Título: “TAP Portugal: imagem de um povo. Identidade e design da companhia aérea nacional”
Organizadores: Bárbara Coutinho e João Paulo Cotrim
Editora: Arranha-Céus; MUDE e TAP
Apoio: Turismo de Portugal
Páginas: 318, ilustradas e bilingues
Preço: 38 €

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Criado a partir da colecção de um privado esclarecido, Francisco Capelo — convém lembrar estas “minudências” em tempos de estatismo —, e instalado na antiga sede de um banco que é em si mesma um objecto de grande qualidade estética (e escapou de se tornar um hotel…), o Museu do Design e da Moda, em Lisboa, tem tido grande protagonismo na pedagogia, exibição e investigação do design, funcionando o seu belo auditório também como palco para lançamentos de livros, debates e conferências.

Ao longo destes últimos oito anos, a directora Bárbara Coutinho e curadores seus convidados têm demonstrado em exposições temporárias quanto havia e ainda há por conhecer ou reconhecer em domínios de profunda mas subtil influência na vida quotidiana, desde a obra de criadores destacados como José Espinho e João Garcia ao mobiliário da administração pública desde 1934, do vanguardismo da indústria de moldes na Marinha Grande ao design anónimo recolhido em feiras da ladra, mas nenhuma outra como a exposição dedicada aos setenta anos dos Transportes Aéreos Portugueses — e não me refiro ao facto de nada poder ser comparável a algo presente em terra e no ar, ao mesmo tempo…

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Além da fortíssima carga simbólica de uma companhia aérea nacional (sobretudo nos primórdios da aviação comercial, em que a autonomia aeronáutica dum país chegou a ser equiparada ao seu ingresso na Organização das Nações Unidas…), tudo na sua instalação e actividade exprime e transmite design, desde a pintura das aeronaves ao fardamento das tripulações, dos balcões comerciais aos bilhetes de viagem, das cadeiras individuais aos tabuleiros das refeições, da publicidade à revista de bordo, dos acessórios ao maço de cigarros com o seu nome, ou até ao antiquado calendário de bolso. Pela sua própria natureza, uma companhia aérea é uma marca por excelência, um ícone em movimento. E este é, por isso, um daqueles casos exemplares de fusão de criações estéticas sectoriais que interessam sobremaneira a um museu disposto a explicar e dar a conhecer o benefício da “obra global” dum design transversal, mais impactante.

A imagem da história

A mostra histórica de que ficou memória perene neste muito recomendável catálogo-livro foi sugerida por Paula Ribeiro, directora da revista de bordo Up, e implicou o próprio museu da companhia áerea, que já em 2005 havia mostrado o seu espólio no pavilhão negro do Museu da Cidade, no Campo Grande, num projecto que envolveu o extinto Centro Português de Design. Desde então muita coisa mudou: a companhia, claro (e bastante, e nem sempre bem); e novos estudos históricos trouxeram consideráveis achegas ao nosso conhecimento sobre artes decorativas, arquitectura, moda, etc. do século passado, a que este livro consegue juntar algumas novidades, até para quem se julgasse informado sobre quem, como e quando colaborou com a TAP desde a sua fundação em 1945. Pedro Gentil-Homem, que dedicou ao design na companhia o seu doutoramento em 2014, faz uma síntese do seu trabalho ainda inédito, mas o livro conta com outras colaborações de peso, escolhidas a bom dedo, como as de João Paulo Martins, Ana Tostões e Madalena Braz Teixeira, além da própria comissária Bárbara Coutinho, do director de comunicação e relações públicas da companhia, António Monteiro, do publicitário Carlos Coelho, do designer Henrique Cayatte e da coordenadora do Museu da TAP, Adelina Arezes. O design do livro é de André Cândido e Jorge Silva, do atelier silvadesigners.

