratório tal como o encontramos”, o que não é fácil e requer cuidados. “Quando estão prontos para sair, os ossos são logo colocados numa bolsa de poliuretano expandido [bolsa de plástico espumado]” para que nada se estrague durante o transporte, continua o diretor do laboratório.
Mas para não danificar nenhum fóssil, primeiro é preciso identificar com atenção a posição dos ossos e só depois começar a extração, muito lentamente. Rui Lino, um dos tais membros da equipa que se mantém firme na escavação, explica todo o processo até à chegada dos ossos recuperados ao laboratório.
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Foi José Joaquim – o sr. Zé, como amavelmente é tratado pelos membros da equipa –, quem identificou a jazida da Praia Azul, depois de ter descoberto uma costela de dinossauro com 2,20 metros de comprimento. Perante isto, as expectativas do que vai sair dali são altas. O objetivo é salvar todos os elementos osteológicos, que é como quem diz todos os ossos, que ainda não tenham sido afectados pela erosão, mas para já é imprevisível saber quanto do dinossauro vai ser recuperado.
Sabe-se sim que se trata de um saurópode, os maiores e mais emblemáticos dinossauros herbívoros do Jurássico Superior, identificados pelo pescoço muito comprido e cabeça pequena e arredondada.
“Ainda não podemos classificar a espécie que estamos a descobrir aqui – primeiro é preciso recolher e analisar em laboratório para termos a certeza”, diz Corina Melo.
Chamemos-lhe apenas saurópode. De que tamanho? Não tenhamos ilusões porque “encontrar o esqueleto completo é impossível”, adianta Rui Lino. “Já temos algumas vértebras dorsais e fragmentos da costela a descoberto, mas para já não há fémures nem ossos maiores”, diz.
Na equipa fixa da Sociedade de História Natural, sediada em Torres Vedras, quase todos são voluntários – alguns a tempo inteiro, outros em regime de vaivém. Uns têm mais experiência nesta ciência que é a paleontologia, outros mais tempo para se dedicar. O sr. Zé, diz o próprio, é o que tem “mais tudo”: “mais prática, mais idade, mais anos disto e mais fósseis colecionados”. Só tem menos formação na área, mas não menos fascínio. Entre ossos de carnívoros, herbívoros, crocodilos, carapaças de tartarugas, dentes de tubarão e pegadas de dinossauros, José Joaquim já encontrou de tudo ao longo de 27 anos dedicados às incursões pelas arribas da zona oeste – “até o corpo de um homem morto”. “Só ainda não encontrei uma mala cheia de notas”, lamenta entre risos.
A Sociedade conta já com um espólio de perto de 20 mil fósseis, alguns devidamente identificados e outros tantos por identificar, que esperam por um museu para serem exibidos. Até ver, há uma exposição no Museu Municipal de Torres Vedras, visível até ao próximo ano, que reúne algumas das peças mais completas e bem conservadas do espólio, como é o caso de um fémur com mais de 2 metros de altura.
Mas para se chegar a esse ponto são precisos vários anos de trabalho (por vezes ultrapassam uma década), que começam na escavação e na extração minuciosa dos ossos da rocha. Se os ossos não forem retirados em bom estado, nada feito. Quanto ao saurópode que agora começa a ficar visível na Praia Azul, todos os cuidados são poucos. É que “o mar, por um lado, ajuda a pôr os elementos a descoberto, mas a partir do momento em que começamos a escavar e os ossos ficam expostos ao ar, começam imediatamente a degradar-se”, alerta a voluntária Corina Melo.
O período estipulado para a escavação é de dez dias. Dez dias em sobressalto devido às ondas que, quando a maré enche, tendem a ultrapassar as trincheiras improvisadas. “Mas se não conseguirmos cumprir o calendário também é bom sinal”, remata Rui Lino. É sinal de que há muitos mais ossos para descobrir.