O drama musical The Get Down, cuja ação se desenrola no Bronx, em 1977, nos primórdios do rap, estreia esta sexta-feira no Netflix. Co-criada por Baz Luhrmann, o realizador australiano responsável por filmes como Romeu + Julieta ou Moulin Rouge!, a série foca-se nos tempos de juventude de um famoso rapper fictício, Ezekiel “Books” Figuero. Em adulto, em 1996, ano em que Books narra, em concerto, a sua vida, a voz do rapper é feita por Nas, o lendário MC que aqui também funciona como produtor executivo. Não é o único nome envolvido: Grandmaster Flash, o DJ pioneiro, é uma personagem da série que é mentor de Books e dos amigos e também foi consultor.

Para assinalar a estreia, falámos com três rappers portugueses sobre as canções que os fizeram apaixonarem-se pelo mundo do hip-hop.

Valete

Apesar de não lançar um disco novo há quase dez anos (Serviço Público foi o último), o rapper da Damaia continua muito ativo e um dos nomes mais respeitados do hip-hop nacional.

“O meu encontro com o rap teve duas fases. Obviamente, as primeiras coisas que ouvi de rap, em termos de voz e de rimas, eram temas que se calhar não dizíamos que era bem rap. “Pump Up The Jam”, dos Technotronic, “Can’t Touch This”, do MC Hammer, “Ice Ice Baby”, do Vanilla Ice. Era puto, devia ter uns dez anos, para mim era música para dançar. Gostava daquela cena que era nova, cantores a expressarem-se daquela forma. Numa segunda fase, em que percebi que o rap podia trazer uma mensagem poderosa, eficaz, que afetasse as pessoas, foi com a cena portuguesa e lusófona.”

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Racionais MC’s

“Homem na Estrada”, Raio X do Brasil (1993)

“Devo ter ouvido isto [“Homem na Estrada”, dos Racionais MC’s] em 1992. É um tema muito à frente para aquele tempo. Os Racionais MC’s são mais MCs, mas nesta é só o Mano Brown, que faz ali uma descrição de um gajo que está preso numa barraca e a polícia está a tentar entrar na barraca e acaba por assassinar o gajo. Eu tinha uns 12 anos, e é uma faixa que te faz entrar mesmo no filme. Naquela altura, os rappers americanos já tinham uma cena de storytelling forte, mas eu não conhecia, e mesmo o que conheci depois, duvido que tivessem algo assim tão super-cinematográfico. Se fores ouvir hoje já não te vai bater como na altura. Marcou-me porque de repente estava a ouvir rap cinematográfico. E desformatado, para aí de sete/oito minutos, sem refrão, e eu nem sabia que era possível fazer música sem refrão. Os próprios Racionais marcaram-me muito.”

Gabriel o Pensador

“Abalando”, Gabriel o Pensador (1993)

“O primeiro disco dele foi o que provavelmente mais ouvi em toda a minha vida e me fez querer ser rapper. Esse tema é logo o primeiro e marcou-me muito porque era uma cena muito politicamente incorreta, com uma postura muito rebelde e contracultura a que não estava habituado. Eu vinha da cena pop, vinha dos temas de rádio, estamos a falar de um miúdo de 12 ou 13 anos. O Gabriel o Pensador, acho que mesmo na história do rap lusófono, é dos gajos que mais bem trata a língua portuguesa, que é mais pertinente, tem mais inteligência nas letras. A linguagem era muito cuidada, bem trabalhada.

Algo que me marcou muito, e que creio que se está a perder muito, não só em Portugal, mas em todo o mundo, foi a parte da comunicação. Eu ter a capacidade de fazer uma letra bem estruturada, com princípio, meio e fim, de forma que entendas tudo o que estou a dizer, um rap comunicativo… ele sempre foi dos melhores a fazer isso. A minha avó percebe tudo o que o Gabriel diz. Parecendo que não, é uma coisa extraordinária, são muitos poucos os rappers que fazem isso, há muito rap encriptado. Ele tem poder de comunicação, é um rapper transversal.”

