É tudo uma questão de espaço. Ao pé de “Quarto”, do irlandês Lenny Abrahamson (“Frank”), os chamados “filmes de câmara” são indutores de agorafobia. “Quarto” não é um “huis clos”, é um “huis trés, trés clos”. Joy (Brie Larson), uma rapariga de 24 anos, mora com o filho, Jack (Jacob Tremblay), de 5 anos, no cochicho de um quartinho escuro e encardido, sem janelas, só com uma clarabóia e equipado com o mínimo essencial para se sobreviver. Não é que Joy seja uma mãe solteira pobre, desempregada, sem eira nem beira, e viva naquele quarto deprimente por não ter outra escolha. Joy e Jack vivem ali porque Joy foi raptada ainda adolescente por um homem que a violou e depois fechou entre aquelas quatro sinistras paredes, para ter o seu filho e lá ficar com ele, absolutamente interditos do mundo exterior. “Quarto”, não é um drama neo-realejo de mãe e filho ao desamparo: é um filme de terror no mundo real.

[Veja o trailer de “Quarto”]

O Quarto (com maiúscula) é tudo o que Jack conhece, é o seu pequeno, pequeníssimo mundo. Tudo o resto que sabe do que há lá fora é o que vê numa televisão decrépita, ou o que a mãe lhe conta, mas Jack pensa que só o Quarto é real e o resto do mundo é uma “coisa” que vive dentro da televisão. Joy faz o possível para aguentar a sanidade e ser uma mãe normal, manter o filho seguro, equilibrado e entretido, em condições totalmente anormais, praticamente impossíveis. Quando o seu raptor, a quem mãe e filho chamam Old Nick (uma das muitas expressões inglesas para nomear o diabo), vem ao Quarto para ter relações sexuais com Joy, ela fecha Jack no armário e espera que a criança não perceba o que se está a passar. O Quarto de Joy e Jack é o simulacro perverso e asfixiante de uma casa verdadeira, o inverso infernal e claustrofóbico de um lar normal. E Joy sabe que não se pode ir abaixo, que tem de fugir de lá com Jack. E se ela não conseguir, ao menos que o menino consiga.

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[Veja a entrevista com o realizador e a argumentista]

Histórias reais como as de Joseph Fritzl ou de Natascha Kampusch tornam “Quarto” um filme totalmente verosímil. Mas ele também o seria se estes casos nunca tivessem acontecido ou sido conhecidos, tão incomodamente convincente, tão profundamente pungente e tão pormenorizada é a forma como Abrahamson encena a situação e a filma sem dar um passo visual ou dramático em falso. E como Brie Larson e Jacob Tremblay, os dois para lá de estupendos, interpretam Joy e Jack, a mãe que faz das tripas coração para criar um pequeno mundo suportável para o filho e tenta que ele não se aperceba do horror que estão ambos a viver, e o rapazinho cuja percepção da realidade se acomodou ao único, apertado, ensombrado e triste espaço em que nasceu, mas que com a ajuda da mãe conseguiu criar nele um mini-mundo coerente. Ambos estão ligados por uma relação que consegue sobreviver na mais medonha das adversidades.

[Veja a entrevista com Brie Larson]

O segundo acto de “Quarto” (o filme foi rodado no Canadá), quando Joy e Jack conseguem libertar-se e têm que encarar o mundo que ela não vê há cinco intermináveis anos, e ele nunca pensou que existisse, não consegue — nem nunca conseguiria — estar à altura do primeiro. Mas embora o filme perca peso cinematográfico, tensão dramática e pressão emocional, o argumento, adaptado por Emma Donoghue do seu livro homónimo e a realização de Lenny Abrahamson com ele, mais a presença de actores como Joan Allen e William H. Macy nos papéis de apoio, impedem que a história se ponha a coleccionar banalidades piedosas de “therapy movie”, e que as personagens de Joy e Jack se tornem massa mole para a confecção de um melodrama fungado.

[Veja a entrevista com Jacob Tremblay]

Pelo contrário, a mesma verosimilhança que presidia à existência desgraçadamente encarcerada de mãe e filho, prolonga-se agora na gradual habituação de ambos ao mundo do sol, da chuva, do ar puro e das outras pessoas. Dolorosa para Joy porque já quase inconcebível e difícil de lidar, e lenta para Jack porque significa, à medida que o acanhado mundo do Quarto fica para trás, a descoberta de outro mundo completamente novo, este de possibilidades infinitas, gente diversa e horizontes a perder de vista. Brie Larson ganhou o Globo de Ouro de Melhor Actriz Dramática, e está candidata ao Óscar de Melhor Actriz, tendo “Quarto” mais três nomeações: Melhor Filme, Realizador e Argumento Adaptado. Será totalmente merecido se pelo menos ela fizer o bis.

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