Absolvição para todos os arguidos. Foi esta a sentença aplicada esta segunda-feira ao ex-presidente da Câmara de Lisboa, Carmona Rodrigues, e aos vereadores Fontão de Carvalho e Eduarda Napoleão acusados em coautoria de prevaricação de titular de cargo político. Os três outros arguidos, entre eles dois arquitetos acusados de abuso de poder, também foram absolvidos do processo que começou há nove anos, com a assembleia municipal a aprovar uma permuta com a empresa Bragaparques. Em causa a troca dos terrenos do Parque Mayer pelos terrenos municipais onde estava instalada a Feira Popular.

“Boatos”, “convicções não justificadas”, “convicções íntimas sem sustento palpável” foram alguns dos argumentos do juiz presidente, que leu o acórdão numa sala de audiências do Campus de Justiça, em Lisboa. O juiz sublinhou que na decisão do coletivo pesou a “falta de prova” e a “dúvida”. E, em caso de dúvida, a lei favorece o arguido (in dubio pro reo).

O juiz lembrou que as testemunhas ouvidas ao longo do processo tiveram dificuldade em lembrar-se da matéria de facto. E que os documentos analisados pelo tribunal “não lograram” mostrar que os arguidos tiveram intenção ou agiram “em conluio” para “prejudicar ou favorecer” alguém, como implica o crime de prevaricação de cargo político, de que vinham acusados quatro dos arguidos. Mesmo em relação aos arquitetos, acusados de abuso de poder, “não se demonstrou que queriam um benefício”.

O coletivo de juízes encontrou, no entanto, uma autarquia desorganizada. “A Câmara Municipal de Lisboa navegava em águas pouco competentes, pouco eficazes”. E até admitiu que o processo da troca de terrenos tivesse ocorrido com demasiada “celeridade”, embora reconheça que o processo em causa já se arrastava há anos e que ao ser acelerado permitiu ao executivo “um encaixe” de receita.

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Uma rapidez que, ainda de acordo com a decisão do tribunal, poderá ser alvo de “censura administrativa” “mas que fica aquém da matéria criminal” – como o coletivo de juízes da primeira sessão do primeiro julgamento do processo tinha igualmente defendido (ver cronologia).

E foi isso mesmo que o ex-presidente da autarquia, Carmona Rodrigues, sublinhou à saída do tribunal.

“Esta é a segunda vez que somos absolvidos. Provou-se que, ao contrário do que se dizia, encontramos uma excelente solução para a cidade de Lisboa”, disse Carmona Rodrigues

O ex-autarca disse que não abandonou o eleitorado e que foi um “grupo de pessoas” que fez cair o executivo que liderava quando foi constituído arguido. “Sempre tive a consciência tranquila”. Quando confrontado sobre uma possível recandidatura: “agora preciso descansar”.

Já a vereadora Eduarda Napoleão mostrou-se desgastada com o processo.

“Tive imensos prejuízos pessoais, familiares e profissionais”, disse Eduarda Napoleão, recusando entrar em pormenores.

O seu advogado, Rui Patrício, lembrou a “importância” do acórdão “para reafirmar a separação de poderes”.

Ministério Público tinha pedido cadeia

Nas alegações finais, em julho, o Ministério Publico (MP) tinha pedido que Carmona Rodrigues e Fontão de Carvalho fossem condenados a penas até cinco anos de cadeia. Para Eduarda Napoleão e Remédio Pires, dos serviços jurídicos do município, pedia penas de quatro anos. Estes quatro arguidos estavam acusados de prevaricação de titular do cargo político. O MP admitiu, no entanto, que as penas de cadeia fossem suspensas caso os arguidos paguem à autarquia mais de 4 milhões de euros: Carmona Rodrigues e Fontão de Carvalho 1,5 milhões de euros cada um, Eduarda Napoleão 800 mil euros e Remédio Pires 450 mil euros.

Para os outros dois arguidos no processo, os arquitetos José Azevedo e Rui Macedo, o MP pediu condenações a pagamentos de multas por abuso de poder, pois “violaram” os seus deveres.

O coletivo de juízes não atendeu o pedido do MP e absolveu os seis arguidos.

Tudo começou em 2005

O processo remonta a 2005, quando a assembleia municipal de Lisboa aprovou por maioria, com exceção da CDU, a permuta dos terrenos do Parque Mayer com parte dos terrenos municipais da antiga Feira Popular, em Entrecampos. Os terrenos do Parque Mayer eram então da propriedade da empresa Bragaparques.

Do acordo fez ainda parte a venda em hasta pública do lote restante da Feira Popular, tendo a Bragaparques direito de preferência na compra do terreno, passando a deter a totalidade do espaço. Na altura, as queixas entradas no MP levantavam suspeitas de favorecimento e diziam que havia já um projeto aprovado para aquele terreno, ainda antes do resultado da venda em hasta pública.

