Título: “A Europa à Deriva”
Autor: Slavoj Zizek
Editora: Objectiva
Páginas: 150

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Os deuses andam relaxados. Que deuses, em eras passadas, permitiriam que lhes usurpassem as sapienciais barbichas e lhes tomassem a voz cava, como que arrancada às entranhas por aqueles que desenterram o pensamento profundo? Que deuses permitiriam que se adoptasse o tom atrabiliário e profético, que se trovejassem avisos como quem solta a ira dos céus e, ao mesmo tempo, se rojassem as vestes sagradas pelo chão sujo dos subúrbios, violentassem os ouvidos com a batida da música popular e se passeasse livremente entre a urbe desrespeitosa? O preço a pagar pela gravidade divina sempre foi a privação da vaidade mundana. Thoreau emigrado na floresta selvagem, Herculano recluso na Ajuda, Diógenes prosélito da pobreza, Tolstói manietado na sua cenobítica velhice, Kierkegaard na juventude quase monacal… Aos modernos, no entanto, não só se lhes permitem veleidades humanas como, sacrilégio dos sacrilégios, se autoriza que respondam aos oráculos!

A Europa agoniza, sangrada por hordas de vândalos ou de políticos raivosos; e, quando suplica pela luz edénica, em vez de um Zeus colossal, responde Zizek, de papiro colado à garganta, para aconselhar o velho rincão do Ocidente. São assim os discursos que Zizek, volta e meia, à margem das suas obras principais, nos concede. Meio proféticos, meio filosóficos, meio estratégicos, a explicar o que a esquerda deve fazer, como a direita se deve calar, como a Humanidade deve agir e como cada novo acontecimento confirma a luta de classes. Por vezes avoca um ar de Gramsci e marca os terrenos em que se deve travar a batalha cultural da esquerda; por outras, sobe o tom às alturas do Olimpo e, como explicador oficial da Providência, desmascara tudo o que se vai passando à nossa volta. Como se vai passando muita coisa, sofre o livro do problema que aponta à Europa: também ele anda à deriva, meio indeciso entre o comentário político e o ensaio filosófico.

Para filosofia, sabe a pouco: caótico, sem sistema nem plano, muito agarrado à intriga menor. Não há mal em decantar teses da realidade – não há mal, sobretudo, porque não há outra forma de encontrar as teses. A tese, no entanto, deve crescer e vergar o concreto, devemos perceber o que acontece como resultado da ideia, não o contrário. Com Zizek, porém, as ideias – interessantes, não se duvide desse ponto – estão sempre nas fímbrias dos factos. Zizek escolhe os factos que quer apresentar – e, como um analista a quem não deram atenção, escolhe todos aqueles de que se lembra – e um punhado de opiniões sobre eles. Nada os unifica, cada um pretexta associações e ideias soltas, pouco trabalhadas, lançadas à desgarrada, com a graça e as imperfeições de um repentista jeitoso. As teses são bem esgalhadas mas têm pouca explicação, são pouco sólidas, daí que Zizek acabe por perder o controlo naquilo que diz.

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É por isso, então, que podemos dizer que Zizek, o escol da nova esquerda, o galã do socialismo radical, pode interessar à direita. O objectivo principal do esloveno neste texto passa por dar pistas para perceber a crise dos refugiados, e para a pensar como um reafirmar deslocado da luta de classes. Começa por explicar que o discurso sobre os refugiados está minado por hipocrisias, e que a maior parte delas está na indignação por não escancararmos as portas a todos e os deixarmos morrer na praia. Não é, no entanto, pelas reservas ao famoso internacionalismo, nem por afirmar que proteger o nosso modo de vida está mais na esfera do bom-senso do que na do fascismo, que Zizek pode agradar à direita. Nem é por, à semelhança do que sempre explicou a Igreja em relação a qualquer tipo de desejo, mostrar que um dos problemas da crise dos refugiados está no modo como eles próprios criam à volta dos lugares de destino um paraíso que não corresponde à realidade.