Boss AC

“A Verdade”, Rapública (1994)

“Os motivos não são muito diferentes. Este tema marcou-me porque era um tema de denúncia, ele fazia um bocado de resumo da situação do negro em Portugal, falou de racismo na letra, etc. E bem escrito, bem tratado, a soar bem, o AC já era um rapper, nessa altura, muito completo, muito precoce para aquele tempo, para idade dele e para o estágio que o hip-hop português vivia na altura. Era um gajo que tinha uma cena de dominar as línguas, mesmo quando vinha com o espanhol ou o italiano, era muito apurado. Marcou o rap português naquela altura de uma forma incontestável. Era um rap de combate, de denúncia, já como o Chuck D dos Public Enemy dizia, os MCs assumiam o papel de CNN das ruas. Mudou completamente a minha perspetiva sobre o rap.

Ao mesmo tempo, eu recebia cenas, o meu primo começou a mostrar-me vídeos como o “Fight the Power“, dos Public Enemy, e havia também os Líderes da Nova Mensagem. Sempre com ênfase nos brasileiros e portugueses, que na altura ainda estava muito na fase de aprendizagem do meu inglês, não era suficiente para absorver, apesar de ser muito fácil perceberes o rap americano antigamente do que agora.”

Maze (Dealema)

O rapper dos nortenhos Dealema, grupo que partilha com gente como Fuse, Mundo Segundo, DJ Guze e Expeão e celebrou este ano o vigésimo aniversário, lançou de surpresa o primeiro álbum a solo, homónimo, em maio.

House of Pain

“Jump Around”, House of Pain (1992)

https://www.youtube.com/watch?v=KZaz7OqyTHQ

“A primeira vez que ouvi deve ter sido tipo 1992. Foi no intervalo de um jogo da NBA, os New York Knicks contra Chicago Bulls, lembro-me perfeitamente. Eram transmitidos bem tarde, no intervalo deu o vídeo e passei-me com aquele ambiente todo de pub, dos gajos irlandeses e da intensidade da música. A música bateu-me, mas foi a um nível subconsciente, identificava-me, curtia a linguagem, cantava as músicas. Era o que chegava cá, não havia muito forma de tu escavares, de procurares discos ou tentares saber mais, nem sequer havia internet de fácil acesso. Bateu muito nesse ano e eu estava muito ligado ao basquete e nos eventos de streetball e playgrounds ouvia-se também Naughty By Mature, Kriss Kross, cenas mais comerciais que estavam a bater e tinham o feeling de rua. Só depois comprei discos e fui seguindo mais ou menos, tinha um grande interesse pelo estilo de produção do DJ Muggs.”

A Tribe Called Quest

“Can I Kick It?”, People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm (1990)

“Antes dos House of Pain ouvi isto na rádio. Não me lembro de qual era, mas passava em antena. Fiquei completamente colado da primeira vez que ouvi, percebi que aquela linguagem me dizia algo. Passavam vários singles desse álbum, como o “Bonita Applebum”), era algo que ouvia na rádio. Curti mesmo, na altura os De La Soul também tinham uns singles a passar, mas só depois é que ouvi a sério. Investiguei e comecei a perceber que me batia aquilo, aquele estilo, aquela identidade, mas foi só um bocadinho mais tarde, comprei discos e agora sou grande fã. Na altura foi muito espontâneo e naïf, como o som deles.”

Wu-Tang Clan

“Protect Ya Neck”, Enter the Wu-Tang (36 Chambers) (1993)

“Esta foi muito mais consciente. Já ouvia rap, tinha as referências todas e isto quebrava completamente com a cena do hip-hop naïf, era mais cru, tinha um som mais sujo. A primeira vez que ouvi foi como vídeo e bateu-me pela crueza, a cena de rua nova-iorquina, eles com máscaras e meias na cabeça. Isso marcou-me. Foi próximo de ver um documentário em que eles estavam nas ruas de Staten Island e a falar da cena deles, que passou no canal 2 há muitos anos. Há assim uns quantos gajos dessa altura com quem falo e que se lembram desse documentário, de terem visto. Comecei a investigar Wu-Tang Clan e a perceber que gostava mesmo disto e desta sonoridade.”

Nerve

Dono de uma das vozes mais idiossincrásicas e desenvolvidas do rap recente nacional, Nerve lançou o ótimo Trabalho & Conhaque ou A Vida Não Presta & Ninguém Merece a Tua Confiança, o seu segundo álbum depois da estreia com Eu Não Das Palavras Troco a Ordem em 2008, no ano passado.

