Título: “Desnorte”
Autora: Inês Pedrosa
Editora: Dom Quixote
Páginas: 194

desnorte

A citação que Inês Pedrosa escolhe para «Voz», o primeiro conto do seu mais recente livro, Desnorte, é de Agustina Bessa-Luís e assume-se programática: «Cada voz está só e é única e é contra o coração dos outros, vertiginosamente, que ela ressoa» (p. 11). Porém, nem neste conto nem nos restantes essa promessa é cumprida: as vozes que ouvimos não são individuais nem ressoam porque em nenhum momento adquirem densidade. É impossível estabelecer a empatia requerida para nos interessarmos pelas personagens visto que os elementos que Pedrosa nos dá não são suficientes para lhes imputarmos um carácter. Mesmo conseguindo reconhecer que em cada um dos contos assistimos a um momento decisivo na vida das personagens que os compõem, não há como conferir importância ao que lhes acontece.

A voz desse primeiro conto apresenta-se na primeira pessoa, falando para um destinatário ausente. O registo quer-se confessional, mas o conteúdo das confissões falha na particularidade e, logo, na intimidade: «Eu também podia ser pintora, sabes? Tinha o dom. Tinha o olhar. Tinha o dedo. Tinha demasiados dedos. Ainda tenho. Se eu quisesse, pintava. Ou escrevia. Ou filmava. Ou esculpia. Ou fotografava. Nunca soube querer muito uma só coisa» (pp. 14-16). Esta enumeração de potencialidades não concretizadas, que é também uma enumeração de lugares-comuns sem substância, reaparece noutros contos: em «Suzana», «As curvas do tempo», «A posse», «Dar à luz» e «As mais altas coisas». Quase todas as personagens têm entre os quarenta e os sessenta anos de idade e a sua situação é construída com as mesmas temáticas: o olhar para aquilo que não se foi e que se imagina que se poderia ter sido, o cinismo e o sarcasmo com que se encaram as emoções e as relações passadas, a esperança de que a situação actual não seja irremediável. Ao contrário do que Inês Pedrosa almeja, estas semelhanças não sugerem que nos encontramos perante pessoas que vivem à esquina umas das outras sem nunca se cruzarem, como a autora afirmou em entrevista à Lusa aquando da publicação do livro; estamos antes a assistir a um processo que é parafraseado de forma exímia também logo neste primeiro conto: «Reproduzo-me sem sequer ter ainda produzido a minha própria identidade» (p. 14).

Não se trata apenas de termos vozes sem nomes, narradores na primeira pessoa que não são nomeados, que sabemos apenas serem homens ou mulheres; porque os nomes aparecem, tal como aparecem elementos biográficos que pretendem dar conta do que se passou na vida daquela personagem até ao momento em que nos deparamos com ela. No conto homónimo, «Desnorte», Natércia relata a David alguns pormenores da sua vida até ali, daquilo que considera serem os momentos mais marcantes e, supomos, os que justificam a sua decisão em juntar-se a ele para um suicídio a dois. O relato é curto e surge em catadupa (pp. 82-85). Mas uma lista de acontecimentos não dá necessariamente conta de uma vida e, uma vez que Pedrosa utiliza o mesmo método nos outros contos, promove a reprodução de uma economia estrutural e de conteúdo que não se salva pelas particularidades de cada conto, ou de cada voz.

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As particularidades são, aliás, escassas. Apesar da profusão de narradores, falta dotá-los de uma individualidade que permitiria a proximidade que Inês Pedrosa ambiciona. A voz de «Voz» confunde-se com a voz de «Canário» e ambas parecem poder ser a voz de Suzana, do conto homónimo. Este último é um dos contos com mais potencial do livro, não fossem as trivialidades que qualificam a personagem que lhe dá título. No final, o narrador admite que «eu é que não mereço ter inventado a Suzana» (p. 66), mas a sua invenção é débil: uma mulher de sessenta anos que age como uma de quarenta (tal como a mulher de «Canário» tem quarentas e fala com o despeito de uma rapariga de vinte), sobre a qual ele pensa poder ter-se enganado durante metade da vida (p. 56).

Também Inês Pedrosa pode estar enganada em relação ao conto que é de facto «a bússola» deste livro: a autora, na entrevista já referida, aponta para «Desnorte» como aquele a que devemos recorrer enquanto guia; no entanto, é «A salvação da Europa» a chave para a estrutura formal de cada um dos contos de Desnorte. Se, numa primeira leitura, este parece desfasado do ambiente dos restantes, é aqui que encontramos a explicação para o final de «Mar aberto», para a transformação do narrador de «As curvas do tempo» e, mais do que isso, para as opções de Inês Pedrosa no que a finais de contos diz respeito.