No final do julgamento o MP alegou que tinha ficado provado que os arguidos, por comum acordo, “sonegaram” as competências dos órgãos autárquicos, câmara e assembleia municipais de Lisboa, e desenvolveram um “processo negocial ilícito” para satisfazer interesses particulares. Disse ainda ser necessário acabar com o “sentimento de impunidade” em relação a este tipo de casos.

Os advogados dos arguidos refutaram as alegações do MP:

“Os arguidos sempre acautelaram o interesse municipal, e não pretenderam isentar ou favorecer o particular do que quer que fosse. Não houve lugar a cedências nem se provou, minimamente, o prejuízo”, alegou Vânia Costa Ramos, advogada de Carmona Rodrigues.

Esta segunda-feira o coletivo de juízes também refutou. “Só mediante um passo de fé será possível provar tal afirmação”, disse o juiz.

Processo longe do fim

O administrador da Bragaparques, Domingos Névoa, foi ouvido como testemunha e avisou que este processo estava longe do fim. O empresário garantiu ter tido um prejuízo de 350 milhões de euros, contrariando a tentativa de acordo por parte da autarquia.

A Câmara de Lisboa aprovou um acordo para que ambos os terrenos voltassem à posse do município por 100 milhões de euros pagos à Bragaparques. Mais. Que ambas as partes da permuta desistissem das ações judiciais que envolvem os terrenos da Feira Popular e do Parque Mayer.

Recorde-se que Domingos Névoa chegou a ser condenado ao pagamento de uma multa de cinco mil euros por tentativa de suborno do vereador da autarquia lisboeta, José Sá Fernandes. O Tribunal da Relação viria a absolvê-lo, mas, em janeiro de 2012, o Supremo Tribunal decidia de outra forma: condená-lo a cinco anos de prisão suspensos caso o empresário pagasse 200 mil euros ao Estado.

Este tinha sido o valor que, de acordo com a acusação, o administrador tinha proposto pagar a José Sá Fernandes caso ele desistisse da ação judicial em que contestava a troca de terrenos do Parque Mayer pelos da antiga Feira Popular. Sá Fernandes denunciou os factos em 2006.

Cronologia de um processo:

  • 5 de julho 2005 – Assinada escritura da permuta aprovada em assembleia municipal de Lisboa por maioria, com exceção do CDU. Os terrenos do Parque Mayer, da empresa de Domingos Névoa, a Bragaparques, seriam trocados por parte dos terrenos municipais da antiga Feira Popular.
  • 1 de agosto 2005 – A CDU faz uma participação ao Ministério Público e pede a impugnação da permuta dos terrenos. O anterior presidente da Câmara de Lisboa, Pedro Santana Lopes, pede à Procuradoria-Geral da República e ao Tribunal de Contas para que o processo de hasta pública seja fiscalizado. Também a Inspeção-Geral da Administração do Território foi informada deste processo e decidiu remetê-lo para o tribunal de pequena instância.
  • abril de 2007 – Carmona Rodrigues é constituído arguido por prevaricação de titular de cargo político. Também o vice-presidente Fontão de Carvalho e a vereadora do Urbanismo, Eduarda Napoleão e Remédio Pires, dos serviços jurídicos da câmara. No processo há ainda dois arquitetos arguidos. Depois de Carmona Rodrigues ter sido constituído arguido, vereadores do PSD e os eleitos de todos os partidos da oposição renunciaram aos mandatos, precipitando a queda do executivo.
  • janeiro 2008 – Acusação formal dos seis arguidos, que pedem abertura de instrução, ou seja, que as acusações sejam confirmadas por um juiz.
  • julho 2009 – O juiz de instrução decide levar o caso a julgamento: “atuaram com conhecimento que os seus atos violaram deveres de legalidade substantiva, objetividade e transparência, inerentes aos cargos públicos que desempenharam”, considerou.
  • maio 2010 – Na primeira sessão de julgamento o coletivo de juízes decide que é “inútil” o julgamento de Carmona Rodrigues e outros antigos responsáveis da Câmara de Lisboa porque em causa não está “matéria criminal”, mas somente do foro administrativo. E lembra que decisão final “não coube aos arguidos”, mas à Assembleia Municipal. O Ministério Público recorre da decisão.
  • 2011 -Tribunal da Relação manda repetir julgamento. Os juízes pedem para ser afastados do processo e este e remetido a outro coletivo de juízes.
  • janeiro de 2013 – Inicio do julgamento
  • abril 2013 – Julgamento é anulado porque esteve interrompido mais de 30 dias devido a baixa médica da juíza presidente. Já tinham sido ouvidos como testemunhas um perito em urbanismo e o atual provedor da Santa Casa, Pedro Santana Lopes.
  • novembro 2013 – Julgamento é repetido.
  • julho 2014 – Alegações finais.
  • 27 outubro 2014 – Os seis arguidos são absolvidos dos crimes de prevaricação de titular de cargo político e de abuso de poder. Não se provou que tivessem tido intenção de prejudicar ou beneficiar alguém.