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Tal como sucedera com a bem-sucedida Exposição do Mundo Português, cinco anos antes, também à criação do aeroporto da Portela e ao desenvolvimento da nossa companhia aérea foram chamados os profissionais mais qualificados, mesmo quando — e era comum — as suas convicções políticas divergiam notoriamente do regime. Ao arquitecto Francisco Keil do Amaral (1910-75), distinto colaborador de Duarte Pacheco na câmara municipal de Lisboa, criador de equipamentos de lazer em Monsanto, Campo Grande e Parque Eduardo VII — “ligado de alma e coração à política oposicionista”, como se lhe referiu Mário Soares em 1993, e autor de um livro saído pela Cosmos do seu amigo Bento de Jesus Caraça, preso pela PIDE em 1946 —, foi atribuída a concepção da aerogare da Portela, e anos depois a primeira loja no Marquês de Pombal e as delegações em Madrid, Lourenço Marques e Rio de Janeiro. Eduardo Anahory, que trabalhou para Belém e em 1941 foi viver para o Brasil e de lá perguntou em carta a um amigo escritor se “o nosso patrão e Senhor” tinha ido desta para melhor, desenharia em 1953 um divertido anúncio da companhia aérea (p. 185). Mais de dez anos depois, ao fotógrafo, designer e exilado Fernando Lemos, que tinha tido reconhecimento por excelente colaboração plástica na imprensa de São Paulo — e assinou várias capas para a editora anti-salazarista Felman-Rego, uma das quais retratando em 1962 o oposicionista capitão Sarmento Pimentel de espada ao ombro para as suas Memórias (aliás, o primeiro best-seller editorial do pós-25 de Abril) —, foi encomendado um cartão para tapeçaria de Portalegre de grandes dimensões para destaque decorativo da primeira loja na capital paulista (pp. 266-67). Também Maria Keil, que teve quadro apreendido pela polícia política numa exposição em 1947, seria chamada a colaborar, em 1953-55 e em 1967-69, com azulejos para Paris e Luanda, e tapeçarias para Copenhaga (pp. 256, 258-59), Madrid e Nova Iorque. Em 1964, José Fonseca e Costa, preso político em 1957, fez Papagaio, um anúncio comercial para televisão (pp. 256, 258-59), pouco conhecido e referenciado. A Orlando da Costa, militante comunista desde 1954, e à sua agência de publicidade Marca foram confiadas várias campanhas antes de 1974.

De resto, os formidáveis painéis de azulejos vidrados de Querubim Lapa, incrustados em edifícios de uma capital em expansão física, também chegaram à loja de Copenhaga (uma vista de Lisboa a partir do rio na parede de fundo, e cinco pequenas peças cerâmicas) e às aerogares de Funchal e Ponta Delgada — exibindo um país que se afastara de formas e modos ultrapassados ou retrógrados e queria estar a par de movimentos de renovação da estética urbana em voga na Europa. A “grande transparência” das lojas concebidas por Keil do Amaral nos anos 1950 são também “montras de um país que se começava a internacionalizar” (Ana Tostões, p. 120). Melhor ainda: a mini-saia fez parte do uniforme feminino a partir de 1960-70, permitindo à assistente de bordo sex symbol afirmar “a liberdade das suas opções pessoais e profissionais” (Madalena Braz Teixeira, p. 100). Depois, veio a era Daciano da Costa, com os seus “exigentes padrões de referência” na actualização da arquitectura e mobiliário das lojas, fazendo-as respirar “prosperidade”, “segurança, capacidade e dinamismo” (João Paulo Martins, pp. 129, 130), e depois explodindo em cor, nos recipientes descartáveis e nas batas de serviço no Spring Service de 1976.

Da Portela à Quinta Avenida

Azulejos antigos, tapeçaria contemporânea e navegações quinhentistas como antecedente nobre da extraordinária aventura espacial em curso foram trunfos simultâneos sabiamente utilizados na promoção comercial além-fronteiras duma companhia que iniciou rotas aéreas com três aparelhos adquiridos ao abundante refugo militar norte-americano do pós-guerra, para abreviar distâncias entre parcelas de um território dito imperial afastadas por longas jornadas marítimas e chegar a pontos do globo a que nos ligavam outros laços históricos ou um elevado contingente de emigração, como o Brasil e a América do Norte. Inversamente, aos poucos a TAP potenciou a captação de procura turística para este pequeno país de muito sol e mar na finisterra da Europa. A nossa espantosa e condensada diversidade cultural também foi exibida em bonecos-brinde de Maria Helena Cardoso (c. 1950; p. 192), porcelanas ilustradas com danças folclóricas de Mattos e Silva (1966; p. 191) ou trajes regionais e um grande galo de Barcelos como figura central da inauguração da loja da companhia em Nova Iorque (1968; pp. 188-89) — que alguns apontariam como resquícios dum nacionalismo serôdio, mas podem igualmente ser aceites como elogio precoce e lúcido de uma marca identitária que hoje seria ainda muito melhor cotada e valorizada se o Museu de Arte Popular, de Lisboa, fosse libertado do manso esmagamento que lhe foi imposto ideologicamente, a coberto de argumentos ditos académicos ou científicos.