Essas são ideias tão universais que podem servir de ponto de intersecção entre qualquer análise social, tanto podem ser do azul do Céu como do vermelho do Inferno; poderiam coabitar tanto no pensamento de De Maistre e Bonald como no de Zizek, pelo que não espanta que coexistam com teses típicas do ideário comunista engalanadas com vocabulário actual. Zizek, claro, também tem um parágrafo (bastante mal explicado, diga-se) a explicar que a pedofilia está no âmago da própria ideia de Igreja, que o capitalismo casa de bom grado com regimes opressivos e que a crise do Islão agrada aos conspirativos poderosos, que com a sua mão diabólica querem desviar a luta de classes para um choque de civilizações, escapando assim à mira do povo.

Por outro lado, intui que um dos grandes problemas da crise do Islão (como de todas as crises violentas que, dentro de portas, contarem com a permissividade europeia, já que, explica Zizek, a violência não é um exclusivo religioso) está no próprio legado da revolução francesa: a civilização tolerante ou, melhor dizendo, a civilização céptica. Zizek mostra como, paradoxalmente, a tolerância – amiga do Islão – é o que torna a Europa incapaz de o perceber. Isto porque a civilização tolerante tornou a cultura irrelevante. Cultura, na Europa contemporânea, é aquilo em que não acreditamos mas que permitimos: não acreditamos no Pai Natal, mas enfiamos o barrete bonacheiro porque julgamos fazer parte da nossa cultura. Cultura é não só o pouco importante, como o irracional – comer cabrito na Páscoa, não porque alguma coisa justifique, de facto, o cabrito, mas porque gostamos de dar uma abébia ao que não importa. Vemos como esta acepção está longe, por exemplo, da ideia de cultura ou tradição que fazia Maurras. Para Maurras, cultura e civilização são a mesma coisa, isto é, aquilo a que o Homem, por si só, não chega sozinho. Não um resquício de primitividade, mas um adiantamento em relação ao Homem só; não o irracional, mas aquilo a que os Homens chegaram como porta de saída de um estado selvagem.

Ora, esta forma condescendente de olhar para a cultura como o primitivo tem séria dificuldade em lidar com aqueles que a tomam como o verdadeiro e o importante. Não vale de nada ser tolerante para com o outro se essa tolerância o obriga a limitar as suas ideias. Essa tolerância é, assim, vista como uma intrusão. Dizer: “podes ser religioso, desde que não tapes a cara porque isso é ofensivo para as mulheres significa o mesmo que “não podes ter a tua religião, porque ela implica que tapes a cara, coisa que não podes fazer”. A civilização céptica só é tolerante para o cepticismo, isto é, para a cultura que não a incomoda, que não tem pretensões de verdade. Implica, assim, ter o cepticismo como credo comum.

Zizek também o lobrigou com clareza ao falar das causas inclusivas, não só como prova de ilustração e marca de plêiade cultural, como até contrárias à democracia. Causas como o feminismo ou o racismo não são apenas preocupações constantes de todos os governos; é no povo que elas encontram maior resistência. O cepticismo, ou omni-inclusão é hoje, não só a marca do poder, e aquilo que o poder impõe, como uma demonstração clara de um grave problema democrático: a democracia, sempre tão preocupada com minorias, só pode fazê-lo quando não tiver em linha de conta a sua parede mestre: o povo e a vontade da maioria.

Zizek tem mais ideias interessantes. A comparação entre violência divina e violência mediata, que o esloveno vai buscar a Walter Benjamin, merecia ser explorada mas, se o foi pouco pelo autor, menos terá de o ser pelo crítico; muitas outras, soltas, dispersas, têm potencial, mas Zizek explorou-as pouco, atravessou-as só de raspão, perdido nas suas referências estilosas e na busca de conspirações entre os poderosos. Podia aprender com as suas próprias teses: a páginas tantas, denuncia um jornal por sugerir que uma boa acção palestiniana é feita com uma intenção pérfida na sombra – insinuar que o verdadeiro objectivo está noutra coisa não é boa análise, diz. Que o digam também a Igreja, os poderosos, os empresários e a direita. Dado que isto poderia atingir a sua própria tese principal – não é boa análise insinuar que a luta islâmica está noutra coisa, que é a luta de classes – que o digam muito. Talvez Zizek acabe ao lado de todos eles.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.