«A salvação da Europa» reúne várias personagens ficcionais, desde Emma Bovary a Quina (a sibila de Agustina Bessa-Luís), passando pelo Principezinho e Ariel, a sereia que trocou a voz por pernas humanas. Reunidas num voo sob ameaça terrorista, a salvação destas personagens e a resolução deste conto assenta num mecanismo deus ex-machina: a Rainha das Neves, uma das passageiras, cuja presença é revelada apenas no final, «congelou o fundamentalista louro» a pedido de Quina (p. 165). A perplexidade que este conto suscita é da mesma natureza da de «Mar aberto», no momento em que a filha adolescente de Gabriel Freixo aparece «de dentro da trovoada» (p. 40) e fala com o pai, e ainda da que está presente em «As curvas do tempo», quando um homem de cinquenta anos volta a ter quinze só por força de o desejar, uma operação que se dá «de repente» (p. 24), sem explicações adicionais, quando o registo adoptado nestes dois contos se situava, até aos momentos apontados, no domínio da plausibilidade.

É este carácter súbito das transições entre acontecimentos que confunde e deixa o leitor, por assim dizer, desnorteado. O desnorteamento não se dá apenas pelo inusitado das situações descritas, mas principalmente por nada as fazer esperar, por nada no conto as anunciar, quer no que diz respeito ao estilo quer ao tom escolhidos por Pedrosa. Fica-se com a sensação de se estar a ser traído, impressão reforçada pelas elipses temporais como a utilizada em «Desnorte», quando no último parágrafo somos meramente informados das consequências dos acontecimentos que acabaram de nos ser contados. Este é, aliás, o mecanismo mais querido a Pedrosa para terminar estes contos: de forma breve, abrupta, informativa. É também a este modo de omissão que se deve a debilidade das histórias e das personagens; aquilo que nos falta saber não é pressuposto pelo que nos é dado e, logo, o final não requalifica positivamente tudo o que está para trás: resulta somente numa confirmação de que apenas um vazio sustenta a situação que estava a tentar ser criada, da qual nada se segue.

A estrutura de «A salvação da Europa» funciona precisamente porque aquelas são personagens que conhecemos; o conto pode ser breve e omisso em relação a certos elementos porque nós possuímos informações sobre aquelas pessoas, o que não acontece com as personagens de Desnorte. O mesmo se passa em «Frank esperando Amália», um exercício na primeira pessoa onde Frank Sinatra, a partir do céu, conta partes da sua vida dirigindo-se a Amália Rodrigues, no dia do funeral desta, e aguarda que a fadista se junte a dele. Neste conto, a voz de Sinatra ressoa em nós porque podemos recuperar da nossa memória certos elementos e acontecimentos que nos estão a ser descritos; é isso que torna esta voz convincente: é uma voz à qual conseguimos imputar uma vida. Da voz que Pedrosa cria para as outras personagens nenhum rosto surge.

As ilustrações de Gilson Lopes que acompanham os contos contribuem para o aumento da sensação de desconfiança à medida que a leitura de Desnorte progride. Ao estilo e ao tom dos contos que nos fazem questionar da seriedade do que estamos a ler, junta-se mais um elemento do qual gostávamos de fazer sentido e que gostávamos que nos ajudasse a fazer sentido do que lemos, mas que ao invés disso promove um maior desinteresse. Não se dá o caso de não percebermos a ligação entre ilustrações e contos; trata-se antes de as primeiras nos tirarem qualquer esperança de levarmos a sério os últimos.

A esperança de que um livro possa mudar o mundo, ou pelo menos uma vida, é acalentada pelos escritores frustrados ou mal-sucedidos que vão aparecendo em Desnorte; contudo, é Cecília, a organizadora do festival literário relatado em «A páginas tantas», que acaba por consegui-lo: «Aquela reunião anual de escritores de várias partes do mundo era a obra dela, o seu livro – um romance clássico e cubista, uma saga em vários volumes, de contornos descabeladamente modernistas. (…) Provocara encontros que tinham alterado vidas» (p. 120). A descrição que Cecília faz do festival e do seu trabalho bem poderia ser uma descrição do que Inês Pedrosa pretende fazer em Desnorte; enquanto neste conto temos várias vinhetas da chegada dos escritores a quartos de hotel contíguos, relembrando a última vez que tinham estado naquele mesmo sítio (catorze anos antes, diz-se), no livro de Pedrosa temos a reunião dos contos que o compõem e das personagens que neles aparecem. É esta estrutura que tanto Cecília como Pedrosa apelidam de «cubista» (consultar novamente a entrevista mencionada), o que implica que talvez a qualificação «descabeladamente modernista» seja a justificação para as perplexidades que têm vindo a ser apontadas.

A dúvida que persiste é a da intenção de Pedrosa. Podemos imaginar que a sensação de desnorteamento causada no leitor é propositada e que foi habilmente construída. No entanto, aquilo que Pedrosa nos dá neste livro não é suficiente para criar essa convicção, por falhar em atribuir às personagens uma voz própria, concedendo-lhes apenas uma voz genérica. Chegados ao final de «Dar à luz», quando se lê que Camilo Caça «uma vez mais, esperaria que a luz singular das suas palavras cintilasse, por fim, sobre a cegueira universal» (p. 132), não ficamos certos de existir ou não ironia aqui; para a identificarmos, precisaríamos de conhecer a pessoa que fala, de lhe reconhecer um tom. Não tendo à nossa disposição aquilo que nos permitiria fazê-lo, torna-se mais difícil empatizar com o que nos é dito: confiar no que nos diz alguém que não conhecemos implica um salto de fé que raramente damos de ânimo leve.