“O Exorcista”, de William Friedkin, é um dos meus filmes favoritos de sempre. Mas foi preciso revê-lo, já adulta, para ultrapassar a ideia de que se tratava apenas de um “filme de terror” e conseguir destrinçar aquilo que é, na verdade, uma reflexão sobre o bem, o mal, a culpa, a fé. Falar grosso, fazer contorcionismo ou vomitar a jato já eu vi em muitas ocasiões — sobretudo em espaços de diversão noturna — e é o que menos interessa.
Tantas apropriações do Diabo e seus derivados têm surgido ultimamente na cultura popular — muitas vezes, desta passagem da banda desenhada para a televisão –, que nos resta saber separar o folclore inócuo do entretenimento de qualidade.
“Outcast”, do mesmo argumentista de “The Walking Dead” (nos livros e no ecrã), foi promovido com todo o estardalhaço que essa popular referência implica, mas a possibilidade de angariar semelhante culto é bastante questionável. O primeiro episódio é, do início ao fim, um cliché muito aborrecido no que à possessão diz respeito (falar grosso, contorcionismo, vomitar a jato, está lá tudo) e a premissa enfraquece ao levar-se demasiado a sério, num ambiente de entediante normalidade. Em poucas palavras: um tipo capaz de expulsar demónios à pancada é perseguido ao longo da vida pelos mesmos. É verdade que isto implica, por exemplo, que o vejamos a arrear forte e feio numa criancinha possuída — mas nada impressiona quem viu a adolescente Linda Blair a simular penetração com um crucifixo enquanto diz “let Jesus fuck you” em “O Exorcista”, de 1973.
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O folclore não serve nem como chamariz para adolescentes impressionáveis. Além disso, o convívio entre o sobrenatural e o mundano requer um certo rasgo que “Outcast” não demonstra, pelo menos ao primeiro episódio. A magia desse encontro está no equilíbrio entre uma coerência discreta e uma imaginação desbragada, mas esta série parece não investir muito em nenhuma das duas. Limita-se a reuni-las numa analogia de psicanálise barata: os demónios são, pois claro, os traumas de infância do protagonista. Olha, nunca tinha ouvido esta.
“Outcast” parece estar condenado ao mesmo insucesso de “Constantine”, mais uma história de anjos e demónios adaptada da novela gráfica Hellblazer (criação original de Alan Moore) que não passou da primeira temporada. Aguarda-se agora a estreia em Portugal da adaptação de “Preacher”, a obra-prima de BD de Garth Ennis e Steve Dillon, que chegou há semanas ao canal norte-americano AMC e que conta a saga de um pastor possuído pelo fruto de uma relação ilícita entre um anjo e um demónio, dotado por isso de um poder semelhante ao de Deus, nem sempre usado da forma mais ortodoxa.
“Tudo vive porque se opõe a qualquer coisa. Eu sou aquilo a que tudo se opõe”, diz o Diabo de Fernando Pessoa em A Hora do Diabo. Tendo em conta como anda pelas ruas da amargura na cultura popular, estará a humanidade a fazer-lhe pouca oposição?
Ana Markl é guionista, apresentadora no Canal Q e animadora de rádio na Antena 3