Company Flow

“Population Control”, Funcrusher Plus (1997)

https://www.youtube.com/watch?v=wQ9jaLshxIU

“Quando comecei a ouvir rap, considerado que foi o à volta de 2002, não comecei propriamente a ouvir os pioneiros. Este foi o tipo rap que mais me influenciou no rumo que tomei, em termos de estilo. Company Flow foram pioneiros dentro do género, o indie-rap, tinham temáticas muito variadas e uma cena espacial numa altura em que ninguém ligava a isso. “Population Control” é uma faixa brutal em que é o El-P [hoje no duo Run the Jewels, com Killer Mike] que começa. E o instrumental é muito fixe. O El-P ainda não era o tipo de rapper que é hoje, tinha um flow um bocadinho mais tradicional, mas é brutal. O trabalho do El-P, o que ele fez depois na editora dele, a Def Jux, é brutal, qualquer álbum dele.”

Deep Puddle Dynamics

“I Am Hip Hop (Move the Crowd)”, The Taste of Rain… Why Kneel? (1990)

“Este grupo juntava o Slug, o Sole, o Alias e o maluco do Doseone. Era uma dream team desse tal indie-rap. Em termos de densidade lírica e mesmo instrumental, este disco mais denso do que o “Funcrusher Plus”, embora só tenha saído dois anos depois. Já era fritaria forte. Escolho esta faixa talvez por causa do instrumental. Nela, cada um dos rappers dá o ponto de vista sobre uma festa de hip-hop, e há ali momentos brutais, especialmente na parte do Doseone e como ele descreve o ambiente. O disco ganhou uma fama de clássico dentro do género, havia até vários mitos.

Em 2006, os Atmosphere [duo ao qual Slug pertence] vieram cá [ao festival Hype@Tejo] e eu e uns amigos bebemos uma cerveja com o Slug e fizemos montes de perguntas sobre muitos rappers, e várias delas eram sobre este disco. Dizia-se que o Slug, no último dia, quando tinham acabado de escrever o disco, tinha posto as letras todas dentro do boné dele e cada um dos outros tinha tirado de lá uma letra e rimado, mesmo não sendo dele. Ele disse que pelos vistos era mentira. Outro era que este tinha sido o primeiro disco da história do hip-hop em que não se dizia a palavra “hip-hop”, mesmo estando no título desta faixa. Ele disse que nunca tinha ouvido falar disso, mas que ia ver. Dizia-se todo o tipo de coisas na internet e houve tantas perguntas que mais valia não termos feito.”

Eyedea & Abilities

“Reintroducing”, E&A (2004)

“Este duo é das melhores parcerias entre rapper e DJ que conheço. Eles faziam uma simbiose perfeita, o MC e o DJ complementavam-se. No disco, há scratch que entra a meio de uma faixa e complementa o flow do próprio rapper. Nesta fazem muito isso. Não é o meu álbum favorito, mas é mega-clássico, quando ouvi influenciou-me muito. É o mais tradicional, mais rap puro e duro do Eyedea, mesmo em termos instrumentais. Foi dos primeiros que ouvi dele, por isso influenciou-me logo. Depois é que comecei a ouvir tanto o First Born, o primeiro deles, e o Many Faces of Oliver Hart, do Eydea a solo, que por acaso tem uma faixa, “Song About the Song”), que eu costumo dizer que, se me apontassem uma arma à cabeça e obrigassem a dizer, eu diria que é a minha faixa favorita de sempre. Não tem o melhor rap, até porque ele nem está propriamente a rappar, é mais em termos do que sinto a ouvir uma faixa. É a simulação de um concerto em que o gajo está a descrever o momento em que tens uma ideia para escrever uma letra, mas não tens nenhum sítio para escrever, mas a forma como descreve essa situação é brutal, e a conclusão é brutal, o contexto, o acting, o show-off do performer, é algo que ele retrata de maneira brutal. Deve ter só um minuto e tal. Não é pela escrita, ele está a mostrar muito as habilidades dele, é pela ideia por detrás, tão simples e tão básica e ter tornado a cena tão brutal.”