Quando a namorada de Jean-Michel Basquiat o descobre morto em casa, na tarde de 12 de agosto de 1988, já ele é um nome maior das artes plásticas. Kelle Inman encontra-o no chão do quarto, num apartamento do número 57 da Great Jones Street, em Manhattan, detalha a biografia Basquiat: A Quick Killing in Art (1998), da jornalista Phoebe Hoban.

O artista, então com 27 anos, sucumbia a uma overdose de heroína e ascendia a lenda. “Ele perturbou a ideologia do mundo artístico e fez questão de jogar o jogo deles pelas suas próprias regras”, sentenciou Keith Haring. “As criações dele invadiram os museus dos extorsionários e o mundo nunca mais será o mesmo.”

Nova-iorquino, filho de um haitiano e de uma porto-riquenha, Basquiat viu a mãe ser internada em instituições psiquiátricas, abandonou a escola na adolescência e foi expulso de casa pelo pai, que lhe batia com frequência. Viveu na rua por algum tempo. Aos 16 anos, no caldo da contracultura hip-hop nos EUA, assinava tags nas ruas de Manhattan sob o acrónimo SAMO (“same old shit”) – ele e o grafitter Al Diaz.

Não se limitava a arabescos. Criava frases com críticas vigorosas ao mundo artístico e ao consumismo (de que acabaria parte integrante). “Em última análise, Basquiat foi o único artista negro que sobreviveu à classificação como graffiter e encontrou um lugar como pintor negro num mundo das artes dominado por brancos”, lê-se na biografia.

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“Pater”, de 1982, herói paterno, negro, representação tribal ao mesmo tempo ridícula e assustadora, é um símbolo das criações que o artista deixou, feitas da beleza e decadência da vida urbana, discriminação racial e de classe, de fantasmas e dramas pessoais. Ainda pouco estudada, teve a primeira apresentação em 1984 no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMa). Comprada há 12 anos por 1,2 milhões de euros, em leilão da Christie’s de Nova Iorque, faz agora parte do Museu Coleção Berardo.

Também escultor e músico, em tudo autodidata, Basquiat foi influenciado pela pop art e por aquilo a que hoje chamamos arte urbana. Apresentou-se a Andy Warhol em 1980, conta-se que por acaso, num restaurante. Em 1981 inaugurou a primeira exposição individual, que mereceria um artigo de Rene Ricard na revista Artforum, intitulado “The Radiant Child”.

Terá sido a partir daí que o sistema começou a devorar o herói marginal, a ponto de as suas obras – cerca de mil pinturas e dois mil desenhos – atingirem hoje valores astronómicos em leilão. Um trabalho em papel foi vendido em maio por 12,5 milhões de euros, depois de o quadro “Dustheads” (1982) ter alcançado há dois anos os 45 milhões, ombreando com obras de Francis Bacon ou Mondrian.

1. Cores e formas em desordem

“Grandiosidade, heroísmo, rua.” Foi assim que Basquiat descreveu o próprio trabalho, numa entrevista a Henry Geldzahler, curador do Metropolitan Museum e amigo de Warhol. “Pater” é isso: grandiosidade caída na rua. Ilustração do estilo cru do artista, das suas ansiedades profundas, lê-se na descrição que a Sotheby’s publicou por ocasião do leilão de 2003, dando por certa a vertente autobiográfica da obra de Basquiat. A mesma descrição sublinha que as cores e a desordem de formas nesta composição, de pinceladas expressionistas sobre um fundo abstrato, revelam as complexidades da relação entre Basquiat e o pai, Gérard Basquiat, cuja relação foi sempre tumultuosa. Este “Pater”, em pose hieroglífica, é um ídolo masculino sob a forma de tótem. Por isso mesmo, “poderoso e patético”, classifica a Sotheby’s.

2. Rosto de muitos heróis

Em Basquiat, nunca as personagens são humanas por inteiro ou se encontram terminadas, observou a crítica de arte Elizabeth Hess no jornal Village Voice. “As figuras centrais são máscaras, homens fragmentados.” “Pater” não foge à regra. Neste rosto mascarado podem estar, na interpretação da leiloeira, as figura negras masculinas que Basquiat tinha como referências artísticas: músicos como Miles Davis ou Jimmy Hendrix e desportistas como Muhammad Ali. Uma amálgama de homens que representariam as aspirações do jovem artista e os seus medos (heróis como substitutos simbólicos da figura masculina ausente). “O que ele queria no fundo era o afeto do pai e uma reconciliação”, que nunca aconteceu, lê-se na biografia de Phoebe Hoban. A relação com a mãe estará num outro quadro do mesmo ano, “Mater“, geminado com este na temática.

3. Órgãos sexuais e auréola

“Pater” é uma pintura viril, mas contém uma “frieza assexuada”, escreveu Elizabeth Hess. Os órgãos genitais masculinos ao centro da pintura, ao jeito de um desenho infantil, simbolizam a virilidade, mas a auréola por cima da cabeça, irónica ou não (Basquiat recusava uma leitura humorística do seu trabalho), pode representar a frieza sexual, porque os santos são ascetas. A mesma interpretação, por outras palavras, aparece no catálogo da Sotheby’s: o homem totémico no centro do quadro é “violador e vítima, opressor e oprimido, vencedor e vencido”. Vive de ambiguidade e extremos. Pénis e testículos versus a auréola serão disso testemunho.

4. Guitarra ou linha de comboio?

Já se disse que os genitais nesta pintura fazem lembrar os desenhos das crianças. Em rigor, são resultado da linguagem visual da rua, como os grafitti na parede de uma casa de banho. É esse o elemento mais subversivo da composição, de acordo a descrição da leiloeira. Outro aspeto da rua: a linha de comboio, parte integrante da paisagem citadina, vem evocada à direita do rosto. Pode também ser a representação de uma guitarra – Basquiat chegou a ter uma banda rock, Test Pattern, mais tarde chamada Gray.

Título: “Pater”
Autor: Jean-Michel Basquiat (1960-1988)
Data: 1982
Técnica: acrílico, óleo e marcadores sobre tela
Dimensões (cm): 213×183
Coleção: Museu Coleção Berardo (Centro Cultural de Belém, Lisboa)