No centro da sala estão cinco cientistas. Juntos planeiam criar um ser humano aperfeiçoado. Estamos num futuro incerto, o grupo não sabe se há mais pessoas vivas ou se são os últimos habitantes humanos do planeta. Uma das mulheres carrega na barriga o resultado do seu trabalho – o futuro da espécie. Este é o ponto de partida de O Nosso Desporto Preferido – Presente, a primeira peça de uma tetralogia criada por Gonçalo Waddington, que se estreia esta quinta-feira, 9, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, no âmbito do Festival Alkantara, ficando em cena até sábado 11. Carla Maciel, Romeu Runa, Pedro Gil, Tonan Quito e Crista Alfaiate dão vida a este conjunto de cientistas meio-loucos que, às tantas, parecem protagonistas de um Big Brother. A viver e a trabalhar juntos e isolados há bastante tempo, já se enrolaram uns com os outros e o sexo torna-se tema obrigatório de conversa, motor de guerras e discussões. Até que o líder do grupo decide: acabou-se qualquer prática sexual entre eles. Até porque o caminho para a evolução da espécie em que trabalham já está escolhido: o novo ser humano não terá necessidades básicas como a alimentação e a reprodução. Depois de Albertine, o Continente Celeste Gonçalo Waddington volta à encenação e à dramaturgia num projeto que se estende até 2018.
“Presente” é a primeira peça de uma tetralogia, “O Nosso Desporto Preferido”. Como surgiu este projeto?
Inicialmente foi pensado para ser tudo apresentado ao mesmo tempo. Se fosse uma carreira de três ou quatro semanas, faríamos a primeira parte, a segunda e a terceira ao longo da semana e, no fim-de-semana, faríamos as quatro. Como não tenho uma estrutura, trabalho com quem me dá dinheiro para as co-produções e com apoios pontuais da DG-Artes, acabei por não ter tempo nem dinheiro para o projeto. Mas fui convidado para integrar o Festival Alkantara. E portanto faço a primeira parte agora, a segunda estreará em final de Abril de 2017 no São Luiz, a terceira abre a temporada aqui do TNDMII em Setembro de 2017. Em 2018 faremos a quarta parte no Alkantara.
Esta primeira peça coloca em palco um grupo de cientistas, num futuro imaginário, que não sabem sequer se há mais gente na terra, e que estão a criar o ser humano do futuro…
Há três livros que são bíblias para esta peça: o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, em que as pessoas já não se reproduzem, são reproduzidas, e têm um sistema aperfeiçoadíssimo de tudo e mais alguma coisa; e dois livros do Michel Houellebecq, As Partículas Elementares e A Possibilidade de Uma Ilha. Em As Partículas Elementares um cientista deixa um projeto sobre como intervir, cientificamente, para aperfeiçoar o ser humano, com um sistema digestivo simplificado, uma capacidade física incrível. Em A Possibilidade de Uma Ilha há clonagem, são perfeitos mas vivem numa total chatice, a vida deles não é interessante, não tem paixão, não tem defeito. Nesta peça, está a tentativa de criar esse novo ser humano, aperfeiçoado. Mas enquanto eles estão a discutir só vemos imperfeições. É um grupo que trabalha há muito tempo fechado no mesmo sítio. Já não se conseguem aturar. Já andaram todos uns com os outros, há ali tensões, fronteiras que se apagaram ou ficaram invisíveis, como a fronteira do corpo, da sexualidade.
Como diz uma das personagens, este é um simpósio de pseudocientistas que só falam sobre sexo.
É um simpósio de cientistas, a puxar ao Platão, muito pomposos na linguagem mas a falar das coisas mais básicas do ser humano. E um deles diz, com uma certa ironia, que este é um simpósio de uns pseudocientistas que só falam de badalhoquices. São o mais humanos possível e estão a tentar imaginar o futuro da civilização.
