25 de agosto, 1988. João Santos, 52 anos, passava férias em casa da cunhada, no Entroncamento. A quinta-feira de calor começou cedo, por volta das 07h30. O sossego até aí vivido foi interrompido com um bater, nervoso, à porta. Era a vizinha do lado que trazia más notícias: “O Chiado está a arder!”. João meteu-se no carro, juntamente com a mulher Diamantina, e acelerou o mais que pôde. O rádio foi companhia durante os vários quilómetros até Lisboa. O que foi ouvindo acelerou-lhe ainda mais os nervos.

“Morava no número 99 da Rua da Assunção, em Lisboa”, explica João Santos ao Observador. Da varanda, nas traseiras, via a agitação diária de um Chiado entretanto já desaparecido. A casa que habitava há 25 anos estava a uns escassos metros dos Armazéns Grandella, onde o incêndio deflagrou. “Fiz a viagem em pânico. Cheguei eram quase 10h00”. Mais do que bens materiais, estava preocupado com a filha que, recém-casada, tinha por hábito passar alguns dias na casa dos pais. Para grande alívio da família, aquela quinta-feira foi uma das exceções.

Sai-lhe um suspiro profundo, depois de um silêncio de alguns segundos, quando a pergunta é “o que viu quando chegou?”. Apoia-se numa das velhas cadeiras de barbear, na Barbearia Salão Carmo, junto ao Rossio, onde trabalha há cerca de duas décadas. Tenta suspender as lágrimas que se avistam de relance. “Perdi tudo. Fiquei com aquilo que tinha vestido”, consegue dizer-nos entre respirações mais longas. “Perdi 25 anos de memórias, fotografias, cassetes, livros… Talvez tivesse mais de 100 livros”.

Incêndio no Chiado

Incêndio no Chiado – Jaime Silva/Global Imagens

 

“Do terceiro andar para cima, do prédio onde vivia, ardeu tudo. Do terceiro andar para baixo a água estragou tudo”, referindo-se à intervenção dos bombeiros. Lembra-se das labaredas imensas e de um céu ensombrado pelo fumo negro.“O incêndio chegou à Rua Garrett. Se o vento não tivesse mudado, chegava ao Rossio”, inclina a cabeça em direção à porta de vidro do pequeno estabelecimento e abana a cabeça: não consegue sequer imaginar o cenário. À memória, vem-lhe ainda a história do único bombeiro, de então 31 anos, que perdeu a vida naquele dia. E a imagem dos vizinhos. “Vi-os chorar. Também ficaram sem nada”. No final, ao barbeiro, valeu-lhe o seguro da casa e uma indemnização de “1.800 contos por cabeça”.

Depois do incêndio, João Santos ficou a viver um ano com a filha, em Queluz. Mais tarde encontrou casa própria naquela zona, de onde nunca mais saiu. Não foi uma fuga deliberada da capital, mas antes um acaso. No entanto, o barbeiro continua a trabalhar no coração da cidade — perto da zona onde antes houve o incêndio — que há tantos anos roubou-lhe uma parte da vida. Agora, em vez de habitante, é um comerciante local que diariamente corta o cabelo e apara a barba a desconhecidos. Nessa condição, dali não arreda pé. Ainda assim, não vive em Lisboa desde 25 de agosto de 1988.

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