Na loja do n.º 601 da Quinta Avenida de Nova Iorque, em que o saudoso historiador de azulejaria Santos Simões foi consultor do arquitecto Luís Fernandes Pinto, azulejos, tapeçaria e pavimento empedrado (v. p. 262) combinaram-se para criar “uma confortável zona de estar, que era o que, num atrevimento de marketing, a TAP pretendia oferecer” naquela via movimentadíssima, como “imagem de um país hospitaleiro e meridional” (v. Pinto, Azulejo e Arquitectura, 1993, p. 47; itálico meu).

Não há dúvida de que, como escreve Bárbara Coutinho, “o design corporativo da TAP terá sido o espelho cultural do próprio país” (p. 20) ou “um claro statement de Portugal contemporâneo que voa pelos céus do mundo” (Carlos Coelho, p. 94), e isso é ainda hoje particularmente ilustrado na revista de bordo, que faz tudo demasiado bem — e, de caminho, colecciona prémios internacionais — para nos apresentar como criativos, contemporâneos, hospitaleiros e gender friendly, elogiando ao mesmo tempo o país antigo e variegado, cheio de história, arte e cultura. Paula Ribeiro e a sua equipa souberam receber e melhorar bastante o legado da anterior revista Atlantis (prevista em 1964, adiada até 1981), que teve colaboradores ilustres como Simonetta Luz Afonso (directora), João Botelho e Henrique Cayatte (designers gráficos), Alexandre O’Neill (escreveu sobre fado e Carlos Paredes em Novembro de 1985), Ernesto de Sousa, Estácio dos Reis, Rafael Calado (cerâmica contemporânea), José Luís Porfírio (Geronimus Bosch), José Meco (palácio Fronteira), Martim Albuquerque, Benjamin Pereira… Em Março de 1992, uma estilista então muito em voga, Ana Salazar, foi apresentada por uma jovem de 23 anos, Catarina Portas. Pela Atlantis também passou Rui Henriques Coimbra, tão talentoso quanto agora dispensado (como se tivéssemos assim tantos como ele!), e Luís Sttau Monteiro assinou durante anos, como Manuel Pedrosa, páginas de antologia sobre culinária portuguesa, algumas das quais dedicadas a coentro, escabeche, peixe-espada, lampreia, pé de porco, doces algarvios — e, claro, bacalhau e cozido.

O rebranding da TAP em 2005 — com o logótipo actual pela agência Brandia, os uniformes desenhados pela dupla Manuel Alves e José Manuel Gonçalves (após concurso em que participaram Miguel Vieira e José António Tenente, pp. 308-9) e a revista de bordo dirigida por Paula Ribeiro, com design de Raquel Porto — deu à companhia uma confortável velocidade de cruzeiro, pesem embora a crónica trepidação laboral, a dívida abismal e a estratégia centralista que a afastou da sua natural vocação de bandeira, tal como Rui Moreira demonstrou com eloquente e devastadora minúcia em TAP – Caixa Negra. Os bastidores da «guerra séria» entre a TAP e o Porto (com Nuno Nogueira Santos e prefácio de Luís Valente de Oliveira: ed. Almedina, 252 pp.). Observando o interesse e a qualidade desta exposição e livro, é notório que às razões invocadas pelo autarca portuense e seus aliados se junta a sua inexplicável não itinerância, quando uma escala a norte é plenamente justificada — se mais razões não houvesse, e há — pelo fulgurante protagonismo do Porto e arredores no desenvolvimento do ensino, prática, exposição e edição de design. Poderá a Casa do Design de Matosinhos, que inaugura no fim deste mês, reparar um dia essa falha? É o que sugerimos e desejamos.