Escrever e encenar cria mais ansiedade. Quando vais mostrar o trabalho é como mostrar o teu filho, não é bom se alguém diz que tem os olhos tortos. Mas gosto de pensar a peça de raiz.”
Há uma grande preocupação com a linguagem. Mesmo a conversa mais escatológica é feita com a maior elevação.
Sim, sobretudo na personagem do Pedro Gil. A preocupação dele está no futuro da linguagem. O que é análogo ao processo científico que se passa ali: porque estamos a intervir na seleção natural? Também a linguagem passa por um processo de seleção natural. Há palavras que vão vencendo, sobrevivendo, enquanto outras caem em desuso. No outro dia li um artigo de uns cientistas que parece que tiveram luz verde para recriar o genoma humano sinteticamente. Muitos levantam objeções porque isso abre imediatamente caminho a aperfeiçoamentos no ser humano que podem conduzir à eugenia. Que intervenção devemos ter? Limitamo-nos a existir ou intervimos, seja no processo científico ligado ao ser humano como da linguagem? Ele às tantas diz que sem linguagem não havia ciência, não havia pintura, nada. E que se não nos preocuparmos com isso, com mantermos vivas as memórias da antiguidade clássica, da poesia, da pintura, de tudo o que se fez até agora, então tudo irá acabar. Ao que os outros respondem que isso é um processo civilizacional no qual não devem interferir. Se o tema da peça é o projeto científico, o que vem ao de cima é a linguagem.
Em que vão consistir as próximas partes da tetralogia?
A segunda parte chamar-se-á Futuro Distante e será tentar imaginar o resultado daquela experiência: pessoas muito poderosas fisicamente, com um organismo muito simplificado mas será uma seca viver neste planeta assim. A terceira parte chama-se Futuro Próximo e tem as mesmas personagens da primeira parte, já bastante velhas, numa espécie de casa de repouso high tech e que acham que a vida toda dedicada a um projeto científico caiu em saco roto. É um bocado o que acontece nas artes. Há pouco tempo li um artigo engraçado sobre o Joyce, contava como nem o Dubliners nem O Retrato do Artista Quando Jovem foram bem recebidos pelo leitores ou pela crítica. Eles também não têm noção de que o seu trabalho irá dar frutos. A quarta parte, chamada Génese, terá uma personagem que testemunhou todas as fases civilizacionais. Está na génese do projeto, na génese do novo ser humano que vem aí. E é alguém que estando de fora tem uma perspectiva diferente e faz uma ponte entre a criação científica e a criação artística.
Começou a encenar em 2011, com Romersholm, de Ibsen. Na altura disse que queria encenar para poder representar personagens que lhe interessavam…
E as pessoas mudam. É uma evolução. Trabalho muito em teatro, é o que gosto de fazer. Há projetos de televisão de que gosto, tal como gosto muito de cinema, mas o teatro é uma coisa presente quase todos os dias do ano. Como ator a minha visão é sempre a história, estou preocupado com tudo o que se está a passar, não é uma coisa afunilada para mim. Ao encenar o Romersholm percebi que encenando a peça, posso contar a história como a vejo. Entretanto, tinha tido uma experiência de escrita com O Que Se Leva Desta Vida, com o Tiago Rodrigues, em 2009. Depois em Albertine, o Continente Celeste, ia ser outra pessoa a escrever a peça mas quando sugeri o Proust ele disse-me que não se imaginava a fazê-lo e sugeriu que escrevesse eu. Escrever e encenar cria mais ansiedade. Quando vais mostrar o trabalho é como mostrar o teu filho, não é bom se alguém diz que tem os olhos tortos. Mas gosto de pensar a peça de raiz. Já escrevia para cinema, para televisão, mas o teatro é um género literário. Há o Ibsen, há o Shakespeare. Agora já me sinto à vontade.
E nesta peça está completamente atrás do palco. É difícil não representar?
Fiz o Albertine porque substituí o Tiago Rodrigues, que veio para aqui [para diretor do TNDMII]. Nesta estive quase para entrar mas eram já muitos atores, tinha que ser muito rigoroso, há muito texto, preferi ficar de fora. Eventualmente entrarei na segunda parte. A seguir vou fazer uma peça como ator aqui no TDNMII com o Tiago Guedes. E chamo-lhe um figo. É bom voltar a ser dirigido.
É uma espécie de descanso?
Sim. É outro chip. É uma respiração. Tenho uma responsabilidade muito grande como ator mas encenar, escrever… é diferente. Sentes-te até responsável pelo que os atores estão a fazer. Ainda não percebi bem como vou casar as duas coisas.
Tenho conseguido felizmente fazer os de teatro e os de cinema mas televisão… Há muita gente. Os projetos existem. Mas é preciso alguém que diga sim.”
Fez em televisão com Bruno Nogueira e Tiago Guedes a série “Odisseia”, em 2013. Um humor muito diferente daquilo que até então tinha sido feito. Resultou? É um experiência a repetir?
Foi uma odisseia. Nunca não resultou porque aquilo que nós previmos de cancelar a própria série — era suposto serem 13 episódios e nós dizemos que fomos cortados para 8 – aconteceu. Puseram-nos ao domingo, tínhamos pedido para ser à quarta ou à quinta-feira. Na televisão foi um flop mas, na net foi muito falado e ainda se fala no assunto. Antes de estrear, na RTP disseram que iam pensar numa segunda ou terceira temporada mas depois disseram logo ‘Nem sonhem’. Tínhamos um projeto para uma segunda temporada, foi um balde de água fria, achávamos era uma cena nova, que ia resultar. Acabou-se. Voltar à televisão? Há alguns projetos, vamos ver se passam no crivo da malta que manda. São só projetos. Tenho conseguido felizmente fazer os de teatro e os de cinema mas televisão… Há muita gente. Os projetos existem. Mas é preciso alguém que diga sim.
Nesse ano protagonizou, com a sua mulher, Carla Maciel, a peça Macbain, escrita por Gerardjan Rijnders. Causaram algum escândalo, algumas pessoas disseram que a peça era quase pornográfica. Aqui não há cenas de sexo mas a linguagem também pode ferir susceptibilidades… Ainda somos um país muito púdico?
Pois. Leiam Luiz Pacheco, leiam Aristófanes. São palavras. Não devem ser vistas isoladas mas no contexto da peça. No Macbain quase não há didascálias: “Enter the King. Enter the Queen. The sound of Centrifuge. They Fuck”. Não foi por acaso que ele escreveu aquilo para um casal que vai fazer um casal. A facilidade de contacto físico é muito maior. Mas não vejo nada assim de tão chocante. Li comentários no Facebook incríveis. Se aquilo chocava por uma questão narrativa, ótimo. Mas se era por estarem em palco duas pessoas a fingir que praticam o coito… É um bocado estranho. Como quando, no São Luiz, uma data de gente do Inatel foi ver O que Se Leva Desta Vida. Quem comprou os bilhetes disse: é uma peça portuguesa sobre culinária, chamem os velhinhos. Mas era uma peça cheia de caralhadas. Houve pessoas a dizer no fim: é por isso que as crianças andam na droga.
Chegaram a fazer a peça toda?
Saltámos uma parte, depois continuámos até ao fim. O mais incrível é que no fim agradecemos e houve quem batesse palmas. Primeiro insultaram-nos, chamaram-nos de porcos, badalhocos. A indignação coletiva é muito fácil. Uma centelha pode acender uma bomba. Mas o problema não foi deles. Uma coisa é uma pessoa vir ao engano a uma peça. Ou a um filme. Dez minutos depois sai. Naquele caso foram camionetas e camionetas que foram buscar pessoas a vários sítios do país. Começámos com uma hora de atraso, faltavam autocarros. As pessoas falavam muito, e muito alto, ao telemóvel. Foi um problema comunicação.
Até sábado, 11, às 21h00; bilhetes entre os 5 e os 8 euros